Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Exercício de escrita

O chiar da máquina velha já não lhe causa transtorno.

27.05.21

Elétrico.JPG

 

Transporte de outros tempos, gáudio dos turistas. Ao princípio, quando ouvia o barulho de ferro prensado contra ferro, numa travagem que parecia garantida pela força braçal, aterrorizava-se. Agora é como se o som não existisse, faz parte dele como o cantar dos pássaros faz parte da vida da mãe, sentada na varanda, à espera que a velhice acabe, a última casa do jogo.

Olha em frente, estende a mão para que paguem os bilhetes, guarda as moedas, faz o troco, estende a mão de novo, arranca antes que tenham tempo de se sentar. Que se agarrem aos assentos como ele se agarra ao volante para que o que resta da vida não abane o que lhe falta para se deixar cair.

Quando o semáforo fica vermelho olha para o mar de gente que pulula o Chiado. Detém-se na miudagem, não tiveram aulas à tarde, juntam-se em grupos, radiantes num sentimento de rebeldia por estarem onde não devem sem que os pais saibam, felizes pela liberdade que sopra as primeiras brisas nas asas inexperientes. Aquela é a maior sensação de liberdade que terão, sabe-o e sabe também que ainda vivem alegres, enquanto estiverem alheios à dureza da vida. Uns terão mais sorte que outros, terão pais para alavancar as amarguras, que lhes dirão para aguardar por melhores oportunidades, que nada faltará em casa, que os ténis e as roupas continuarão a aparecer, que se arrisquem no estrangeiro, quem sabe numa multinacional, que lhes paguem cursos complementares, que falem com este ou aquele amigo a ver se há uma aberta lá no escritório, que o miúdo é novo, mas amadurecerá e será um bom funcionário. Esperto que só ele. Outros ter-se-ão a si para talhar o caminho, um ou outro sopro de sorte. De meia dúzia lá se formará um, os outros arranjarão empregos aqui e acolá, desejosos de ter o seu dinheiro, certos do falso conforto que meia dúzia de euros lhes trará, afinal de contas já podem sair à noite, pagar a carta de condução, comprar um carro em segunda mão que vão pagar numa mão cheia de anos. Uma mão cheia de anos não parece nada quando nem vinte anos temos. Vão estar contentes porque é certo, porque é sempre igual e nada tem que saber. Foi assim com Manuel.

A mãe dizia-lhe que a escola estava em primeiro lugar, mas os amigos tinham o que ele não podia ter, então arranjou os primeiros biscates. A escola passou para segundo e ele passou a pertencer ao grupo. Os ténis novos, a camisola de marca. Os outros avançaram e ele foi ficando para trás. Até tinha jeito. Boas notas a matemática e mal estudava. Podia ter sido alguém. A frase que se repetia, na sua cabeça e nas bocas de quem o conhecia em miúdo. Podia ter sido alguém. Como se se tivesse perdido nas drogas. Não tinha. Deixara a vida empenar-se num trabalho sempre igual. Nada de mal havia nisso. Tirando o carrocel dos dias, a invisibilidade de quem passa e não compreende que não é má cara, é amargura.

O tio conhecia gente na Carris, lá um supervisor. Estavam a contratar e aquilo era emprego certo, ordenado sem falhas, contrato a valer, nome dos quadros. Papelada que se entrega no banco para comprar casa com a moça com quem se casa numa festa humilde lá para os lados de Alfama, a tia dela até canta uns fados e com alegria tudo se faz.

A mãe sentada ao canto, finge uns sorrisos. Tudo se faz, mas o meu Manuel podia ser alguém. Como se a vida, se pequena e comum, devesse condenar-se à insignificância.

Meteram-no no elétrico, que era a aletria de turistada. Não havia nada que saber, era subir e descer, bom pé para o pedal, dar conta da máquina velha que os camones gostavam era do que era típico, autocarros de ar condicionado tinham lá eles. E assim passava o dia, os que andavam de cá para lá a trabalho, que paravam para dois dedos de conversa. A boleia ocasional à Matilde da tabacaria que só ia para os lados do Martim Moniz de quando em vez.

