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Exercício de escrita

Sandra guardava numa caixa velha de latão...

29.04.21

...o dinheiro que tinha para o mês. Sempre que a abria de manhã, para tirar o que orçamentara à risca para o dia, lembrava-se do momento em que lhe tinha sido oferecida. Adorava a Ariel, e a mãe, pelos seus oito anos, comprou-lhe um perfume da sereia. O perfume acabou em pouco tempo porque Sandra se recusava a sair de casa sem cheirar à sereia mais famosa do mundo.

Desde esse dia não recebeu mais prendas da mãe. Pouco tempo depois havia de seguir para uma casa de acolhimento onde ficaria até à maioridade.

Guardou sempre a caixa e no dia em que se tornou adulta, em que teve de encontrar meios para se sustentar, arrecadou as poucas coisas que tinha e levou sempre a caixa da memória mais doce que guardava.

Estava a meio do mês e já não restava sequer metade do dinheiro.

Recebia o ordenado da pastelaria no início do mês, pagava a renda, contava as notas e as moedas, dividia: dinheiro para comer, dinheiro para água, dinheiro para luz, dinheiro para gás, dinheiro para despesas do pequeno. Nesse mês apareceu uma amigdalite, com ela as consultas e os medicamentos.

Fez contas, Tem de dar, pensou. Tinha de dar para um brinquedo, um brinquedo pequeno, mas um brinquedo. Os bolos o pasteleiro oferecia, Não te preocupes Sandrinha que quem trata das iguarias do aniversário do campeão sou eu!, e seria. Sandra ainda não sabia que surpresa estava preparada, mas Sebastião, homem robusto 

e bonacheirão, prometeu preparar um bolo para Samuel soprar as velas com os amigos e outro, mais pequeno, para que pudesse cantar os parabéns com a mãe, que trabalhava dois empregos para que não lhe faltasse nada.

Do pai sabia-se pouco. Ao início, ainda aparecia para ver Samuel nas tardes de sábado. Depois foi ficando mais e mais ocupado, até que se deixou de saber o que fosse dele. Por essa altura já Samuel era prata da casa na pastelaria e ficava lá aos fins de tarde, na companhia de Sebastião, que o guardava e entretia, que lhe ensinava truques para os melhores recheios, enquanto a mãe se esfolava a limpar os escritórios da tipografia ao lado.

A Dona Adelaide não aparecia havia meses, tinha ido passar uma temporada à casa do Alentejo, herança da querida mãezinha que Deus agora guardava. Agastada debruçou-se sobre o balcão, Nem vos digo nem vos conto da minha vida!, confessou sem mais. Nem bons dias, nem boas tardes, tal não era o encanitamento da senhora. Não é que a minha Amélinha me ficou prenhe de um rafeiro? Eu bem que a achei inchada, mas os ares do Alentejo fazem tanto por nós que eu só me ocorreu que a bicha estava mais descansada. Até que fui dar com ela no canto da cozinha com três maltrapilhos rafeiros. Dei dois, não sei que fazer ao último. Não sabem de ninguém que queira um bicharoco não?, indagou.

Sandra pensou no filho. Pensou na alegria do menino em ter um animal de estimação. Pensou na nota que assim permaneceria no bolso. Pensou que com esforço tudo se fazia. Que se levantariam mais cedo para o passear, que ao fim do dia poderiam dar uma volta pelo jardim, o cão pela trela, quem sabe solto depois de ensinado, tal qual o cão da Anita.

- Sabe se fica pequenito, Dona Adelaide?

- Ai de certeza, a minha Amélinha é tão miudinha.

- Então fico eu com ele, hoje é aniversário do meu Samuel e vai ficar mesmo contente. Passo para ir buscar o cãozito depois de terminar o serviço.

Assim combinaram, assim se fez. Dona Adelaide sentou o corpo gordo numa cadeira estreita demais, comeu o habitual com outra satisfação e foi à vida dela com um quilo a menos de responsabilidade.

 

Samuel não podia estar mais radiante. Não sabia quem havia de abraçar mais e primeiro: se a mãe, que lhe deu aquela alegria; se o cão, que era a alegria em si.

