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Exercício de escrita

Madalena - parte 3

Como se conheceram...

27.06.21

- Fumar faz mal, sabias? – trazia uma mão no bolso, a outra a segurar um copo quase vazio, a camisa meio desabotoada e o ar de quem tinha estado a distribuir perguntas daquelas a noite toda.

- Gente chata também. E eu neste momento estou em risco de vida por consumir as duas coisas ao mesmo tempo.

Riu-se.

- Não me lembro de te ver nas praxes. – observou.

- Isso é porque não lá estive.

- Não me digas que és contra?

- Sou contra fazer figura de ursa. Tenho muitas objeções a isso.

Sorriu enquanto olhava para os pés. Esperei que desse roda aos calcanhares e se fosse embora. Tinha problemas maiores em mãos do que aturar um menino mimado à procura de meninas incautas para lhes dar a volta ao miolo. Em vez de se pôr a andar, olhou à volta e insistiu:

- O que é que estás a fazer aqui fora sozinha? Estás à espera de alguém?

- Não. Estou a pensar na melhor forma de ir para casa. E tu, não me digas que não tens nada melhor para fazer lá dentro? Ou será que são tantas que precisavas de ar fresco?

- Sou um cavalheiro, vi uma menina bonita com um ar um tanto perdido. Vim ver se podia ajudar.

- Para quem está parcialmente embriagado és perspicaz.

- Obrigada. É um dom. E então, madame, em que posso servi-la? – perguntou com uma pequena vénia e o sorriso sabido de quem achava que estava a chegar a bom porto.

Na primeira semana de faculdade andava ainda a apalpar terreno com a maior parte das pessoas. Havia os que estavam doidos por ser aceites pela malta da tuna, os privilegiados que tinham tudo e estavam ali para ter uma justificação a dar aos pais para não trabalharem, os bons alunos e depois havia malta como eu. Os medianos que achavam que iam fazer um brilharete, mas que no fundo sabiam que não os esperavam carreiras de escalada numa grande empresa; pessoas que, não descurando a importância de serem boa gente, passavam despercebidos, faziam parte da massa. Acabei por engraçar com uma miúda descontraída cujo nome não me consigo lembrar de forma nenhuma. Recordo-me que era muito gira, sempre bem vestida e que trabalhava, tal como eu, em part-time. Eu para pagar as propinas, ela para pagar o carro. O ordenado da minha mãe não chegava para tudo e eu queria ter as minhas coisas, queria estudar, queria sentir-me independente.

Foi essa rapariga que me convidou para aquela festa. Foi ela que me convenceu quando insisti que não era o meu tipo de ambiente. Foi ela que me emprestou uma camisola demasiado decotada que passei a noite a puxar para cima para não ficar com metade das mamas de fora. Foi ela que me disse para ficar descansada, regressaríamos para casa juntas, ela dava-me boleia.

Eram duas e tal da manhã quando me disse que ia andando para casa. Disse-lhe que se era assim aproveitava a boleia e ia também. Fomos buscar os casacos, saímos. Foi já cá fora, enquanto eu acendia um cigarro, que ela me perguntou onde é que eu morava.

- Moro na Costa da Caparica.

- Isso é na Margem Sul. – disse-me espantada.

- Sim. Tu moras onde?

- Eu moro em Cascais, não conheço quase nada do outro lado da ponte e também não me dá jeito ir para a Costa a esta hora. O melhor é apanhares um táxi ou esperares que o metro volte a funcionar. Acho que o primeiro passa por volta das seis da manhã. Já não falta muito.

E foi-se embora.

Agora eu estava ali à porta da discoteca, com um maço de tabaco que estava próximo de acabar - a fazer contas de cabeça para calcular quanto me custaria uma corrida de táxi do Parque das Nações para a Costa da Caparica - quando apareceu aquele rapaz para fazer conversa de quem quer meter no saco mais uma caloira verdinha.

Certa de que depois disso me largasse da mão, expliquei-lhe o meu imbróglio e ele ofereceu-se para me levar a casa. Não aceitei. Insistiu:

- Não me custa nada, também já estou farto disto. Discotecas não são bem a minha cena.

- E já agora tu moras onde? Aprendi esta noite que é sempre melhor perguntar onde mora quem nos oferece boleia.

- Em Campo de Ourique.

- E ias à Costa só para me deixares em casa? – disse enquanto acendia outro cigarro.

- Sim. Como já disse, sou um cavalheiro. Daqueles que já há poucos.

- Imagino. Agradeço, mas deixa estar.

- Estás com medo que eu pare o carro num sítio esconso e vá tirar partido de ti.

- Qualquer coisa desse género, sim.

- Sabes que o taxista também pode aproveitar-se de uma menina vulnerável?

Parei uns dois minutos a olhar para ele sem dizer nada. Matutei. Não me parecia má pessoa, mas tantas histórias tristes não começavam com elas a achar que eles tinham um ar sinistro.

- Fazemos assim: eu não vou apanhar um táxi, mas também não vou aceitar a tua boleia. Vou esperar pelo primeiro metro que é por volta das seis. Se és assim tão cavalheiro podes fazer-me companhia até lá.

Parou a olhar na direção do rio como se estivesse um tanto perdido, depois deu meia volta e foi para dentro. Pensei para comigo que tinha fintado mais um papalvo.

Voltei a concentrar-me no que ia fazer. Podia voltar para dentro, sempre era mais seguro. Podia ficar ali perto e pensar na vida a contar os segundos dos ponteiros que pareciam andar a velocidade de caracol. Podia dar uma volta e arriscar-me a encontrar algum tarado.

Assustei-me quando apareceu ao meu lado. Estava a acabar de ajeitar a gola do casaco:

- Então, como é que queres fazer? Queres sentar-te num destes bancos? Queres ir já para a porta do metro para seres a primeira a entrar? Tu é que mandas. Já agora eu sou o Francisco. E tu?

- Madalena.       

