Madalena - parte 3
Como se conheceram...
- Fumar faz mal, sabias? – trazia uma mão no bolso, a outra a segurar um copo quase vazio, a camisa meio desabotoada e o ar de quem tinha estado a distribuir perguntas daquelas a noite toda.
- Gente chata também. E eu neste momento estou em risco de vida por consumir as duas coisas ao mesmo tempo.
Riu-se.
- Não me lembro de te ver nas praxes. – observou.
- Isso é porque não lá estive.
- Não me digas que és contra?
- Sou contra fazer figura de ursa. Tenho muitas objeções a isso.
Sorriu enquanto olhava para os pés. Esperei que desse roda aos calcanhares e se fosse embora. Tinha problemas maiores em mãos do que aturar um menino mimado à procura de meninas incautas para lhes dar a volta ao miolo. Em vez de se pôr a andar, olhou à volta e insistiu:
- O que é que estás a fazer aqui fora sozinha? Estás à espera de alguém?
- Não. Estou a pensar na melhor forma de ir para casa. E tu, não me digas que não tens nada melhor para fazer lá dentro? Ou será que são tantas que precisavas de ar fresco?
- Sou um cavalheiro, vi uma menina bonita com um ar um tanto perdido. Vim ver se podia ajudar.
- Para quem está parcialmente embriagado és perspicaz.
- Obrigada. É um dom. E então, madame, em que posso servi-la? – perguntou com uma pequena vénia e o sorriso sabido de quem achava que estava a chegar a bom porto.
Na primeira semana de faculdade andava ainda a apalpar terreno com a maior parte das pessoas. Havia os que estavam doidos por ser aceites pela malta da tuna, os privilegiados que tinham tudo e estavam ali para ter uma justificação a dar aos pais para não trabalharem, os bons alunos e depois havia malta como eu. Os medianos que achavam que iam fazer um brilharete, mas que no fundo sabiam que não os esperavam carreiras de escalada numa grande empresa; pessoas que, não descurando a importância de serem boa gente, passavam despercebidos, faziam parte da massa. Acabei por engraçar com uma miúda descontraída cujo nome não me consigo lembrar de forma nenhuma. Recordo-me que era muito gira, sempre bem vestida e que trabalhava, tal como eu, em part-time. Eu para pagar as propinas, ela para pagar o carro. O ordenado da minha mãe não chegava para tudo e eu queria ter as minhas coisas, queria estudar, queria sentir-me independente.
Foi essa rapariga que me convidou para aquela festa. Foi ela que me convenceu quando insisti que não era o meu tipo de ambiente. Foi ela que me emprestou uma camisola demasiado decotada que passei a noite a puxar para cima para não ficar com metade das mamas de fora. Foi ela que me disse para ficar descansada, regressaríamos para casa juntas, ela dava-me boleia.
Eram duas e tal da manhã quando me disse que ia andando para casa. Disse-lhe que se era assim aproveitava a boleia e ia também. Fomos buscar os casacos, saímos. Foi já cá fora, enquanto eu acendia um cigarro, que ela me perguntou onde é que eu morava.
- Moro na Costa da Caparica.
- Isso é na Margem Sul. – disse-me espantada.
- Sim. Tu moras onde?
- Eu moro em Cascais, não conheço quase nada do outro lado da ponte e também não me dá jeito ir para a Costa a esta hora. O melhor é apanhares um táxi ou esperares que o metro volte a funcionar. Acho que o primeiro passa por volta das seis da manhã. Já não falta muito.
E foi-se embora.
Agora eu estava ali à porta da discoteca, com um maço de tabaco que estava próximo de acabar - a fazer contas de cabeça para calcular quanto me custaria uma corrida de táxi do Parque das Nações para a Costa da Caparica - quando apareceu aquele rapaz para fazer conversa de quem quer meter no saco mais uma caloira verdinha.
Certa de que depois disso me largasse da mão, expliquei-lhe o meu imbróglio e ele ofereceu-se para me levar a casa. Não aceitei. Insistiu:
- Não me custa nada, também já estou farto disto. Discotecas não são bem a minha cena.
- E já agora tu moras onde? Aprendi esta noite que é sempre melhor perguntar onde mora quem nos oferece boleia.
- Em Campo de Ourique.
- E ias à Costa só para me deixares em casa? – disse enquanto acendia outro cigarro.
- Sim. Como já disse, sou um cavalheiro. Daqueles que já há poucos.
- Imagino. Agradeço, mas deixa estar.
- Estás com medo que eu pare o carro num sítio esconso e vá tirar partido de ti.
- Qualquer coisa desse género, sim.
- Sabes que o taxista também pode aproveitar-se de uma menina vulnerável?
Parei uns dois minutos a olhar para ele sem dizer nada. Matutei. Não me parecia má pessoa, mas tantas histórias tristes não começavam com elas a achar que eles tinham um ar sinistro.
- Fazemos assim: eu não vou apanhar um táxi, mas também não vou aceitar a tua boleia. Vou esperar pelo primeiro metro que é por volta das seis. Se és assim tão cavalheiro podes fazer-me companhia até lá.
Parou a olhar na direção do rio como se estivesse um tanto perdido, depois deu meia volta e foi para dentro. Pensei para comigo que tinha fintado mais um papalvo.
Voltei a concentrar-me no que ia fazer. Podia voltar para dentro, sempre era mais seguro. Podia ficar ali perto e pensar na vida a contar os segundos dos ponteiros que pareciam andar a velocidade de caracol. Podia dar uma volta e arriscar-me a encontrar algum tarado.
Assustei-me quando apareceu ao meu lado. Estava a acabar de ajeitar a gola do casaco:
- Então, como é que queres fazer? Queres sentar-te num destes bancos? Queres ir já para a porta do metro para seres a primeira a entrar? Tu é que mandas. Já agora eu sou o Francisco. E tu?
- Madalena.
Lembro-me de muito poucas coisas sobre o que falámos nessa noite. Recordo-me que estava embevecida com a espontaneidade dele. Queria que contasse mais. Tenho uma memória muito nítida de me sentir desconfiada a espaços, de achar que aquilo não podia passar de uma marosca, um tipo daqueles não podia nunca gostar de alguém como eu. Não registei metade das coisas que me disse porque estava a discutir comigo mesma na minha cabeça. A lidar com as minhas constantes inseguranças.
O metro estava mesmo a chegar. Levantei-me.
- Aqui está. Finalmente. Obrigada pela companhia. Para já, parece que sempre és um cavalheiro.
Fez-se um silêncio incómodo. Um desassossego que me percorria de alto a baixo. Ele fazia um ar de quem deixava claro que não daria o primeiro passo, não se ia pôr no lugar de quem leva uma estalada. Aproximei-me e quando se ouviu a buzinadela do metro a chegar, beijei-o.