Sandra guardava numa caixa velha de latão...
...o dinheiro que tinha para o mês. Sempre que a abria de manhã, para tirar o que orçamentara à risca para o dia, lembrava-se do momento em que lhe tinha sido oferecida. Adorava a Ariel, e a mãe, pelos seus oito anos, comprou-lhe um perfume da sereia. O perfume acabou em pouco tempo porque Sandra se recusava a sair de casa sem cheirar à sereia mais famosa do mundo.
Desde esse dia não recebeu mais prendas da mãe. Pouco tempo depois havia de seguir para uma casa de acolhimento onde ficaria até à maioridade.
Guardou sempre a caixa e no dia em que se tornou adulta, em que teve de encontrar meios para se sustentar, arrecadou as poucas coisas que tinha e levou sempre a caixa da memória mais doce que guardava.
Estava a meio do mês e já não restava sequer metade do dinheiro.
Recebia o ordenado da pastelaria no início do mês, pagava a renda, contava as notas e as moedas, dividia: dinheiro para comer, dinheiro para água, dinheiro para luz, dinheiro para gás, dinheiro para despesas do pequeno. Nesse mês apareceu uma amigdalite, com ela as consultas e os medicamentos.
Fez contas, Tem de dar, pensou. Tinha de dar para um brinquedo, um brinquedo pequeno, mas um brinquedo. Os bolos o pasteleiro oferecia, Não te preocupes Sandrinha que quem trata das iguarias do aniversário do campeão sou eu!, e seria. Sandra ainda não sabia que surpresa estava preparada, mas Sebastião, homem robusto
e bonacheirão, prometeu preparar um bolo para Samuel soprar as velas com os amigos e outro, mais pequeno, para que pudesse cantar os parabéns com a mãe, que trabalhava dois empregos para que não lhe faltasse nada.
Do pai sabia-se pouco. Ao início, ainda aparecia para ver Samuel nas tardes de sábado. Depois foi ficando mais e mais ocupado, até que se deixou de saber o que fosse dele. Por essa altura já Samuel era prata da casa na pastelaria e ficava lá aos fins de tarde, na companhia de Sebastião, que o guardava e entretia, que lhe ensinava truques para os melhores recheios, enquanto a mãe se esfolava a limpar os escritórios da tipografia ao lado.
A Dona Adelaide não aparecia havia meses, tinha ido passar uma temporada à casa do Alentejo, herança da querida mãezinha que Deus agora guardava. Agastada debruçou-se sobre o balcão, Nem vos digo nem vos conto da minha vida!, confessou sem mais. Nem bons dias, nem boas tardes, tal não era o encanitamento da senhora. Não é que a minha Amélinha me ficou prenhe de um rafeiro? Eu bem que a achei inchada, mas os ares do Alentejo fazem tanto por nós que eu só me ocorreu que a bicha estava mais descansada. Até que fui dar com ela no canto da cozinha com três maltrapilhos rafeiros. Dei dois, não sei que fazer ao último. Não sabem de ninguém que queira um bicharoco não?, indagou.
Sandra pensou no filho. Pensou na alegria do menino em ter um animal de estimação. Pensou na nota que assim permaneceria no bolso. Pensou que com esforço tudo se fazia. Que se levantariam mais cedo para o passear, que ao fim do dia poderiam dar uma volta pelo jardim, o cão pela trela, quem sabe solto depois de ensinado, tal qual o cão da Anita.
- Sabe se fica pequenito, Dona Adelaide?
- Ai de certeza, a minha Amélinha é tão miudinha.
- Então fico eu com ele, hoje é aniversário do meu Samuel e vai ficar mesmo contente. Passo para ir buscar o cãozito depois de terminar o serviço.
Assim combinaram, assim se fez. Dona Adelaide sentou o corpo gordo numa cadeira estreita demais, comeu o habitual com outra satisfação e foi à vida dela com um quilo a menos de responsabilidade.
Samuel não podia estar mais radiante. Não sabia quem havia de abraçar mais e primeiro: se a mãe, que lhe deu aquela alegria; se o cão, que era a alegria em si.
Mas depois do júbilo e da realidade ficcionada que discorremos nos pensamentos, a força dos acontecimentos bate com outro vigor. Lucky ladrava demasiado. Não se sabia se todo o dia, se apenas o suficiente para a vizinha do lado se queixar ao senhorio. O cãozito não pode ficar aqui Sandra, lamento, disse, não posso arranjar sarilhos com os outros arrendatários. Tens até à próxima semana para arranjar solução para o bicho, decretou o dono
da casa.
Sandra sentiu que tudo de revestia num nó de arrependimento, de más decisões e azares. Se tivesse comprado um boneco ao filho não lhe traria a tristeza de dizer adeus a um amigo pelo qual se apaixonara.
Foi Sebastião, o pasteleiro apaixonado, homem que não lhe fazia o tipo, robusto e bonacheirão, que deu abrigo ao companheiro de quatro patas, Tenho quintal, tenho espaço, para o canito e para vocês, como bem sabes, disse-lhe quando foi buscar o bicharoco lá a casa.
No domingo a pastelaria fechava para descanso do pessoal. Era o único dia de folga de Sandra. Prepararam-se para ir passar a tarde à casa de Sebastião. Esperava-os, segundo havia explicado, um almoço do fundo da orelha.
A casa era acolhedora, uma moradia térrea, antiga, mas remodelada. Três quartos de tamanho agradável, uma sala que dava para o quintal das traseiras e uma cozinha grande, a alegria do proprietário. Lá fora o chão tinha a relva cuidada, canteiros de flores e um carreiro feito em pedra cinzenta. Luchy tinha uma casa na cozinha, uma coleira com o nome; tinha tomado banho e estava cheiroso como nunca antes. Levei-o ao spa para cães, deram-lhe banho com champô não-sei-o-quê, puseram amaciador e tudo. Vinha com uma gravata
mesmo gira, mas o artista já a roeu. Foi vacinado e já tem os documentos todos em dia, contou-lhes.
Almoçaram bem, riram muito. Samuel passou a tarde a brincar com Lucky enquanto a mãe e Sebastião os observavam a espaços. Sebastião olhava-a quando julgava não estar a ser visto, pensava se não podia tocar-lhe na mão. Quando Sandra interrompia o momento de contemplação, olhava para si mesmo e pensava que tudo aquilo podia ser o normal dos seus dias se fosse por fora igual ao pai de Samuel.
Para a semana podíamos marcar uma coisa parecida, isto se não te importares e tiveres disponibilidade, disse Sandra.
Sim, penso que posso desmarcar a rega das flores e receber-vos outra vez.