Mas depois do júbilo e da realidade ficcionada que discorremos nos pensamentos, a força dos acontecimentos bate com outro vigor. Lucky ladrava demasiado. Não se sabia se todo o dia, se apenas o suficiente para a vizinha do lado se queixar ao senhorio. O cãozito não pode ficar aqui Sandra, lamento, disse, não posso arranjar sarilhos com os outros arrendatários. Tens até à próxima semana para arranjar solução para o bicho, decretou o dono 

da casa.

Sandra sentiu que tudo de revestia num nó de arrependimento, de más decisões e azares. Se tivesse comprado um boneco ao filho não lhe traria a tristeza de dizer adeus a um amigo pelo qual se apaixonara.

Foi Sebastião, o pasteleiro apaixonado, homem que não lhe fazia o tipo, robusto e bonacheirão, que deu abrigo ao companheiro de quatro patas, Tenho quintal, tenho espaço, para o canito e para vocês, como bem sabes, disse-lhe quando foi buscar o bicharoco lá a casa.

 

No domingo a pastelaria fechava para descanso do pessoal. Era o único dia de folga de Sandra. Prepararam-se para ir passar a tarde à casa de Sebastião. Esperava-os, segundo havia explicado, um almoço do fundo da orelha.

A casa era acolhedora, uma moradia térrea, antiga, mas remodelada. Três quartos de tamanho agradável, uma sala que dava para o quintal das traseiras e uma cozinha grande, a alegria do proprietário. Lá fora o chão tinha a relva cuidada, canteiros de flores e um carreiro feito em pedra cinzenta. Luchy tinha uma casa na cozinha, uma coleira com o nome; tinha tomado banho e estava cheiroso como nunca antes. Levei-o ao spa para cães, deram-lhe banho com champô não-sei-o-quê, puseram amaciador e tudo. Vinha com uma gravata 

mesmo gira, mas o artista já a roeu. Foi vacinado e já tem os documentos todos em dia, contou-lhes.

Almoçaram bem, riram muito. Samuel passou a tarde a brincar com Lucky enquanto a mãe e Sebastião os observavam a espaços. Sebastião olhava-a quando julgava não estar a ser visto, pensava se não podia tocar-lhe na mão. Quando Sandra interrompia o momento de contemplação, olhava para si mesmo e pensava que tudo aquilo podia ser o normal dos seus dias se fosse por fora igual ao pai de Samuel.

Para a semana podíamos marcar uma coisa parecida, isto se não te importares e tiveres disponibilidade, disse Sandra.

Sim, penso que posso desmarcar a rega das flores e receber-vos outra vez.

 

Maria de La Salette com dois tês, como...

20.04.21

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...gostava de esclarecer, penteava a cliente agastadíssima com a entrevista da princesa.

- Já viste aquela pobre coitada? Tinha a vida dela, era estrela de cinema, homens e homens aos pés, casou-se a pensar no conto de fadas e depois fazem-lhe aquilo. Tadinha.

Judite deixava a cabeça ir com a escova porque as escovagens eram tão bruscas que sentia o escalpe a fugir-lhe.

- Ó Salinha, faz é menos força na escova filha, que perdes a cliente se fico careca, amor.

- Ai desculpa Judite, tens razão. Fico assim com as injustiças. Tu sabes c’agente tem penado muito com isto da pandemia. Dei comigo - debruçou-se para confessar a clandestinidade em surdina ao ouvido de Judite - a ir a casa de clientes para lhes dar um corte ou um desbaste. Eles sofriam com cabelo a mais e eu com dinheiro a menos. Mas sabes, uma pessoa vive com pouco, a pessoa é que sabe da sua vida, não tem castelos nem joias, mas vive feliz. E depois é quando vejo estas coisas que penso cá para mim: Maria de la Salette da Cruz Gonçalves Pacheco, ainda bem que não caíste na desgraça da riqueza. Isto uma pessoa tem dois tostões e já nem sabe quem são os amigos, toda a gente quer mamar. Assim a pessoa sabe que quem está é porque quer. É ou não é Judite? - questionou enquanto, empolgada com a conversa, arreou com a escova no cocuruto de Judite. Esta última já saturada da conversa, queria a mise feita, a revista lida, a conta paga e pôr-se a andar.