Lembro-me de muito poucas coisas sobre o que falámos nessa noite. Recordo-me que estava embevecida com a espontaneidade dele. Queria que contasse mais. Tenho uma memória muito nítida de me sentir desconfiada a espaços, de achar que aquilo não podia passar de uma marosca, um tipo daqueles não podia nunca gostar de alguém como eu. Não registei metade das coisas que me disse porque estava a discutir comigo mesma na minha cabeça. A lidar com as minhas constantes inseguranças.

O metro estava mesmo a chegar. Levantei-me.

- Aqui está. Finalmente. Obrigada pela companhia. Para já, parece que sempre és um cavalheiro.

Fez-se um silêncio incómodo. Um desassossego que me percorria de alto a baixo. Ele fazia um ar de quem deixava claro que não daria o primeiro passo, não se ia pôr no lugar de quem leva uma estalada. Aproximei-me e quando se ouviu a buzinadela do metro a chegar, beijei-o.

Madalena - parte 2

Será que ele liga...

21.06.21

(Primeira parte aqui)

Queria aquele fim romântico.

Mas nada.

Passei o resto do dia a “ver as horas” no telemóvel, mesmo quando tenho relógio na parede da cozinha. Qualquer som que viesse do 

elemóvel me fazia saltar para o apanhar e ver se tinha chegado finalmente a mensagem desejada. Um desgosto a cada som. Percebi nesse final de dia que tenho demasiadas coisas subscritas, que dou o meu contacto para tudo e mais um par de botas. Notificações de jornais, de sites que não me lembro de ter consultado, mensagens de desconto do supermercado, da perfumaria, da farmácia e até de uma loja de cremes online onde comprei um produto que detestei e nunca mais encomendei nada.

Jantei distraída e não sei dizer se os miúdos comeram toda a refeição. Tenho a ideia que os deixei pousar os talheres sem lhes olhar para o prato e os deixei ir buscar um gelado ao congelador.

Depois de deitar os miúdos fui tomar um banho. Fiquei demasiado tempo debaixo do chuveiro. Fechei os olhos e imaginei que depois do tal jantar o convidava a vir cá a casa porque era um fim de semana em que estava com a casa só 

para mim. Imaginei que de manhã, depois de termos passado a noite juntos, depois de lhe ter pedido de apagássemos a luz, depois de acordar e sentir a vergonha de uma menina inexperiente; que ia tomar um banho sem conseguir tirar o sorriso do rosto. Imaginei que ele abria a porta da casa de banho sem eu dar conta, que se aproximava da banheira e eu me surpreendia com ele a olhar para mim sem saber há quanto tempo lá estaria. Imaginei que pedia para entrar e eu, consciente do meu corpo, me tentava tapar. Imaginei que me dizia coisas bonitas, que eu era linda de qualquer forma, que me pedia para não me esconder.

Entretanto a porta da casa de banho abriu-se.

- Ainda estás a tomar banho, mãe? – era o mais novo, andava à minha procura.

- Sim, estou quase a sair. Precisas de alguma coisa? Pensava que já estavas a dormir.

Disse-me que acordou com um daqueles sonhos em que achava 

que ia cair e depois sentiu muita vontade de fazer chichi. Com o som do meu filho mais novo a urinar ao meu lado a imaginação esmoreceu, quis que se despachasse, quis sair da banheira, enfiar-me no pijama velho, coçado e infantil e ir para a minha cama.

O pequeno voltou a deitar-se e eu fui para o meu quarto. Não conseguia ler, não me apetecia ver televisão.

Peguei no telemóvel e fui à internet. Entrei no Facebook e procurei por ele. Tinha tentado resistir a comportar-me como uma mulher deprimente que anda a pesquisar a vida de outras pessoas nas redes sociais. Mas não consegui. Era mais forte que eu. Encontrei-o. Tentei bisbilhotar o que era possível da conta que estava como privada. Nem os amigos conseguia consultar. Não percebia se era casado, se tinha filhos. Tinha uma fotografia tirada a jogar golf e mais nada.

Fiquei tentada a enviar um pedido de amizade. Pensei que poderia dar esse passo. Mas o receio de que fosse casado, de 

que tivesse uma família feliz, com dois ou três filhos e uma mulher glamorosa fez-me sentir ainda mais patética. A tipa que anda atrás de uma paixoneta antiga. Achei-me degradante. Desliguei o telemóvel.

Abri a gaveta da mesa de cabeceira e tirei de lá um maço de tabaco. Não se pode dizer que sou fumadora, mas nos dias em que a pressão aperta e o sono custa a chegar, encosto-me à janela do quarto e fumo um cigarro. Sinto um verdadeiro prazer nisso. Penso nas minhas escolhas e em como dei comigo ali, num quarto onde só tenho a minha companhia, numa casa precariamente arrumada, com dois miúdos que amo acima de tudo, mas que juntos formam um tornado que deixa a minha vida de pantanas.

Nos dias que se seguiram dei comigo, na pausa para um café, a voltar ao Facebook dele. Sentia que me comportava de forma obsessiva, mas não conseguia evitar.

O fim de semana chegou e os miúdos foram para o pai. Eu, que 

habitualmente ficava a cirandar por casa, sem me pentear ou vestir roupa decente, decidi ir à praia. Depilei-me com mais atenção, pus perfume, vesti um biquíni com a parte de baixo subida. Vi-me ao espelho de todos os ângulos, deitei-me no chão para ter perceção da minha figura deitada na toalha.

Fiz o mesmo percurso nos dois dias, sábado e domingo. Procurava à minha volta tentando dar a impressão de que não estava a ver se encontrava alguém. Um esforço muito mal desempenhado. Sempre fui uma péssima atriz. Estendi a toalha e fiz-me interessada num livro, mas não li mais de duas páginas com atenção. Lia um parágrafo e olhava para o mar, lia outro e olhava para o bar.

No sábado voltei para casa cabisbaixa. Passei pelo supermercado e comprei uma torta. Comi metade de uma assentada. Até ficar enjoada.