Os filhos chegaram cedo e Rosa, sempre que tinha folga ao fim de semana, lá pegava nos miúdos para os levar a ver o pai que andava para cima e para baixo no 28. Encantados faziam da carroçaria velha o que a imaginação lhes permitia. Orgulhosos do pai, ao leme daquela máquina importante que levava as pessoas onde lhes custava a chegar. Manuel ria, Rosa também. Mas os miúdos foram crescendo, Manuel foi ficando calvo, Rosa foi-se cansando das alegrias banais de fim de semana. Manuel ali, num sobe e desce com a maquineta. A vergonha dos filhos ao pé dos amigos. O teu pai podia deixar-nos em Santa Luzia, íamos dar uma volta, subíamos ao Castelo. Mas o pai não podia encher o elétrico com gaiatos que não pagavam, se lhe aparecesse o revisor via-se num imbróglio. Um ou dois ainda vá que não vá. Mas sete ou oito.

Então subiam a pé.

Às vezes, quando Manuel os via abrandava para lhes dizer adeus. Depois percebeu que incomodava. Passou a olhar em frente. Sempre a direito.

Podia ter sido alguém. Tempos houve em que a frase não lhe fazia sentido. Seria sempre alguém. Mas nestes dias, nestes momentos, naqueles em que os filhos viam através dele como se não existisse, dizia para si: podia ter sido alguém. Podia ser de carne e osso ao pé dos meus filhos que fingem não me ver.

Nunca lhes disse nada. Um dia a vida poderia ensina-los. Ou não. Em calhando fariam as escolhas certas, daquelas que, polvilhadas com alguma sorte, fariam deles alguém.

 

Levantava-se sempre à mesma hora. Tomava banho. Se tivesse turno de manhã vestia a roupa azul, tomava o pequeno almoço com a mulher. Não trocavam palavras. Orientavam-se numa dança de rotinas. Podia repetir todos os passos mesmo que ela não lá estivesse. Saía com o jornal debaixo do braço, apanhava o autocarro até Campo de Ourique, rendia o colega.

Quando não entrava ao serviço, estendia a hora do pequeno almoço, lia o jornal, fazia as palavras cruzadas, olhava da marquise a vida das velhas na vizinhança, aquelas que iam passando ao largo da morte e ainda alimentavam o bairrismo na avenida. Saía para ver a mãe que lhe contava das filhas destas e dos filhos daquelas. Uns, coitados, para quem a vida não tinha sido amiga, outros que eram alguém. Tu também podias ter sido, mas mesmo assim não te deste mal.

Manuel vai deixando de ouvir a mãe, as palavras transformam-se em sons indistintos, uma musiqueta irritante que, tal como o som dos travões do elétrico, já não o incomodam.

Olha para a rua e vê um vizinho novo a passar com o cão. A mãe comenta que isto agora são os camones e os avecs a comprar tudo, só estrangeirada e gente de dinheiro. Manuel pensa que um dia há de arranjar um cão. Que o irá passear pelas ruas estreitas com a roupa de fim de semana, como se fosse alguém.

- Tem-se sentido mais agitada ultimamente?

22.05.21

- Não. Penso que não. Às vezes ando numa correria, mas já é normal, não diria que me sinto mais agitada.

Ri-me embaraçada. Que raio de pergunta. Deixou-me a pensar, meio perdida. Mas não, abanei a cabeça para afugentar as ideias que iam surgindo. Não andava mais agitada. Sempre fui uma pessoa calma e organizada. Tinha as coisas sob controlo.

- Tem tido mais stress? Problemas que a andem a preocupar mais do que é costume?

- Não mais do que o habitual.

Nunca parei para pensar nisso. Se ando sob stress? Sei lá eu. As coisas vão aparecendo. É o normal nos dias de hoje. Os filhos, a trabalho, as coisas que tentamos fazer à parte disso para não ser só casa-trabalho.

- Os seus exames não mostram nada de preocupante. O coração está ótimo. As análises estão boas e o resultado da TAC também não mostra nenhum problema.

- Isso é bom, não é?

- É, sem dúvida. Mas…este episódio é a primeira vez que lhe acontece?

- Sim, por isso é que pensei o pior. O meu pai tem alguns problemas de coração e confesso que tive medo. Tenho dois miúdos pequenos que precisam da mãe.

- Compreendo. Devia ficar uns dias em casa. Parar. Deixar que os outros cuidem das tarefas por si. Descansar.

