O chiar da máquina velha já não lhe causa transtorno.
Transporte de outros tempos, gáudio dos turistas. Ao princípio, quando ouvia o barulho de ferro prensado contra ferro, numa travagem que parecia garantida pela força braçal, aterrorizava-se. Agora é como se o som não existisse, faz parte dele como o cantar dos pássaros faz parte da vida da mãe, sentada na varanda, à espera que a velhice acabe, a última casa do jogo.
Olha em frente, estende a mão para que paguem os bilhetes, guarda as moedas, faz o troco, estende a mão de novo, arranca antes que tenham tempo de se sentar. Que se agarrem aos assentos como ele se agarra ao volante para que o que resta da vida não abane o que lhe falta para se deixar cair.
Quando o semáforo fica vermelho olha para o mar de gente que pulula o Chiado. Detém-se na miudagem, não tiveram aulas à tarde, juntam-se em grupos, radiantes num sentimento de rebeldia por estarem onde não devem sem que os pais saibam, felizes pela liberdade que sopra as primeiras brisas nas asas inexperientes. Aquela é a maior sensação de liberdade que terão, sabe-o e sabe também que ainda vivem alegres, enquanto estiverem alheios à dureza da vida. Uns terão mais sorte que outros, terão pais para alavancar as amarguras, que lhes dirão para aguardar por melhores oportunidades, que nada faltará em casa, que os ténis e as roupas continuarão a aparecer, que se arrisquem no estrangeiro, quem sabe numa multinacional, que lhes paguem cursos complementares, que falem com este ou aquele amigo a ver se há uma aberta lá no escritório, que o miúdo é novo, mas amadurecerá e será um bom funcionário. Esperto que só ele. Outros ter-se-ão a si para talhar o caminho, um ou outro sopro de sorte. De meia dúzia lá se formará um, os outros arranjarão empregos aqui e acolá, desejosos de ter o seu dinheiro, certos do falso conforto que meia dúzia de euros lhes trará, afinal de contas já podem sair à noite, pagar a carta de condução, comprar um carro em segunda mão que vão pagar numa mão cheia de anos. Uma mão cheia de anos não parece nada quando nem vinte anos temos. Vão estar contentes porque é certo, porque é sempre igual e nada tem que saber. Foi assim com Manuel.
A mãe dizia-lhe que a escola estava em primeiro lugar, mas os amigos tinham o que ele não podia ter, então arranjou os primeiros biscates. A escola passou para segundo e ele passou a pertencer ao grupo. Os ténis novos, a camisola de marca. Os outros avançaram e ele foi ficando para trás. Até tinha jeito. Boas notas a matemática e mal estudava. Podia ter sido alguém. A frase que se repetia, na sua cabeça e nas bocas de quem o conhecia em miúdo. Podia ter sido alguém. Como se se tivesse perdido nas drogas. Não tinha. Deixara a vida empenar-se num trabalho sempre igual. Nada de mal havia nisso. Tirando o carrocel dos dias, a invisibilidade de quem passa e não compreende que não é má cara, é amargura.
O tio conhecia gente na Carris, lá um supervisor. Estavam a contratar e aquilo era emprego certo, ordenado sem falhas, contrato a valer, nome dos quadros. Papelada que se entrega no banco para comprar casa com a moça com quem se casa numa festa humilde lá para os lados de Alfama, a tia dela até canta uns fados e com alegria tudo se faz.
A mãe sentada ao canto, finge uns sorrisos. Tudo se faz, mas o meu Manuel podia ser alguém. Como se a vida, se pequena e comum, devesse condenar-se à insignificância.
Meteram-no no elétrico, que era a aletria de turistada. Não havia nada que saber, era subir e descer, bom pé para o pedal, dar conta da máquina velha que os camones gostavam era do que era típico, autocarros de ar condicionado tinham lá eles. E assim passava o dia, os que andavam de cá para lá a trabalho, que paravam para dois dedos de conversa. A boleia ocasional à Matilde da tabacaria que só ia para os lados do Martim Moniz de quando em vez.
Os filhos chegaram cedo e Rosa, sempre que tinha folga ao fim de semana, lá pegava nos miúdos para os levar a ver o pai que andava para cima e para baixo no 28. Encantados faziam da carroçaria velha o que a imaginação lhes permitia. Orgulhosos do pai, ao leme daquela máquina importante que levava as pessoas onde lhes custava a chegar. Manuel ria, Rosa também. Mas os miúdos foram crescendo, Manuel foi ficando calvo, Rosa foi-se cansando das alegrias banais de fim de semana. Manuel ali, num sobe e desce com a maquineta. A vergonha dos filhos ao pé dos amigos. O teu pai podia deixar-nos em Santa Luzia, íamos dar uma volta, subíamos ao Castelo. Mas o pai não podia encher o elétrico com gaiatos que não pagavam, se lhe aparecesse o revisor via-se num imbróglio. Um ou dois ainda vá que não vá. Mas sete ou oito.
Então subiam a pé.
Às vezes, quando Manuel os via abrandava para lhes dizer adeus. Depois percebeu que incomodava. Passou a olhar em frente. Sempre a direito.
Podia ter sido alguém. Tempos houve em que a frase não lhe fazia sentido. Seria sempre alguém. Mas nestes dias, nestes momentos, naqueles em que os filhos viam através dele como se não existisse, dizia para si: podia ter sido alguém. Podia ser de carne e osso ao pé dos meus filhos que fingem não me ver.
Nunca lhes disse nada. Um dia a vida poderia ensina-los. Ou não. Em calhando fariam as escolhas certas, daquelas que, polvilhadas com alguma sorte, fariam deles alguém.
Levantava-se sempre à mesma hora. Tomava banho. Se tivesse turno de manhã vestia a roupa azul, tomava o pequeno almoço com a mulher. Não trocavam palavras. Orientavam-se numa dança de rotinas. Podia repetir todos os passos mesmo que ela não lá estivesse. Saía com o jornal debaixo do braço, apanhava o autocarro até Campo de Ourique, rendia o colega.
Quando não entrava ao serviço, estendia a hora do pequeno almoço, lia o jornal, fazia as palavras cruzadas, olhava da marquise a vida das velhas na vizinhança, aquelas que iam passando ao largo da morte e ainda alimentavam o bairrismo na avenida. Saía para ver a mãe que lhe contava das filhas destas e dos filhos daquelas. Uns, coitados, para quem a vida não tinha sido amiga, outros que eram alguém. Tu também podias ter sido, mas mesmo assim não te deste mal.
Manuel vai deixando de ouvir a mãe, as palavras transformam-se em sons indistintos, uma musiqueta irritante que, tal como o som dos travões do elétrico, já não o incomodam.
Olha para a rua e vê um vizinho novo a passar com o cão. A mãe comenta que isto agora são os camones e os avecs a comprar tudo, só estrangeirada e gente de dinheiro. Manuel pensa que um dia há de arranjar um cão. Que o irá passear pelas ruas estreitas com a roupa de fim de semana, como se fosse alguém.