No domingo, depois de duas horas de toalha e a sentir que acabaria por desmaiar com uma quebra de tensão, decidi ir ao 

mar. Tentei fazer o mesmo percurso do fim de semana anterior.

Quando estava de saída passei pelo bar para comprar água fresca, reclamando comigo entredentes, sabendo que ia pagar uma exorbitância por uma garrafa de água que poderia comprar por meia dúzia de cêntimos no supermercado.

Estava na fila quando ouvi:

- Outra vez? Que coincidência.

Voltei-me e, sem mais, pus-lhe a mão no ombro e cumprimentei-o com dois beijos no rosto. A pele dele sabia-me tão bem como há quase vinte anos.

Percebi que se espantou com a espontaneidade daquele gesto. Percebi que ele deu conta que, até eu, fiquei surpresa com o meu à vontade.

- É verdade, é a minha praia de eleição. Tem sempre menos confusão. Comecei a vir para cá com os miúdos e agora venho na mesma quando não estão comigo. 

Levei a mão à barriga, tinha o pareo atado à volta da cintura, estava alto e deixava ver apenas a pele que me fazia uma cintura mais esguia. Refreei-me de ajeitar o soutien, ocorreu-me que as mamas - que agora não são rijas como as das miúdas que se saracoteiam pelo areal, - estariam desajeitadas, uma a querer sair da copa e a outra mais caída. Ambas a mostrar que estavam numa fase em precisavam sempre de suporte.

A fila não andava e eu não sabia mais o que dizer, até que uma mão de unhas bem arranjadas surgiu por detrás dele, passou por baixo do arco que o braço fazia com a mão enfiada no bolso dos calções e perguntou, sedutora, se ainda demorava muito.

Respondeu-lhe que não e aproveitou para apresentar uma antiga colega de faculdade.

Tive vontade de lhe dar um pontapé, de lhe pregar um chuto no meio das pernas, de o ver a ganir como um rafeiro, encostado 

a uma daquelas cadeiras, com as mãos entre as pernas a perguntar: para que raio foi isso?

Uma antiga colega.

Cumprimentei a esposa, espreitei por cima do ombro dela para a mesa onde estavam dois miúdos de cabelos claros à espera dos gelados que o pai tinha ido buscar.

A fila começou a andar surpreendentemente depressa depois disso. Paguei a minha água e fui-me embora, embaraçada, não por alguma coisa que tivesse dito, mas por ter passado uma semana em pensamentos adolescentes. Por ter ido ali, como uma mulher desesperada ou uma miúda imatura, à espera de encontrar quem não me procurou.

Cheguei a casa, larguei as tralhas logo à entrada sabendo que nas próximas horas ninguém tropeçaria nelas.

Entrei na cozinha, olhei para o resto da torta que ainda estava em cima da mesa. Deitei-a fora.

Vesti uma roupa velha de desporto que tinha lá para casa, calcei os ténis coçados que usava para ir despejar o livro ou dar um salto ao supermercado.

Fui correr.

Corri seiscentos metros e prometi que no dia seguinte repetiria.

"A cadela", de Pilar Quintana

18.06.21

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Não sei com quem é que é preciso falar, se é com o presidente da junta, se é com o presidente da Câmara ou o coise, mas eu quero os livros desta mulher todos traduzidos.
Escrita escorreita, clara, despretensiosa. As personagens retratadas com os contornos retorcidos do ser humano, sem romancear.

Damaris queria ser mãe e não conseguia. Um dia uma senhora conhecida ofereceu-lhe uma cadelinha bebé, que ainda precisava de ser alimentada a biberão porque a mãe tinha morrido. Damaris apega-se à cadela e tem-lhe um amor imenso, até que a cadela se torna independente e desapegada.

Na minha perspetiva não é um livro sobre o apego das pessoas aos animais, mas mais sobre a necessidade que as pessoas têm de se apegar a algo onde possam gastar o amor que têm para dar e a frustração quando o destinatário desse amor não corresponde na medida desejada.

"A pérola", de John Steinbeck

17.06.21

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Uma pequena história com contornos - na sua mensagem - mais atuais do que seria desejável. Publicado em 1947, o que representa quanto à conduta humana persiste: a avareza, o aproveitamento da ignorância, o desejo de uma vida melhor, a importância - válida - do que o dinheiro nos pode trazer.
Foi o primeiro livro de Steinbeck que li, acho que foi uma boa escolha para começar.

Madalena - parte 1

Quando o passado destabiliza o presente

14.06.21

Tivemos de furar para encontrar um espaço para pousar as toalhas e todos os sacos de tralha que os miúdos obrigam para meia dúzia de horas à beira mar. A mochila com os documentos e o livro que não vou ler, mas que insisto em trazer. A mala térmica com sumos frescos e fruta. As toalhas que vou estender na areia e mal vão ser usadas. O saco dos brinquedos, com baldes, pás, ancinhos e carros que vão ser enterrados algures e terei de passar a última meia hora a descobrir. Isto quando não ficam esquecidos, resultando em birras, choro e lamentos profundos porque aquele era sempre o carro favorito.

Pergunto-me se o pai chegará à praia tão cansado como eu. Provavelmente não. O mais certo é que alugue um toldo, que os convença a jogar à bola, que vá com eles para o mar e que lá estejam o tempo quase todo. Posso jurar que quando dizem ter fome se sentam para comer no bar da praia. A acompanhá-los vai a namorada, desejosa de agradar, que ajuda a cuidar da garotada. Com o pai cada um leva a sua toalha, comigo o tecido torna-se demasiado pesado. Carrego eu que, não tendo aptidão para concursos de mergulho nem dinheiro para sumos de fruta fresca e tudo o que quiserem pedir no bar, os obrigo às sandes feitas em casa e às caixinhas de fruta descascada e cortada em quatro antes de sair de casa.

- Não quero essa fruta, está meio amarela.