   - Olha eu cá para mim - respondeu Judite passando as páginas da revista com uma violência desnecessária - muito me estou cagando para ti, para a princesa e para o dinheiro que não tenho. Gostava muito que acabasses o serviço porque eu, ao contrário de ti, lamento que não me saia a sorte grande para arranjar quem me faça o almoço, coisa que não tenho se não parares com as lérias - concluiu.

   Maria de La Salette, sem jeito, percebeu que estava a usar a escova errada há mais de dez minutos. Para estivar o cabelo precisava de uma escova redonda em vez da quadrada. Pegou no secador, carregou no botão e o aparelho não havia maneira de arrancar. Judite viu a coisa malparada. Maria de La Salete desligou a ficha, experimentou outra tripla, mas nada. Não tinha outro, os secadores profissionais eram caros e com a escassez de recursos, aquele, apesar de andar com engasganços ocasionais, tinha de fazer o serviço.

   - Não tens outro? - indagou Judite. Tinha outro, mas também estava pifado.

   Judite levantou-se com o cabelo molhado e pegou na mala para sair.

- Olha liga à princesa, o dinheiro faz-lhe tão mal que pode ser que ela te dispense algum azar para comprares maquinaria nova.

Diana não disse à mãe que ...

19.04.21

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...uma das miúdas do seu grupo de amigas lhe disse achas que temos mel na cona?, quando se afastaram dela e Diana as seguiu. Não disse que depois de lhe sair da boca um ah?, que lhe parecia agora angustiantemente estúpido, de tal modo que sentia a pele arrepanhar por todo o corpo só de reviver o momento. Não disse que a Andreia, sempre tão amável, uma das miúdas de quem mais gostava, se tinha voltado para trás e dito: sim, mel na cona. Só podemos ter mel na cona para andares atrás de nós como uma mosca atrás de merda. Também não disse que a Isabel, sua amiga desde a primária, tinha seguido com o grupo deixando-a sozinha, de mochila às costas, de cara à banda, sem perceber porque raio aquele conjunto de raparigas que considerava suas amigas a tratavam agora mal. Em vez disso perguntou à mãe como tinha passado o dia, se tinha conseguido descansar. Deu-lhe o braço, acompanhou-a e cedeu-lhe o ombro direito, para que fosse, em compasso vagaroso, do quarto até à sala, onde iriam comer a sopa que Diana ia aquecer em lume brando, no tacho pequeno vermelho que a mãe tinha comprado para o enxoval dela.

Comprei isso para ti, para o dia em que tenhas a tua casa, não me parece justo que o coloquemos a uso, dissera-lhe a mãe no dia em que a panela que colocavam a uso se estragou e o dinheiro não sobrava para comprar uma nova. Depois compras outra, quando estiveres melhor e conseguires trabalhar, argumentou com a mãe, até compras uma melhor, vais ver.

A ideia de voltar a sentir-se útil, de cuidar da filha em ver de se sentir um peso para uma miúda de doze anos fez Madalena sorrir.

- Eu é que devia perguntar-te como é que foi o dia, ainda sou a mãe aqui, tá bem senhora enfermeira? - Madalena gracejou como sempre. Riram-se e Diana esqueceu por momentos o episódio da manhã.

Serviu a sopa quente à mãe, colocou o seu prato ao lado, ligou a televisão e sentou-se. Fingia estar a prestar atenção ao programa da manhã, que estava quase a terminar, enquanto olhava de soslaio para o prato da mãe. Era preciso perceber se comia ou se fazia de conta que metia a comida à boca e se entretinha a brincar com as massas. Era assim que Diana sabia se a mãe estava pior ou não. Quando comia com satisfação era porque a manhã tinha sido mais calma, tinha tido menos náuseas e por isso sentia-se com apetite e capaz de comer. Mas quando assim não era, só o cheiro da comida a deixava agoniada.