- Não posso fazer isso, doutora.

- Se continuar assim vai ser complicado. Vou passar-lhe aqui uma coisa para aliviar um pouco a ansiedade…

- … eu não sou uma pessoa ansiosa.

- … ainda assim. Vou passar-lhe uma coisa para a ansiedade e vou passar-lhe os papéis para que fique em casa nos próximos quinze dias. Acho que lhe fazia bem.

Estendeu-me duas folhas e disse-me estar disponível se eu precisasse dela outra vez.

 

O despertador tocou às seis da manhã. Pedi-lhe mais cinco minutos, só mais cinco. Mas não voltou a tocar e acordei meia hora depois. Saltei da cama. Tinha pensado em adiantar alguns e-mails antes de acordar os miúdos, mas já não ia dar. Amanhã começo e faço aquilo que dizia no livro que li. Fui casa de banho e mandei água fria para a cara. Abri os estores, corri os cortinados. Meninos está na hora de acordar, vamos levantar para tomar o pequeno almoço. Um queria mais tempo, o outro não se queria levantar. Ralhei. Ralhei. Voltei a ralhar. Gritei. DESPACHEM-SE! Levantaram-se insatisfeitos. Para que é isso mãe? Encostei-me ao balcão da cozinha, respirei fundo. Tinha dormido mal. A cabeça estava zonza, pensei que era falta de café. Liguei a máquina. Pus a mesa. Preparei a roupa para vestir. Os collants rasgaram-se. Não tinha outros da mesma cor. Escolhi um vestido diferente. Entrei na cozinha e já estavam a comer. Devagar, muito devagar. O pai está a fazer noite esta semana. Chegará pouco depois de termos saído. Bebi o café sem nada. Peguei-me com eles mais três vezes para que lavassem os dentes e se vestissem para sair. Olhei para o relógio. Não ia chegar a horas, logo hoje que precisava de fazer sair aquele e-mail à primeira hora da manhã. Está tudo bem. Tem de estar. Saímos. A vizinha de baixo parara o carro e estava a bloquear o meu. Buzinei. Estúpida de merda. Apareceu dizendo: esqueci-me dos óculos de sol, não consigo conduzir sem eles. Seguiu lenta e airosa. Arrancámos. Porta da escola. Beijinho à mãe, um bom dia, até logo. Fila. Mensagem: sempre consegues aquele relatório até ao final do dia? Sim, a resposta é sim, claro que sim. Telefone a tocar. .

Olá filha.

O que é que precisas a esta hora, mãe?

Tenho de falar contigo, o teu pai anda com a tensão muito alta e sabes que ele tem problemas de coração, não quer ir ao médico.

E o que queres que faça?

Que fales com ele, que lhe metas juízo na cabeça.

Tá bem, ligo-lhe mais logo, agora tenho de ir.

Ligar ao pai. Registei na agenda para não me esquecer. Estava quase a chegar. Tinha de mandar aquele mail. Tinha de acabar o relatório. Tinha de marcar as consultas de rotina dos miúdos. Tinha de marcar dentista. Tinha de aproveitar à hora de almoço para comprar alguma coisa para o jantar. Tinha de ligar ao meu pai. Tlim Tlim. Notificação do Facebook: a Angela faz anos hoje, dá-lhe os parabéns. Esqueci-me que a minha irmã. Corri para cima. Liguei o computador que pareceu mais demorado do que nunca. Abri o e-mail. Escrevi e reescrevi cinco vezes o conteúdo. Merda, parece que hoje nada me sai bem. Eu sei isto. Eu consigo compor esta mensagem. Vamos lá. As mãos pareciam meio trémulas. Lembrei-me que não comera de manhã. Este fim se semana os miúdos podiam ir passar o fim de semana aos avós, precisamos de descansar. De não fazer nada. De não limpar, pôr roupa a lavar ou arrumar brinquedos perdidos. Mas este fim de semana combinamos que os levávamos ao cinema, se calhar no próximo. Para a semana organizo-me melhor. Agora concertação. Mandei o e-mail. Sentei-me indecisa: o que fazer a seguir quando tudo tinha se ser feito ao mesmo tempo. Recebi uma mensagem da escola, sobressaltei-me. Abri e era só a despesa do ATL. Que estupidez. Penso sempre o pior. Braços partidos, cabeças escaqueiradas. Ultimamente parece que me sobressalto com tudo. Vê se te acalmas, Mariana!