Posso explicar mil vezes que a fruta está em excelentes condições. Que fica oxidada por estar descascada e em contacto com o ar. Mas não surte efeito. Comem as sandes. Pedem batatas fritas que levo, em pacotes pequenos. Por vezes, entregando todos os pontos, compro bolas de Berlim para os três. Nesses dias consigo ser uma mãe fixe.

Tento convencê-los a ficar pelas poças de água quando a maré está baixa. Conseguem divertir-se perfeitamente e eu posso divagar, fazendo-me interessada nas suas brincadeiras. Posso distrair-me a olhar à minha volta sem receio de que avancem demais no mar e acabe por precisar de chamar o nadador salvador. Podia entrar, sei nadar bem, mas não posso deixar um em terra desamparado e ir atrás do outro. A neurótica que tenho em mim precisa de mais controlo.

Já não vão na cantiga de ficar naquelas a que chamo piscinas do mar. Com sete e oito anos, ambos bons nadadores, habituados a horas de mar com o pai não aceitam ficar ali. Acordamos ir para a rebentação. Sabem que comigo não podem avançar muito. Têm de ficar onde têm pé, melhor, a água deve dar-lhes, no máximo, pela cintura. Suspiram. A mãe chata. Desmancha prazeres. Por mais que lhes explique da corrente e da rebentação. Não querem saber.

O pai é um bom pai. Cuida deles. É divertido. Fazem coisas engraçadas. Gostam de estar com ele. Há mais de um ano que namora com a mesma mulher, pelo que sei já vivem juntos. Entendem-se. Sou eu que lido mal com tudo aquilo. Com a descontração com que o pai vive. Com a minha incapacidade de dar a volta à minha vida. Com a minha entrega. Olho para baixo e vejo as minhas pernas flácidas, num tom esbranquiçado, como se tivessem sido lavadas com lixivia depois de muito encardidas. Vejo o fato de banho liso com um adorno no meio para disfarçar a prega que tenho na barriga. Não me sinto confortável de biquíni e sabendo que vou andar atrás dos miúdos, fazendo tarefas de mãe, muito menos. Não me apetece sugar os órgãos para diminuir o abdómen centímetro e meio.

Na praia para que vamos não há muitos jovens de corpos em forma, a esfregar a minha cara nas suas barrigas lisas e nas mamas que se seguram sozinhas. Aqui há mães, grávidas certas de que vão fazer melhor, pais babados porque ainda não sabem que, mais cedo ou mais tarde, vão querer uma mulher mais descontraída e não aquela que agora, mais do que mulher, é mãe. Por aqui há avós e famílias que se juntam a outras famílias para que os miúdos se possam entreter uns com os outros e os pais possam descansar das brincadeiras, que redundantemente terei de apelidar de infantis.

Abeiraram-se de mim dois homens, estavam embrenhados numa conversa aguerrida sobre Benfica e Sporting e eu reconhecia a voz de um deles. Tinha a certeza que sabia quem era, fechei os olhos por segundos para me concentrar no timbre e sim, confirmava-se, vinte anos depois, ainda conseguia saber de quem era aquela voz. Baixei a cabeça e, num movimento lento de quem está apenas a apreciar o sol que lhe queima o rosto, rodei a cara para confirmar a minha suspeita. Era ele. Cruzámos o olhar, mas fiz de conta que não o estava a ver, o meu objetivo estava lá atrás, em qualquer coisa que evidentemente não interessava a ninguém. Ele olhou para trás para ver quem estaria atrás dele e sorriu. Acenou e não tive outra hipótese que não reconhecer que o tinha visto. Naquele momento passaram-me mil coisas pela cabeça. Foram frações de segundo que duraram os quatro passos que deu em minha direção depois de tocar no ombro do amigo e ter dito qualquer coisa como: só um minuto.

Lamentei não ter cuidado mais de mim. Não ter ido ao solário para ganhar uma cor em vez de ir para a praia a parecer um trapo deslavado. Não ter seguido a ideia da Luísa, que corria quatro dias por semana e fazia agachamentos na casa de banho de hora a hora e tinha uma técnica de prensa abdominal para ter a barriga definida. Vieram-me à boca os quatro brownies que comi de empreitada no dia anterior, depois de os miúdos olharem para o que eu tinha acabado de tirar do forno e dizerem que lhes apetecia mais um bullycao. Ainda estavam mornos.

- Há quanto anos. - disse-me enquanto sorria, sempre sedutor. Percebi que me media o desconforto. Entretido com a minha falta de jeito.

- É verdade. O tempo passa depressa. – respondi desviando para ver onde andavam os miúdos. Conversa carregadas de frases feitas e lugares comuns.

- Ainda há dias me lembrei de ti. – confessou, como se fosse uma coisa perfeitamente normal. - Tenho pena que tenhamos perdido o contacto.

- Tens mesmo? - perguntei-lhe. Não me parecia que fosse o caso.

- Tenho. - disse sem hesitação.

- Então vieste aqui com a família? - perguntei. Não sei se porque queria desconversar, se porque queria mesmo saber se ele ali estava a fazer conversa de circunstância, investindo na sedução de quem quer ter um número para ligar sem compromisso.

- Não. Vim com um grupo de amigos. Juntamo-nos uma vez por mês. Fazemos uma almoçarada, bebemos umas imperiais, ficamos pela casa de um ou outro ou vimos à praia quando está bom tempo. Ao final do dia, quando as mães e os pais começam a dispersar com a criançada ainda dá tempo para uma partidinha de futebol de praia. Um gajo entretém-se.

Parecia honesto, mas o que eu queria saber era se tinha em casa a mulher, que ficava com os miúdos enquanto ele tinha um domingo de gajos.

- Mãe, tenho fome.

A mão molhada e gelada na minha coxa. Arrepiei-me.

- Diz, filho. - disse-lhe, não porque não tivesse ouvido à primeira, mas para comprar uns instantes para descortinar como ia rematar a conversa interrompida.

- Tenho fome. E frio.

- Está bem, vai chamar o teu irmão e vamos para a toalha.

- Ele não quer ir. Tens de ser tu a chamar.