Viu que estavam num dia bom e sentiu-se aliviada.

Enquanto comia a sopa e procurava distrair-se das notícias de abertura do telejornal ocorreram-lhe outros episódios em que as supostas amigas a tinham tratado mal. Lembrou-se do dia em que a convenceram a ir por um caminho diferente para a paragem de autocarro e, quando viu que este passava acelerado em direção à paragem, desatou a correr. Elas gritavam corre burrinha, corre, enquanto se riam e gozavam com a aflição de Diana para apanhar o transporte, com o barulho da mala a bater-lhe nas costas. Lembrou-se de que lhe atiravam restos de pipocas para o cabelo encaracolado, e que por duas vezes uma delas tinha dito à turma toda que as pintas brancas nos cabelos de Diana eram lêndeas, o melhor é afastarem-se ali da piolhosa, alertara rindo-se maliciosa.

Sentiu-se idiota por todas as vezes que foi convidada pela Sara para irem ao bar, para conversarem de coisas engraçadas. Não compreendia porque raio se sentia atraída para estar perto daquele grupo que a tratava como se não fizesse parte, quando tinha quem a esperava e a recebia sempre de braços abertos. Não percebo porque andas sempre com elas, nós somos amigas, tinha-lhe dito Sara. Mas Diana queria fazer parte de qualquer coisa que lhe parecesse mais cor de rosa, mais bem-sucedida. E aquele grupo, de uma forma estranha, parecia-lhe ter isso.

Depois de recolher os pratos, de os lavar e deixar a secar no escorredor, Diana arranjou a mala com os livros e os cadernos das disciplinas da tarde, apoiou a mãe para que conseguisse regressar ao quarto e ajudou-a a deitar-se. Quando lhe deu um beijo na testa, já Margarida começava a fechar os olhos para descansar. A medicação que tomava depois de almoço era demasiado forte. Diana tirou-lhe o turbante para que não sentisse demasiado calor quando descansava, pegou na mochila e saiu.

No autocarro encostou a cabeça ao vidro. Na primeira paragem em que o autocarro parou para deixar entra uma senhora idosa, Diana viu uma família, pai e mãe com a filha que seria pouco mais nova que Diana. A pequena estava a entrar no carro enquanto o pai segurava na porta e a fechava atrás dela. A mãe sentava-se no lugar do pendura e pareceu a Diana que mantinham uma conversa animada. Pela mochila, que viu o pai guardar na bagageira, estariam a caminho de a levar à escola. Não sentiu um vazio, nem mesmo uma grande tristeza, nunca tinha conhecido a vida daquela maneira. Não podia ter saudades do que nunca tinha tido. Pensou que um dia gostaria de ser como aquela mãe, que espera que o pai feche a porta à filha para irem a algum lado.

Quando chegou à escola o grupo estava no banco perto da entrada. Passou por elas e seguiu para perto da sala. Não sabia se conseguiria manter aquela firmeza, se fosse honesta consigo tinha de admitir que o havia feito porque elas lhe tinham dito que não a queriam perto, mas e se voltassem com falinhas mansas?

Conseguia ouvi-las ao longe a rir, com gargalhadas forçadas, daquelas que servem para magoar, daquelas que servem para dizer: estamos a rir-nos de ti, ó pateta!

- O stôr de português hoje não vem, a auxiliar já veio avisar. Queres ir ao bar? – Sara tinha aparecido ao lado de Diana, polegares presos nas alças na mochila que usava sempre com ambas as tiras enfiadas nos braços, não como as miúdas fixes que usavam só uma alça apesar de ser incómodo.

Diana assentiu.

Margarida senta-se no sofá e pousa o livro no...

06.04.21

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no colo. Haviam sido as amigas a recomendar-lho. Podes aproveitar para pôr a leitura em dia, para relaxares e fazeres alguma coisa por ti, disseram-lhe da última vez que se tinham reunido numa daquelas salas virtuais que vão abaixo em menos de uma hora se não pagamos consumo.