Passaram a Joana e a Carla, falavam do ginásio, do fim de semana na Comporta, da conta de Instagram da Luísa com mais de dez mil seguidores, já lhe pagavam para comer iogurtes. Olhei para a minha blusa, tinha manchas de iogurte, não saíram com a última lavagem e eu nem tinha reparado. Comecei a suar. Abanei-me com um umas folhas de rascunho. Estava a ficar tudo turvo, mas só podia ser só uma quebra de tensão. Comi uma fruta passada que tinha na mala. Ando sempre com isto por causa dos miúdos. Não passou. O peito apertou. Um desconforto. Seria do soutien? Não me sentia bem. O coração estava acelerado e comecei a ficar em pânico. Isto não é normal. Não me digas que é assim. Entre tarefas logísticas e comezinhas que me fico. Nem disse aos miúdos que os amava. O peito apertou mais, a respiração parecia-me mais difícil. Meti a cabeça entre as pernas. A Clara espreitou por cima do monitor e perguntou-me se estava bem.

- Tenho dores no peito. Acho que se está a passar alguma coisa.

- Vou buscar um copo de água.

Água com açúcar, soube-me bem.

- Vamos apanhar ar.

Fomos. Saímos lá para fora. Inspirei com força. O ar parecia não entrar. Comecei a lutar contra as lágrimas.

- Não estou bem.

Pegou-me pelo braço e arrastou-me até ao carro. Ouvi-a dizer:

- A Mariana não se sente bem, vamos às urgências.

 

Sento-me na cozinha com a receita à frente.

Se calhar eu não consigo fazer tudo.

Desafio dos pássaros 3.0 - Tema 2

21.05.21

A reunião PEE ia ser na casa da Branca de Neve. Ariel foi a primeira a chegar, situação que desagradou a anfitriã, já que a princesa dos mares fazia corta mato pelo Tejo e chegava à Moita encharcada. Os cabelos ainda pingavam bastante e deixavam poças de água por onde passava, coisa que ensandecia a dona da casa, que ainda estava a pagar o empréstimo para obras que usou para comprar aquele chão flutuante de qualidade mediana.

- Ariel, põe-te na alheta para o quintal, serve-te de um conhaque e mete a mona ao sol. A ver se secas essa trunfa farta que até me mete nojo! – Branca de Neve não sabia o que a arreliava mais, se o facto de aquela cabra aquática ter uma vida aparentemente livre de stress e por isso não apresentar qualquer queda de cabelo, se a inocência em vinha de alhos de burrice, que acalentava aquela falta de noção absoluta. Enquanto as outras princesas apareciam com os filhos agarrados as saias, Ariel tinha as irmãs que lhes ficavam com os miúdos. Parou a olhar para Ariel, que estava que cheirava as buganvílias e imaginou-se a acender o carvão e a grelhar-lhe a cauda.

O toque da campainha arrancou-a desse quase sonho. Chegavam Pocahontas e Cinderela, ambas com as crianças agarradas às pernas.

- Meninos, a tia Branca preparou guloseimas e colocou tudo numa mesa no quintal. – a criançada ficou histérica saiu a correr, quais animais selvagens.

- Mãezinhas, conhaque ou Whiskey? – perguntou Branca erguendo as duas garrafas.

- Um de cada. – respondeu Cinderela, sendo que Pocahontas acenou em confirmação de que o seu pedido era igual.

O grupo PEE representava as “Princesas em Estrume”. Mulheres que um dia haviam feito parte do imaginário encantado de muitas gerações e que hoje, depois do pífio “felizes para sempre” viviam enredadas na vida desgastante e comezinha de sempre.

Os príncipes, depois do beijo do verdadeiro amor, queriam ver a bola, evitavam trocar fraldas e achavam que as fases das mulheres duravam muito tempo.

Criaram o grupo depois do divórcio da Bela com o Monstro. Coisa que rolou água já que nas partilhas o tipo não queria rachar 50/50 os bens adquiridos depois do matrimónio.

Ouviu-se algo a apitar.

- Merda, são as bolachas que tenho no forno. Fiz normais para os miúdos e para nós com ervas aromáticas. – piscou o olho. Todas sabiam o que eram aquelas ervas.