-Tenho de ir eu. - disse ao olhar para o homem moreno, muito mais bem conservado do que eu. Cuidado. - Tenho de ir eu – repeti – deves saber como é.

Não respondeu.

Fui chamar o mais velho e arrastei-o para fora de água. Ele ainda lá estava, a ver cada passo.

Disse-lhe: gostei de te ver e o meu número continua o mesmo, a menos que tenhas apanhado, não perdeste o contacto.

Fui com os miúdos para a toalha. Embrulhei cada um na sua. Tremiam de frio. Tirei duas sandes e dois sumos da mala. Os sumos já não estavam tão gelados quando queriam. Sentei-me na berma, no tecido que sobrava. Deixei-me estar de costas para o lado em que ele subiria em direção à toalha. Assim calculei.

À noite, depois de deitar os miúdos, encostada à portada da varanda enquanto fumava um cigarro, ri-me sozinha. Seria bom se ele me ligasse.

Temos de viver tudo, carpe diem e o caraças.

06.06.21

Mas depois a vida passa ao lado e nem olhámos para o que estávamos a fazer.

Agora que me sento com a brisa do mar a ajudar que o sol me queime a pele, na casa que aluguei com o dinheiro que me sobrou da venda do apartamento minúsculo a que chamei casa durante cinco anos, penso nisso.

Quis ser tudo e não fui quase nada.

Fui a melhor da turma. Treinei no ginásio todos os dias para estar em forma. Comi o que devia em vez do que queria. Fiquei bem em vestidos desconfortáveis que agradaram aos outros. Arranjei o tal emprego com vista. Ainda que não seja a uma vista sobre Manhattan como os filmes apregoam. Comprei uma casa exígua num bairro caro. Fui às compras com as amigas. Vesti caro. Calcei ainda mais caro. Alimentei conversas que nem eu entendia, vazias como um saco levado pelo vento. Envolvi-me com homens ocos que outras mulheres gabavam. Tive relações de fantochada com homens que os meus pais apreciavam. Saltei de penhascos com uma corda nos pés, borrada de medo, à espera da promessa de sentir a vida. Só se vive uma vez, dizia-me a agente, e eu, sim senhora lá saltei. Detestei e fiz-me de contente. Agora sim, sentia a vida pulsar em cada milímetro de pele. Fiz viagens para onde não queria, fechada em resorts carregados de segurança, praias de água cristalina e histórias de flores à volta do pescoço, tudo para deliciar os que me rodeavam. Tinha de comer a vida, de fazer mais e mais. Não perder nada.

Aceitei projetos extra. Convenci-me que conseguia ser tudo. Pior. Que tinha de ser tudo. Só valia a pena assim. Sem perder tempo. Porque mais é sempre mais e parar é entregar os pontos. Porque a vontade supera tudo e todas as balelas por aí além. Li livros de superação. Engoli as páginas de todos os que me impingiam que conseguia conquistar o mundo desde que cumprisse mais este e aquele passo.

Depois a Mariana adoeceu. Nova. Sem filhos. Sem se ter deixado amar.

Não sei ao que sabe a vida, disse-me.

Fez tudo o que estava numa lista que alguém, algures, ninguém sabe quando nem como, fez. Esperou pelo príncipe que não apareceu. Não teve os filhos perfeitos que idealizou.

Na última vez que a visitei, enquanto eu cozinhava um prato de lasanha que ela adorava e que naquele dia não conseguiu comer, nauseada, lamentou ter vivido pelos olhos dos outros em vez dos seus. Numa procura incessante de encontrar aquilo que a faria brilhar para fora. Tinha pena de não ter tido um cão. Foi a falar do patusco que a vi chorar com mais mágoa. Desde miúda que queria um cão, de raça, rafeiro, pouco importava. Uma coisa pequena. Acessível desde que haja carinho para dar. Os pais não foram nisso, não havia vida, dava muito trabalho. Não havia tempo. Quando crescesse e tivesse a casa dela que arranjasse um. Depois meteram-se as coisas banais e típicas da idade, os namorados, os empregos, as coisas que as amigas achavam que eram boas. Os projetos, os objetivos e a lista invisível daquilo que temos de cumprir para deitarmos as mãos a um pedaço de espaço naquele olimpo mágico da felicidade. A felicidade não é medíocre, assim nos vendem. Ela acreditou. Eu também.

Não fez as pequenas coisas, as que foram atropeladas pelas ideias quadradas de fazer isto e aquilo. Que imbecilidade uma mulher adulta querer um cão como uma miúda de dez anos. Isso viria mais tarde ou mais cedo. Depois do emprego. Depois do marido fantástico. Depois de dois filhos perfeitos. Depois de uma casa com jardim e espaço para uma piscina. Iria a um criador de renome, uma cria com pedigree, como os dos anúncios. Um que teria aulas e saberia passear solto sem roubar bolachas a crianças no parque quando as apanhasse distraídas.

Quando percebeu que nunca teria um cão, perdeu a vontade do bicho de sonho. Dizia que se imaginava a caminhar na praia a chamar por ele e o canídeo, cruzado de múltiplas raças, quem sabe um olho de cada cor, a querer entrar na água. Que se via a ralhar, fazendo-se zangada, porque lhe tinha de dar banho outra vez. O croquete cão. Sal, areia e pelos. O formula imperfeita.

A Mariana não chegou a ter um cão. E eu, depois de me despedir dela, deixei de me conseguir levantar.

Uma semana. Passei uma semana em casa, com o mesmo pijama, as mesmas cuecas, o cabelo emaranhado. Não dormia. Sentava-me no sofá e olhava para o ecrã desligado. Deitava-me na cama e via um filme imaginário no teto.

Foi a minha mãe que apareceu lá em casa. Que me obrigou a entrar na banheira. Que me fez um jantar com os cheiros da minha infância. Que me disse “ainda posso tomar conta de ti como se fosses a minha bebé, mas tens de conseguir voltar a andar pelos teus pés”.