Era verdade, habitualmente fazia pouco por si. Ultimamente ainda menos vontade tinha. Não tinha filhos, não tinha marido, não tinha uma relação estável há mais de dois anos. Os pais eram totalmente independentes e dava consigo a lamentar que nenhum deles precisasse do seu socorro. Queria sentar-se cansada no sofá, ter alguma coisa para contar; que fossem queixumes, daqueles que maldizemos quando os temos e que quando as paredes são a única coisa a fazer companhia tanta falta fazem.

Quando a pandemia chegou foi para casa, ficaria em layoff e depois, logo que se pudesse voltar ao ativo, a empresa regressaria em força. Nessa altura fez pão, pintou as paredes de casa em tons de casquinha de ovo. Uma cor que a enjoa agora que olha para cada esquina, provavelmente um trauma recalcado de quem associa a cor ao desalento da solidão. As videochamadas eram uma graça entre as amigas, tiravam prints dos momentos em que a imagem estagnava e depois aproveitavam para fazer memes com a cara de cada uma. Faziam-nos circular no grupo de Whatsapp que tinham criado para fazer conversa de treta e justificar mais uns intervalos no trabalho daquelas que o conseguiam fazer em casa.

Até os pais aprenderam a lidar com a internet e lhe ligavam para saber como estava. Videochamadas irreprimíveis, com os velhos a aparecer impecavelmente no ecrã, nada daquilo que era retratado nas piadolas que ia encontrando internet afora. Mais uma vez desejava uns pais mais acabrunhados, menos desenrascados, daqueles em que apenas aparecia a testa, dos que procuravam os filhos no ecrã. Uma risada para contar.

Arrumava a casa todos os dias, reorganizou armários numa eficiência tal que sabia de cor onde tinha posto todos os tupperwares e as respetivas tampas. Podia escrever um livro mais eficiente que o da Marie Kondo. Tinha quatro panelas e dois tachos. Deitou fora a torradeira velha avariada que havia pespegado na última prateleira da despensa e nunca mais se lembrara de deitar fora.

Arrumada a casa não havia lixo para tanta disponibilidade para limpeza. Não havia um cão para passear, um gato para cruzar o olhar; não havia pessoas na rua que justificassem tardes à janela para conjeturar para onde iam e de onde vinham. As que traziam sacos tinham ido comprar bens essenciais. As que tinham crianças e cães andavam no passeio higiénico, as restantes facilmente percebia que andavam a trabalho. Viu as séries todas da Netflix, pensou em subscrever a HBO, mas desistiu porque o medo de mais um custo com a redução de vencimento a fez apertar os cordões à bolsa. De manhã acompanhava a secção criminal de um dos programas da manhã, rodava entre os canais, comparava os comentadores.

Comia biscoitos que lhe tiravam a fome para o almoço.

Organizou a agenda para ter o que fazer: ia ler um livro por semana; ia fazer uma hora de exercício em casa; ia fazer receitas saudáveis, daquelas que demoram tempo a preparar.

Não fez nada disso. Pairou pela casa, deixou a impaciência crescer. Não se conseguia concentrar nos livros. Não tinha ânimo para o exercício, deixava os treinos a meio e dava por si a alongar com palitos salgados. Sempre que procurava uma receita saudável, encontrava uma mais rápida e mais prazerosa. Seguia pela última. Dizia a si mesma que começava no dia seguinte.

Quando o chefe marcou uma reunião por videochamada, arranjou-se. Já não vestia umas calças de ganga há mais de um mês. Tinham sido completamente substituídas por calças de fato de treino ou leggins.

Rapidamente se arrependeu.

- Vamos ter de fechar. Terás direito a fundo de desemprego e acredito que vais conseguir encontrar alguma coisa rapidamente.

Margarida não respondeu. Ficou apática. A culpa não era de César. Não era dela. Não era de ninguém. As coisas tinham acontecido assim e era preciso dar a volta. Perseverar, ouvia-se.

Mas era difícil desconstruir ideias quando só as paredes estavam disponíveis.