Ariel estava a entrar na sala quando sentiu o cheiro e viu Branca passar com uma bandeja de bolachas.

- Meninos, bolachinhas acabadas de fazer.

Ariel esbugalhou olhos.

- Branca, chamon para as crianças!?

Branca nem se deu ao trabalho de responder. Não lhe faltava vontade de os sossegar, mas não era choné para isso. Até porque se um dos miúdos respondesse mal à aromatização, depois como é que se explicava aquilo em contexto judicial?

Foi quando Ariel a viu abrir uma segunda porta de forno que se apercebeu. Muito se cozinhava naquela casa para haver eletrodomésticos em duplicado.

Apontamento sobre escrita

20.05.21

Tenho uma relação de amor com a escrita. Sim, apenas assim, uma relação de amor sem a aspereza do ódio. Nunca sinto ódio para com a escrita, o único sentimento mais desagradável que a conjugação de palavras me causa acontece quando tenho de dar ao dedo para criar um texto que me enfada até a mim. De resto, a minha relação com a escrita é sempre de amor. No entanto, apesar desta relação romântica com as palavras, confesso que me sinto amedrontada, magoada, frágil até quando as palavras insistem em não aparecer na medida, composição e estrutura que eu desejaria. Ou quando leio outros que as entrelaçam com tamanha mestria que me faz pensar: que imbecil, então não viste logo que esta era a forma certa.

Escrevo para entreter a cabeça, para buscar concentração, para me obrigar a dizer bem o que nem sempre se estrutura da melhor forma numa mente irrequieta.

Escrevo e guardo. Escrevo e pondero se publico (na internet entenda-se, vide nome na ficha técnica, Saramago does not live here).

Escrevo e ponho de parte, logo vejo o que lhe faço.

Quantos anos dura uma vida?

15.05.21

Dez? Vinte?

Erros. A morte para alguém tão jovem devia ser proibida por uma lei divina, universal, uma impossibilidade científica.

Trinta?

Com a vida por viver. Os projetos quase iniciados, agora a ganhar alavancagem, as frases que se sussurram nos funerais: tinha tudo para ser, uma pessoa dedicada, estava a começar a assentar no trabalho, estavam a pensar em filhos.

Quarenta?

Logo ali, no meio da crise, onde não se é velho nem se é novo. Um número que nos deixa indecisos. O número já vai grande, mas ainda falta muito.

Cinquenta?

Quando já aceitámos as dores e os exames de rotina. Esperamos que os filhos saiam de casa e possamos descobrir quem crescemos para ser, agora que a casa seria só nossa outra vez. O que fazer com os quartos vagos? O que fazer ao tempo sem as tarefas em catadupa? Sem os miúdos a gritar onde está isto e aquilo.

Sessenta?

Os netos pequenos. As trapaças que nos parecem tão mais leves, agora que são eles a perpetra-las. Castigávamos os pais por menos. Muito menos. Tínhamos a responsabilidade de criar um ser decente. Agora essa responsabilidade é deles. Nós pouco estaríamos cá para ver. Íamos passear, mas de vez em quando lá ficávamos a tomar conta dos pequenos porque os pais têm de continuar a ser crescidos. Deixávamos o fim de semana fora para depois e, secretamente, nada lamentávamos.

Setenta?

A idade que já não viste. O par de algarismos redondos que começa com o sete da sorte. Os netos já crescidos, capazes de abraços sentidos, os braços que nos envolvem com a destreza que em tempos nós abraçámos os nossos.

Pregaste-me a mais maléfica das partidas, foste sem mim, antes que eu tivesse tempo de fazer as malas e dizer: espera que se te vais eu vou também. Não fico a fazer nada sozinho. Esta é a tua casa, as tuas assoalhadas, os teus cantos, o teu jardim. Eu moro onde tu moras.

Quantos anos dura a vida?

Há quem diga que não se conta em anos. O que pesa para o cálculo são as experiências, as viagens, aquilo em que arriscámos, os saltos para o mar, os mergulhos na água gelada, a insatisfação permanente que engana a morte convencendo-a de que ainda não acabámos o que temos cá para fazer, só mais um bocadinho.