Passou duas semanas em minha casa. Cuidou-me como a menina desprotegida que tinha medo das refilonas na escola. Obrigou-me a pensar em mim, no que me atormentava. No que eu queria.

Vou vender a casa. Vou mudar-me. Vou despedir-me. Vou arranjar um cão. Disse-lhe uma manhã enquanto segurava com as duas mãos a chávena do café com leite que me fez.

Anuiu. Não me perguntou o que é que ia ser de mim. Percebeu que os sonhos que tinha para a sua menina a tinham devorado, como se um mostro a estivesse a comer de dentro para fora.

Conversámos.

Disse-lhe que os dias me passavam ao lado. Que tudo andava depressa demais. Que não sentia propósito na vida. Que fazia as escolhas com base no que era suposto. Queria tempo. Tempo para ler, para caminhar na praia e sentir a areia nos pés sem a pressa da caminhada assinalada pelo relógio moderno que me diria ao ouvido o ritmo e as calorias gastas. Andar pelo prazer de andar. Queria sair para comprar ingredientes frescos, fazer receitas novas sem a urgência do jantar para os amigos depois de mais um dia de reuniões. Queria sentar-me a ler o jornal, sem fazer de conta que o fazia, para picar uma tarefa. Queria conhecer um homem de camisa por engomar. Uma pessoa normal, daquelas que passam despercebidas, das que não me fizessem sentir que tinha de estar sempre no degrau mais alto. Alguém que me levasse a jantar a um restaurante barato, que trouxesse frango assado para comermos à mão.

O Osvaldo passou pelo portão carregado de água e areia. Arrancou-me da melancolia e atirou comigo para a realidade prática de que tinha um cão todo sujo a querer entrar em casa. Enrolara-se no chão a brincar com os outros cães. Fiz cara de má vontade. Perguntei-lhe se sabia a trabalheira que tinha em mãos. Retórica. Não só jamais responderia como bocejou, o que me pareceu um sinal claro do enfado que a conversa lhe causava. Sou eu que quero o sofá limpo, para ele está bom como der.

Sentou-se à espera que o chuveiro da rua estivesse pronto para o passar por água. Para ele a vida corre bem, nunca quis mais que aquilo, está contente.

E eu, olho para aquele ar pateta de quem tem tudo na vida com duas corridas à beira mar e rio-me. Os bichos sabem viver melhor que nós.

Desafio dos pássaros 3.0 - Tema 3

04.06.21

Cinderela estava em frente ao roupeiro, irritada. Agitava-se. Contorcia as mãos. Bufava como se estivesse a tentar apagar uma fogueira. Pegou num vestido que comprou em segunda mão. Um tecido leve, num azul claro que condizia com os seus olhos.

- Não aguento mais contigo! – afirmou, enquanto o atirava para longe.

- Sabes que a culpa não é do vestido, não sabes? – questionou a Branca de neve que lhe dava assistência à escolha da indumentaria, enquanto fumava o seu cigarro à janela do quarto – És muito picuinhas. Para uma reunião de ajuste de detalhes por causa do divórcio havias de vestir uma merda qualquer em vez de estares para aí agastada, mulher!

Cinderela sabia que estava a exagerar, mas queria que Joaquim – conhecido como Príncipe encantado da história da Cinderela pela maioria das pessoas – reparasse nela e sentisse pena pela barriga de cerveja que ganhou.

- Tu devias era arranjar outro gajo, tipo um ginecologista. – alvitrou a Branca de Neve a propósito de nada.

Cinderela voltou-se e cerrou os olhos, interrogativa. Não entendia o porquê daquela conversa.

- Porque raio havia de querer um ginecologista? Ou outro homem, sequer?

- Aí mulher que és lenta para car… - foi interrompida na sua ideia por Cinderela de mão levantada. Sabia ter os filhos sempre à escuta, especialmente quando a tia Branca ia lá a casa e largava bojardas de alhos e bugalhos a torto e a direito – dizia eu, antes de ver o meu raciocínio atropelado pela pudica de serviço: és lenta e devias arranjar um gajo que perceba mais da maquinaria do que tu. Para além disso, com o tempo que ele passa a olhar para centralinas – uma a seguir à outra a seguir a outra - a última coisa que um tipo daqueles deve querer é sair do trabalho para ir afagar chicha que não paga consulta e não faz o jantar. – Branca piscou o olho a Cinderela que por esta altura abanava a cabeça em negação para o disparate que saíra da boca da amiga.

- Só dizes baboseiras, é o que é. O que eu preciso é de estar sozinha, de aprender a viver comigo, de ser uma self made woman.

- Leste isso panfleto?

- Não. – respondeu Cinderela indignada – vi no programa da manhã, aquele com o Baião e a Diana Chaves, que aliás trazia um vestido que ia ficar-me mesmo bem hoje.

Tocaram à campainha. Era a Bela. A tipa divorciada e sabida que vinha aconselhar Cinderela. Prepara-la psicologicamente para aquilo que os bárbaros dos advogados dos príncipes fazem quando elas pedem divórcio.

Entrou no quarto, viu o dilema e disse:

- A Branca tem razão, veste uma merda qualquer que te faça parecer pobre e cansada. Queremos que percebam o que te está a custar.

- Como é que sabes que a Branca… - Bela levantou a mão.

- Poupa-me, este quadro diz tudo. Agora, quanto é que queremos sacar àquele corno?