Com o tempo, a habituação e a repetição, as chamadas com as amigas começaram a ser mais rápidas. Tinham os filhos para atender, estavam fartas do ecrã. Desejavam estar no lugar de Margarida, sem filhos a aparecer não anunciados em reuniões. A ter de garantir que aprendiam a lição enquanto preparavam mais um relatório. Margarida tinha sorte. Não discutia com o marido que também já estava farto de estar em casa. Acabando isto deixo-o, já não o posso ver à frente, havia-lhe dito Lídia da última vez que falaram, logo depois de o marido chamar por ela porque o filho estava a aparecer numa reunião de trabalho importante e ele precisava que Lídia o controlasse.

Margarida passou o polegar pelo livro e fez correr as folhas. Sentiu o vento frio daquele leque. Tinham-lhe dito que era bom, mas não tinha vontade de o ler. Nem aquele nem nenhum.

Ligou a televisão e deixou que a cabeça fosse sugada para um programa de televendas. Jóias.

Alegadamente eram feitas de dezenas de cristais que vinham de sítios que Margarida nunca tinha ouvido falar. Ligue já, ligue agora, já temos poucas peças, dizia a mulher que segurava o anel. Manicura impecável. O anel fez-lhe lembrar uma peça antiga que o pai ofereceu à mãe e que esta detestou. Riu-se. A mãe era tramada. O pai tinha ficado de cara à banda naquele dia.

Repreendeu-se por estar ali há demasiado tempo, sugada num programa que só serve para engolir o dinheiro dos incautos. Voltou a olhar para o livro, ocorreu-lhe que um café poderia desencadear uma ponta de vontade.

Quando voltou com a chávena passou mais uns canais, deu com uma temporada antiga das Kardashians, impressionou-se que hoje, mais velhas, estivessem mais bonitas que na altura.

Deixou-se ficar a ver.

Joaquim está grávido de 24 semanas,...

05.04.21

tem as pernas inchadas e queixa-se de muito sono. A esposa, Maria Odete, aconselhara-o a deitar-se com as pernas para cima umas horas. Parece que com o Osvaldo, o marido da Graciete, funcionou bem quando esteve grávido dos gémeos, dissera-lhe.

Como se as pernas pesadas não fossem bastante, Osvaldo sente uma profunda tristeza por não ver o pirilau, a barriga tapa tudo e há mais de uma semana que nem em pé lhe mete os olhos.

A minha mãe rapou a margarida com a ajuda de um espelho antes de eu nascer. Vai na volta tens de fazer o mesmo, amor, esclarecera Maria Odete quando encontrou o marido desconsolado na casa de banho.

Urina múltiplas vezes à noite e por causa de mal ver o objeto já só o faz sentado, de cabeça pousada na mão, entregue à circunstância.

Maria Odete chega a casa amiúde à procura da ramboia que o marido, homem de dizer que sim, sempre providenciou em quantidade e qualidade. Tal acontece especialmente naqueles dias de trabalho mais leves no escritório, em que se fez pouco, não se receberam e-mails que dilatam as veias do pescoço e ainda se consegue passar no shopping para comprar um par de calças novo antes de seguir para casa.

Entra no carro e antes de comandar ao veículo que faça o caminho mais rápido para casa, reza para que Joaquim esteja bem-disposto, para que lhe apeteça dar umas cambalhotas. Maria Odete anda numa secura tal que o Lívio do arquivo, conhecido pelo mau hálito, lhe começa a parecer mais sensual do que seria de desejar. Maria Odete suspira e relembra-se que tem que apoiar o marido neste momento tão sensível da vida do casal, mas no seu âmago não percebe porque é que Joaquim não se esforça, porque não tenta mais, porque é que se deixa enlear naquela teia de ideias que só consideram chuchas e fraldas. É como se a vida que conheceram estivesse a ser assassinada a passinhos de bebé. Gostava que Joaquim fosse como o irmão da Valéria, sua amiga do ginásio. Não se recorda do nome dele, mas lembra-se bem de que, em conversa com Valéria quando as coisas começaram a descambar com enjoos e má disposição geral, esta lhe disse que com o irmão tinha corrido tudo pelo melhor, que tinha até aumentado o apetite sexual e que a cunhada andava nas nuvens com o desempenho do marido.