Só mais um bocadinho, era essa a quantidade de tempo que queria ter-te por cá, sentada ao meu lado, para me dizeres que não devia lanchar uma cerveja com tremoços, que me causa inchaço e faço mal a digestão. Passo mal a noite. Só mais uma pitada de tempo, para me relembrares que voltei a deixar a máquina do café ligada, a luz da casa de banho acesa, as meias do avesso na cesta. Só mais uns instantes, que alongaríamos para dias e esticaríamos para semanas que se transformariam em meses. Para descermos a avenida de braço dado. Tínhamos combinado que o faríamos curvados e eu, ainda que velho, mantenho-me direito. Faltaste ao prometido, como diz aquela música do Rui Veloso, aquele miúdo de guitarra e cantigas que te embalavam.

Quantos anos dura uma vida?

Devia estender-se por tantos quantos preciso de ti a meu lado. Sentada a fazer caretas para o programa da televisão sempre que passavas para regar as plantas.

Vou ao jardim e falo com elas. Deitei cada pedaço das tuas cinzas naquele canteiro, perto dos amores perfeitos, dos brincos de princesa, dos malmequeres. Por baixo das buganvílias. Era ali que gostavas de estar. E ali ficas, a cuidar delas, de dentro para fora, cada dia mais bonitas. Aflijo-me quando as vejo secar, são o que resta de ti e destroça-me ver cair cada pétala. Mas a Primavera trá-las de volta e animo-me. Converso. Pouco, como bem sabes. Mas converso. Falo contigo, mas não respondes e se não respondes não és tu, porque tu, minha velha, sempre tiveste argumento para tudo. Dizia-te duas palavras, fazias correr um rio de assunto.

Os miúdos hoje vêm cá a casa. Eles, os netos, a nora e o genro. Filhos também. Vão sair para o jardim, vão trazer mais flores para que me entretenha. Parece-me que as trazem para ti, mas deixam-nas as minhas mãos, aquele que ainda fala contigo. Ligação privilegiada.

Vão comer, vamos rir, vou olhar para onde te sentavas e sentir culpa pelo meu riso. Vou lamentar não ouvir aquela gargalhada estridente. O nosso mais velho tem isso. Faz-me lembrar-te. E isso, depois de me ter custado, passou a ser bom.

Vou fazer de conta que fico bem, para que sigam descansados. Cumprirei sempre o nosso acordo. Nunca seriamos fardos para eles. Vou dizer que não quero que arrumem a cozinha. Vou entreter-me com os pratos e a esfregona. Vou sentar-me lá fora, contar-te como foi em casa, à mesa, se gostaram do cabrito.

O nosso neto vai para o quinto ano. Os pais cheios de medo.

Lembras-te como foi para nós quando o pai dele mudou de escola? Rio-me. Preocupações de quem não sabe.

Volta o silêncio.

Depois penso, quantos anos dura uma vida?

É que a minha acabou com a tua e estou só à espera que me chames.

Desafio dos pássaros 3.0 - Tema 1

07.05.21

- Artur Etelvino da Fonseca Matos, desce já dessa estante antes que eu te espete com uma lamparina nas ventas. – gritou Cinderela da cozinha enquanto se esforçava por conter a água fervente que vertia uma espécie de gosma, como se um vulcão em tons de branco sujo se esforçasse por escagaçar o fogão todo. Cinderela, antes donzela bem-parecida, agora mãe cansada a tempo inteiro, estava a tirar do nariz do filho mais novo um berlinde, tendo-se esquecido completamente de que tinha um tacho ao lume.

Artur desceu da estante sem partir nada, mantendo inclusivamente os ossos e dentes intactos, o que, parecendo um exagero da narradora, demonstrou ser uma verdadeira proeza para o petiz que, no espectro da sua fofice, era um exímio profissional do desembestamento.

Cinderela olhou para a casa e ocorreu-lhe apenas a simples frase: um dia passo-me dos cornos.

Brinquedos fora do lugar. O cesto da roupa que aparentava vomitar calças de fato de treino e peúgas com desenhos amarelecidos dos dedos que as tinham calçado. Os miúdos que corriam e batiam contra os móveis. Praticamente selvagens que nem as regras da natureza respeitavam. Cinderela recordava-se de ter visto um documentário sobre hienas onde as crias copiavam os comportamentos da progenitora, respeitando a sua posição. Mas aquelas, as suas, só podiam sair ao pateta do pai.  