O amor não é para feios

01.06.21

A praceta parecia coberta por tons de cinzento. Uma película mortiça que deixava transparecer que aquele espaço, um dia carregado de crianças em constante corrupio, era agora um poço de lamentos dos velhos que ficaram para trás, fechados nas casas que compraram com os primeiros empréstimos habitação. Noutro tempo, aquele quadrado de betão era um organismo vivo. Podíamos ouvir as risadas, os desentendimentos e os acordos para saber que equipa ficava com os elementos mais fracos. Já se sabia que quem ficava com o Joca-quatro-olhos estava condenado porque o tipo tinha dois pés esquerdos, acabava sempre à baliza e quando a bola vinha alta punha-se na alheta, não fosse a esfera acertar-lhe nas lentes, dar-lhe cabo dos óculos e depois o pai arrear-lhe uns acertos quando chegasse a casa. Também se sabia a bom saber que quem ficava com o Joel, ponta de lança exímio que os mais novos acreditavam ter nos dedos dos pés olhos melhores que os do Joca, tinha vitória certa. Então a miudagem organizava-se, entendia-se com uma estirpe de justiça que se lhes esvaía do corpo com as pancadas da vida a caminho da idade adulta. As mães chamavam os filhos à hora de jantar, os miúdos faziam-se surdos.

Ia à janela e via-os divertidos lá em baixo. De quando em vez pedia para ir brincar, mas a mãe raramente estava pelos ajustes. Se depois caíres ou não conseguires acompanhar os outros nos jogos não me venhas para aqui choramingar. Por mim ficas em casa com as bonecas, entreténs-te melhor sozinha, dizia-me pelo meio das tarefas de casa, como se a minha solidão fosse mais um prato de restos que arrumava no frigorífico. As pernas pesadas não me deixavam correr tão depressa como os outros. A Núria sabia-o tão bem que quando eu lá chegava dizia para todos: a gordinha chegou no fim por isso é a gordinha a apanhar. Acontecia mesmo que atrás de mim viesse alguém mais atrasado. E eu, se queria jogar, tinha de correr atrás deles, que eram rápidos e ágeis, acostumados àquele exercício. Até o Joca, sempre na mó de baixo, regozijava com o meu tormento. A minha chegada representava simultaneamente um descanso e a oportunidade de saber, ainda que a espaços, o que era estar do lado dos mais fortes. Sabiam que não tinha hipótese e tiravam partido de me ver às voltas, desgastada, humilhada, desnorteada, derrotada por não ser capaz de apanhar nenhum. A mãe espreitava à janela, desejosa para que eu voltasse para dentro, não tanto para que o meu sofrimento terminasse, mas para que o seu motivo de humilhação não perdurasse por tanto tempo. Mais valia que me mantivesse caseira, calada e sossegada. Que lhe aparecesse com boas notas para me argumentar intelectual, a única coisa que via em mim elegível para menção, sem que tivesse de seguir o seu discurso com um explanar de culpas, receios e admoestações pérfidas que aplicava à sua pessoa. Ao fim de poucos minutos, acometida por uma tristeza profunda, sentia que as pernas não iam aguentar mais o esforço, que o desânimo carregava em mim como uma pedra alapada às costas. Desistia. Já vais? Oh, não faças isso, diziam entre gargalhadas.

Algumas vezes aparecia a Sara, a filha da cabeleireira, que era mais nova que eu, mas que ao contrário de mim mostrava uma valentia tremenda. Não descia para brincar com eles, descia para usufruir do espaço porque os pais ainda não tinham tido oportunidade de comprar uma vivenda com jardim. Por alguma razão, tratava-me sempre de forma cordial e amável, nunca soube se por ser mais uma forma de remar contra os outros, demarcando-se dos seus comportamentos indesejáveis, se porque, de facto, alguma coisa em mim lhe suscitava interesse.  Ninguém se metia com a Sara, primeiro porque não lhe sentiam o cheiro a medo, depois porque o pai era GNR e todos sabiam que se arranjassem farinha com a filha do geninho era surra certa em casa. Pequena e franzina erguia o dedo a quem quer que fosse, enquanto eu, uma latagona gorda, de roupas largas que me faziam parecer enfiada num saco de batatas, escondia-me das mãos que sorrateiramente me apertavam o excedente de gordura, mas mais ainda dos risos e dos comentários.

Os estores da varanda dão agora lugar a umas cortinas deslavadas. Já não mora naquela casa ninguém da família. Sei que a mãe faleceu há vários anos, era Sara ainda uma miúda. Terminou a vida na ignorância de que o fim estava para breve, despedindo-se sem saber da filha que para si seria sempre uma menina, porque jamais a veria mulher.

O pai voltou a casar e teve outro filho. Ainda viveram naquela casa mais uns dez anos, mas depois diz-se que se mudaram para Palmela, compraram uma vivenda com jardim.

A tua tia Alice ligou, diz que não vai conseguir vir ao funeral. Mandou entregar uma coroa de flores na igreja, como se isso substituísse a despedida que se deve à família, disse-me a tia Dulce antes de fazer uma pausa, estudando a minha expressão para perceber se também eu me amarguraria com aquela ausência no funeral da mãe. Mantive-me calada e esperei que concluísse o que tinha a dizer ou se retirasse. Queres ligar-lhe de volta para agradecer, acabou por perguntar na sua voz sempre estridente, subtraindo-me finalmente do meu estado letárgico. Olhei-a como quem olha o vazio e limitei-me a abanar a cabeça em negação. Não me apetecia falar com a tia Alice.

A tia Alice era irmã do meu pai e detestava a mãe, achava-a uma déspota, uma mulher vil e amarga, como aliás todas as pessoas sobre quem a mãe impunha uma presença tirana e repressora.

O que é que tens aí, Raquel, algum livro que a tua mãe gostava?, indagou sabendo perfeitamente que a mãe não tinha qualquer afinidade com os livros. Achava-os uma perda de tempo, a ocupação dos desalentados, o último recurso de quem não tinha estofo para a vida real. Inventar histórias como forma de vida, o que é que isso faz pelas pessoas?, dissera-me quando lhe contei que queria estudar literatura. Um curso de fim de semana, isso não é uma formação superior, é um entretém para os tempos livres, esclareceu.

É um livro de que sempre gostei e que li muitas vezes na minha adolescência, encontrei-o na estante do meu antigo quarto e apeteceu-me reler algumas passagens, expliquei. Fez um som indistinguível, pousou as mãos por baixo dos peitos fartos e encolheu os ombros. Não me entendeu naquele momento, como aliás nunca me havia entendido. Mais uma vez ter-me-á comparado a Amélia, sua filha, menina prodígio, mulher exemplar.