É tudo uma questão de usar pensamentos positivos. Sabes que o mindset é essencial para tudo, para treinar e para o resto da vida, rematou Valéria, personal treinar do corpo e coach da mente.

Nesse dia Maria Odete fez conversa com Joaquim, falou-lhe do irmão da amiga, deixou pairar no ar que, quem sabe, Joaquim poderia esforçar-se mais. Joaquim fez um estardalhaço a pousar os talheres, de tal forma que lascou um dos seus pratos prediletos da coleção que tinha comprado, em tons rosa-manteiga. Foi para a casa de banho chorar. Desejava que a esposa entendesse o momento frágil porque estava a passar em vez de o comparar aos outros. Arrependeu-se de ter aceitado ser ele a ficar com aquela responsabilidade, se Maria Odete estivesse no seu lugar é que ia ver como custa.

Joaquim perdeu a vontade, diz que a barriga o incomoda, que tem sono, que não se sente atraente, que lhe dói a cabeça, que está inchado. Anda por casa de um lado para o outro, nem troca o pijama. Joaquim está de baixa desde as 22 semanas, não conseguia lidar com o stress, a chefe dizia-lhe: as mulheres toda a vida fizeram isso, qual é a dificuldade? E ele, soterrado em tarefas e trabalho que lhe pediam que adiantasse antes da licença, acabou por ceder.

Estamos em 2054, os homens já geram bebés e as empresas ainda não têm consciência da sensibilidade de uma pessoa grávida, o que o desgaste e as hormonas podem fazer.

Joaquim inscreveu-se em vários grupos online para pais gestantes.

Maria Odete acha tudo aquilo um exagero. Quando decidiram ter filhos ambos fizeram os testes necessários para saber qual dos dois tinha mais saúde e condição física. Empataram. Então Maria Odete procurou informações aqui e acolá. Falou com colegas que, em reunião familiar, decidiram ser elas. Foi o relato da Jéssica da Contabilidade que a fez decidir terminantemente que, se queriam ter filhos, teria de ser Joaquim a ficar de esperanças. Não entregaria o seu pito em concreto a tal suplício.

Maria Odete chega a casa alegre e encontra Joaquim sentado no sofá, uma taça de gelado Ben & Jerry’s no colo, tem o robe sujo e a barba por fazer. Ainda não se penteou.

- Passaste o dia todo sentado aí, sem fazeres nada? Isso não te faz bem, estás a entregar-te à situação. – sentou-se ao lado de Joaquim e, ainda que lhe faltasse vontade e paciência para estar a lidar com aquele momento deprimente, logo naquele dia que lhe tinha corrido tão bem, afagou as costas de Joaquim e deixou que este chorasse e deitasse cá para fora todas as suas lamúrias. Afinal de contas, podiam achar o que quisessem, mas não era uma insensível.

 Joaquim falou das dores de costas, das insónias, dos receios do parto. Confessou que se achava feio, que parecia um balão. Disse, como quem pede para ouvir o contrário, que Maria Odete o devia achar um monstro assim, sem tomar banho, sujo de gelado, mal penteado.

Maria Odete não negou nem confirmou, limitou-se a emitir um humm que se queria reconfortante, fazia-o de forma maquinal enquanto pensava em Igor, o novo responsável de informática da empresa que a havia convidado para beber café. Belas tardes podiam estar ali.

Abanou a cabeça para afastar o pensamento, que ideia idiota, estar a pensar noutro homem quando o seu marido estava ali, com o seu filho no ventre, a pedir atenção.

Ofereceu-se para lhe preparar um banho com sais, cheiro a baunilha. Mesmo como Joaquim gostava.

Deixou Joaquim na banheira, com água morna, a relaxar. Abriu uma garrafa de vinho e encheu um copo de pé alto. Recostou-se na maquina de lavar loiça a pensar na vida e no que ainda estaria para vir depois de o bebé nascer se agora já era assim.