Olhou-se ao espelho, a beleza ainda lá estava, mesmo que mais baça, adornada de olheiras fundas e cabelos que não viam escova.

A campainha tocou e apareceu o sapo Jacinto. Tinha ido à cidade para entregar uns documentos nas finanças com vista a pedir uma extensão de prazo no pagamento do IVA, aquele episódio com moscas moleironas afastou muitos clientes do restaurante e as contas andavam pela hora da morte. Quando passou à porta da casa de Cinderela achou que poderia dar um olá à amiga, beber um café e tirar mais alguns nabos da púcara. Afinal de contas, quando um anfíbio se põe à coca numa fila, pode chegar à sua senha com muitas pontas soltas.

- Então Cindy como é que vai isso? Andava pelas redondezas e vim fazer-te uma visita e matar saudades das nossas conversas e dos teus anjos. É sempre um gosto estar convosco. – Jacinto ia falando enquanto entrava e pousava o chapéu no bengaleiro. Falava devagar e olhava à volta, num misto de espanto e susto. A casa estava de pernas para o ar, dois dos miúdos corriam desenfreados pela casa e o terceiro estava ao colo da mãe, que trazia um cigarro por acender no canto do lábio.

- Põe-te à vontade, vou pousar este no parque e fazer um café. MENINOS, VENHAR DAR UM BEIJINHO AO VOSSO TIO JACINTO! – virou costas, tirou o tacho do lume e ligou a máquina de café.

Jacinto esperou que Cinderela se sentasse, acedesse o cigarro e desse a tão necessária passa.

- Sabes com quem estive à conversa esta manhã? Vê bem que encontrei a cunhada da irmã do Válter. Como é que ele anda?

Confirmou a morada pelo menos dez vezes.

04.05.21

Olhava para o recorte de jornal meio amarfanhado que trazia dentro da mala no meio de todos os pertences de uma adolescente desorganizada.

Olhava para o prédio decrépito que parecia à beira da ruina a qualquer instante.

Olhava para o pedaço de papel e relia a morada para ter a certeza de que estava no sítio certo, caminhava até à tabuleta da rua e certificava-se de que sim, estava onde devia estar e o número da porta batia certo.

Olhava para o prédio e dizia para consigo que não podia ser, que a agência de castings não podia estar naquele lugar.

Para tirar a limpo decidiu tocar para o andar identificando no anúncio. Estava certa de que lhe iam dizer que tinha havido um erro, de que o jornal só podia ter feito trapalhada, que ligasse para lá a reclamar. Melhor, ninguém ia aparecer para lhe perguntar «Quem é?» no intercomunicador. Aquilo nem devia ter intercomunicador. E quem é que se arriscava a estar ali dentro, naquela torre à beira do colapso que só podia estar impregnada de cheiro a bafio.

- É para o casting? – responderam para sua surpresa poucos minutos depois de tocar.

- Sim.

- Vou abrir a porta. Tá um bocado perra, tem de dar uma trancada nisso p´abrir tá bem?

Ouviu-se um besourar, alguém carregou para destrancar a porta e desligou antes de Anabela confirmar que de facto tinha mesmo conseguido abrir a porta. Valeram-lhe os fins de semana com a mãe nas limpezas do armazém do Shôr Bilhas, a esfregar chão e paredes. Tinha uns bíceps de fazer inveja às artistas de cinema.

O cheiro foi totalmente ao encontro do que Anabela esperava: uma mistura de velhos em fase terminal, gatos a dar as últimas e ocasionais baratas que se alimentavam do que os velhos e os gatos já não queriam.

Numa porta entreaberta podia ver-se uma placa cor de rosa e branca com um logótipo igual ao que estava no anúncio do jornal «Frescas e Fofas – agência de modelos e artistas de variedades».

Anabela empurrou a porta que rangeu para assinalar a chegada de mais uma candidata.

- Preencha esta folha e quando estiver pronta entregue-me para que a ponha na lista.