Na Amélia ia ficar muito bem.

Põe os olhos na tua prima.

Devias passar mais tempo com a Amélia.

A Amélia vai estudar uma profissão a sério.

Os rapazes não tiram os olhos da Amélia.

A Amélia só anda agarrada a esses livros de faz de conta nas férias da escola. Não deixa que os romances lhe empatem a realidade.

Esse rapaz não é para ti, é para alguém como a Amélia. Olha que o amor não é para feios e se anda a cirandar é porque quer alguma coisa fácil.

A Amélia representava tudo o que a mãe queria que eu tivesse sido, incorporando, simultaneamente, a justificação para toda a repulsa que sentia por mim. Chegou a dizer, quando me viu o vestido do baile de finalistas mal assente nas formas, que mais valia que o corpo se lhe tivesse fechado no dia em que pedi para nascer. Se era para passar pelas dores de trazer uma filha ao mundo, que fosse para trazer uma como Amélia. Perguntou se por acaso eu fazia ideia da vergonha e da humilhação que era, nessa disputa que existia sempre entre irmãs, uma rivalidade que persiste apesar do amor fraterno; se eu imaginava a dor, o sentimento de desilusão, por ver-me assim, sabendo-se necessitada de mentiras engenhosas para argumentar a razão pela qual não tinha uma fotografia para que, juntas, pudessem comparar e recordar um marco da sua descendência.

As roupas femininas e justas ao corpo que eu não podia vestir porque não tinha cintura, custavam-lhe. Só tens esta bola de carne aqui à volta. Valem-te as mamas grandes que compensam esta protuberância tão marcada, dizia-me. Enquanto trocava de roupa no provador podia ouvir a conversa com as lojistas. Chamava mais uma vez a si a culpa do meu estado, dizia que só podia ter falhado como mãe, que só podia ter fracassado nalguma coisa e que se sentia duplamente esmagada: por não ter feito melhor e por não ter compreendido onde estava a errar para que pudesse agir atempadamente. Vinham em seu socorro, expressando compaixão, dizendo coisas como: nem sempre a responsabilidade é das mães, fazemos o que podemos, mas os filhos por vezes não querem ouvir o que temos para lhes ensinar.

Deixei que o silêncio gerasse o incómodo necessário para que a tia se fosse embora. Nunca soube lidar com a ausência de palavras no ar, como se a atmosfera se tornasse arenosa e ela não suportasse respirar assim. Virou costas e foi arranjar mais alguma coisa para fazer. Era como a mãe, pareciam cópias, no feitio e na aparência. Ambas esguias e bem vestidas. Cautelosamente maquilhadas com o cabelo curto e carregado de laca. Arrumavam, organizavam, ajustavam, aspiravam, passavam a ferro, costuravam. Não existiam tarefas que não soubessem fazer impecavelmente. Achavam que a criatividade só tinha serventia quando respondia a um propósito de utilidade palpável. Como quando alguém inventava um novo utensílio de cozinha ou um eletrodoméstico que lhes facilitava a vida. Talvez fosse por isso que o meu primeiro livro, o que entreguei em mãos à mãe, tendo-me esforçado por lho dedicar na esperança de uma pinga do seu amor, de ser alvo do seu orgulho, está, desde o momento em que lho ofereci, dentro da mesa de cabeceira. Nunca foi tocado.

Segurei no Carta ao pai com as duas mãos e folheei-o procurando algumas das passagens assinaladas. Em miúda acreditava que Kafka me entendia melhor do que ninguém. Talvez me compreendesse naquele momento, e se assim fosse, se mo segredasse ao ouvido, talvez eu sentisse menos nojo por não me angustiar com aquela perda.

Ainda me recordava do dia em que a bibliotecária mo tinha aconselhado. Era uma das poucas alunas que visitava a biblioteca da escola e de quando em vez, numa troca pueril de ideias sobre este ou aquele livro, acabávamos por discorrer noutros temas. O meu era sempre o mesmo: a necessidade de ler para conhecer um mundo onde pertencesse, já que aquele onde vivia me rejeitava. Na sua carta, Kafka discorria sobre tudo o que o pai havia feito e não feito, sobre a sua falta de aceitação do filho, sobre a angústia de crescer com a comparação permanente a alguém que, por oposição a si, era confiante e forte e que, em vez de o proteger na sua delicadeza e fragilidade, agudizava a sua dor. Talvez o escritor, no seu eterno confronto com o pai, me fizesse sentir menos perdida na relação desgovernada que tinha com a mãe.

Tentei escrever uma carta similar à mãe, investindo em linhas claras, sem recurso a figuras de estilo ou a quaisquer aliterações que pudessem dar azo a uma interpretação incorreta. Até porque, se havia coisa que a irritava era o uso de metáforas para explicar o que podia ser dito de forma literal, sem subterfúgios.

Nunca consegui. O medo de ser insuficiente nas palavras aterrorizava-me. E se me esmagasse também a esperança na escrita? A única coisa que ainda não lhe havia sido dada a criticar para que pudesse considerar inferior.

Perguntei-me se naquele momento, sabendo-a fria no caixão, impossibilitada de responder a cada argumento, se assim seria capaz. Senti-me cobarde.

A porta do prédio da frente bateu e fez um estardalhaço. A vizinha do último andar saía com a carteira debaixo do braço. Ia certamente à bica. O cabelo estava igual, alourado e armado à custa de muita laca. Recordei-me da aposta dos miúdos, uns acreditavam que se lhe acertassem com uma bolada na cabeça, a esfera faria ricochete deixando aquele capacete intacto. Outros, estavam em desacordo. O ponta de lança exímio garantiu que lhe acertava com um petardo tal que lhe havia de desmoronar a armação. O Joel chutou e o Joca deu à sola, não fosse alguém registar que estava metido ao barulho. Ri-me sozinha.