Uma mulher de cabelo loiro mal pintado e raízes num misto de branco com castanho escuro andava atarefada pelo hall de entrada do apartamento transformado em escritório-barra-agência-barra-empresa. Trazia umas botas pretas de cano alto que não apertavam até ao fim e estavam presas no cimo com um alfinete de dama. As botas terminavam quando começavam as calças de bombazina com padrão de vaca leiteira, um padrão que deixava claro que uma experiência doméstica tinha corrido mal com aquele tecido. A maquilhagem era carregada, os dentes amarelos de muito tabaco e pouca pasta, e a voz deixava claro que aquele corpo inalava um mínimo de dois maços de SG Ventil por dia.

Anabela entregou a folha preenchida à mulher loira.

- Sente-se ali, o maneta já a atende.

Anabela sentou-se na cadeira de plástico e olhou à volta, mulheres de todos os tipos de feitios, menos daquelas que se veem no cinema, nas novelas, nos anúncios de televisão ou abraçadas a jogadores de futebol.

Tinha hipóteses.

- Anabela Cruz!

Foi a mulher loira que a chamou depois de limpar duas vezes a garganta numa procura infrutífera de a aclarar do som do tabaco. Seria atendida no gabinete ao fundo da sala, onde iria ser avaliada a sua ficha para um potencial estrelato.

Quando entrou na sala deparou-se com um homem pequeno, calvo no topo da cabeça, mas fortemente abastecido numa espécie de coroa que adornava o contorno da cabeça.

Anabela notou que o homem estava atarefado a negociar trabalho para os seus agenciados. Ficou tão embevecida que só quando este lhe apontou com o coto direito a cadeira para se sentar é que deu conta que o homem era mesmo maneta e maneta a duplicar porque não tinha nenhuma das mãos.

O careca que também era maneta e aparentemente não menos agente, suspirou face ao término do contacto, e depois de uma agastada luta para desenroscar a tampa da garrafa de água, da qual bebeu meia dúzia de goles, lá deu atenção a Anabela.

- Desculpe lá esta azáfama, menina, mas sabe como é, toda a gente confia aqui no maneta. O meu nome é Francisco Simão, mas todos me tratam por Chico maneta ou só maneta mesmo. Não há canal que não me ligue, sou o rei dos figurantes.

Anabela sorriu encantada. Ia ser agenciada pelo rei dos figurantes. Não tarda nada era protagonista de uma novela.

- Calculo que o que a trouxe por cá foi o anúncio de jornal.

- Isso mesmo. Tenho um grande sonho de ser atriz de telenovelas e temos de começar com pequenos passos, não é?

- Claro que sim. Não sei se percebe bem o que é que a gente faz aqui. Repare, eu não agencio modelos, nem atrizes, nem coisa parecida. Eu aqui tenho uma carteira de bate-palmas. Sabe o que são bate-palmas menina Anabela?

- Não, confesso que nunca ouvi a expressão.

- Um bate-palmas é um figurante. É uma pessoa que vai assistir a um programa da manhã e está lá de corpo presente a papar com aquela seca e bate palmas quando alguém manda.

- Ok, mas é um passo, não é?

- Não, menina Anabela, na verdade não é. Mas não é por isso que não a ponho na minha lista e se houver um trabalho para si eu ligo-lhe. Preciso da sua morada, da sua idade, de uma fotografia de corpo inteiro e que pague cinco euros para a inscrição.

- Não sabia que tinha de pagar uma inscrição, pensei que os castings eram gratuitos.

- E são menina Anabela, mas no seu caso tenho de processar a fotografia e tenho de a pôr aqui nesta pilha ao meu lado e esse tratamento tem um custo.

Anabela pagou os cinco euros, entregou a fotografia, deu a morada e nunca foi contactada, até porque, tal não era o entusiasmo, nem se deu conta, mas de todas as informações que lhe pediram, um número de contacto não foi uma delas.

Antes de sair do apartamento-barra-escritório-barra-agência ouviu o maneta a chamar pela mulher loira cujo nome parecia tirado de um teatro de revista, estava a dizer-lhe para levar aqueles cinco euros que estavam em cima da secretária e ir lá abaixo comprar um maço de tabaco e dois cafés.

Suspeitou que provavelmente tinha sido enganada, ocorreu-lhe de poderia voltar atrás para confrontar o velhaco, mas na cabeça apenas lhe martelava a dúvida: como é que o sacana do maneta, sem uma única mão, vai segurar na merda do cigarro?