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Exercício de escrita

Luísa

Parte 9 - Conto

31.08.21

O Eduardo chegou para passar uns dias connosco e vinha acompanhado do Daniel. Estávamos na quinta há quase quinze dias e ele ligou-me a dizer que tinha metido férias e que gostaria de as passar com as miúdas. Pelo que as pequenas lhe contavam havia quartos suficientes para que, se eu assim entendesse, ele fosse gerido como um familiar afastado, pudesse estar com elas e não fosse um incómodo.

Percebi que ainda havia ressentimento, mas o tom era mais leve. Mais conciliatório. A distância, dizem, por vezes opera milagres.

Chegaram já passava da hora de almoço, estava um calor terrível, dos dias mais quentes desse verão. A minha mãe mantinha-se à sombra, no alpendre, sentada num cadeirão que trouxemos da sala. Abanava-se com um leque, bebia água fresca e refrescos carregados de gelo. Ria-se a ver as miúdas e, de quando em vez, lá se aventurava a molhar os pés na berma da piscina.

- Não morro sem ir nadar nua. Tenho é que esperar que as miúdas estejam deitadas, não as quero assustar com a inevitabilidade da gravidade no futuro.

Rimos. A mãe, que sempre fez pouco da sua vida, porventura a única forma que conhecia para imprimir algum afastamento da realidade que persistia em magoa-la, reaprendeu a fazer pouco da sua condição. Sempre que passava por ela e a olhava, eu condoída, eu pesarosa, forçando-me a pendurar um quadro daquele momento na minha mente, ela olhava-me de soslaio, como se tivesse uma lista de piadas negras prontas a ser disparadas a cada gesto piedoso ou melancólico.

Quando viu o Daniel sair do carro não se coibiu:

- Ora cá está o rameloso. – disse-lhe enquanto ele subia os degraus para a cumprimentar.

- Pelo menos agora já não escondes o que achas mesmo de mim.

- Não tenho tempo para tretas. Literalmente.

Riram-se os dois.

O Daniel sempre gostou da minha mãe e ela, apesar de lhe custar o que sabia que acontecia entre nós, tinha um carinho especial por ele. Pelo Eduardo também. Tratava-os como se fossem filhos, como se, por serem envolvidos nas asas dela, fosse mais uma razão para que não deixassem o ninho.

- Onde é que anda a tua filha mais velha? Está lá para dentro?

- Estou aqui – respondi da janela por cima do lava loiça – já aí vou, estou só a acabar de lavar a loiça. As miúdas estão na piscina, podes ir lá vê-las.

Estavam divertidos na água. A Carina deve tê-los encaminhado para uma das casas e trocaram de roupa. Vestiram os calções de praia e estavam a lançar as miúdas num concurso de piruetas. Devo ter demorado demasiado tempo a esfregar copos que se sujaram depois de bebermos água. Perdi-me em pensamentos. Detive-me com o que iria achar da minha aparência. Senti-me a mesma mulher ridícula de sempre, aquela que quer que os outros gostem dela antes de gostar de si.

- Então, gostaste do espaço? – perguntei-lhe quando acabara de lançar a pequena e olhava com dificuldade em direção ao sol, o rosto confiante de um pai que não pode transparecer que não sabe o que está a fazer, misturado com o medo de um homem que não sabe se terá aplicado força demais no lançamento de maneira a que a pequena acabasse do lado de lá da piscina aos gritos e a dizer que o pai era um bruto.

- Gostei. – disse-me com as mãos em pala, as sobrancelhas franzidas.

Saiu da piscina para me cumprimentar. Afastei-me. Não me queria molhar. Não queria que pensasse que estava tudo de volta ao normal só porque tinha aparecido. Porque sorria e brincava com as filhas.

- Estás bonita – disse-me – o cabelo curto fica-te bem. E as roupas com cores também. Estás….

- …mais leve.

- Sim.

- É a vida do campo.

- Deve ser.

As miúdas chamavam por ele. Não estavam dispostas e dividir o pai com mais ninguém, já bastava ter de parti-lo ao meio, uma metade para cada uma. Uma metade que mediam constantemente. Veio-me à ideia a pergunta: será que teria sido assim com o nosso pai, se eu e a Carina o tivéssemos tido na nossa vida como as miúdas têm o Daniel?

- Volta para a água, as pequenas estão cheias de saudades, querem a tua atenção.

Ele voltou para a piscina. Eu voltei costas e fui sentar-me ao lado da minha mãe. Ele guardava cuidadosamente as imagens que a vida lhe dava. É um lugar comum, tão comum que persistimos em não compreendê-lo, mas é preciso que o fim se aproxime para que queiramos ver o que está à nossa frente. Peguei no meu livro e fingi que lia a mesma página por mais de uma hora. Por cima das primeiras linhas espreitava o meu marido, que, apesar de infiel, era o homem que amava e perguntava-me se eu seria capaz de esquecer. Porque para continuar é preciso mais do que perdoar, é preciso começar um novo princípio e deixar enterrado o que ficou para trás. Olhava para a minha mãe. Fazia o mesmo que os fotógrafos fazem quando fotografam quem está a fotografar. Queria arquivar na minha memória aquela imagem, que me traria o descanso de saber que os últimos meses lhe deram mais do que alguns anos.

As miúdas foram para a cama cedo. Exaustas.

A minha mãe, depois de tomar os medicamentos para as dores. Não aguentou muito acordada.

A Carina e o Eduardo foram dar uma volta com a pequena, matar as saudades de estarem só os três.

Ficámos nós: eu e o Daniel. Ele encostado de um lado da portada que dava para o alpendre. Cigarro na mão. Eu encostada no outro lado. Copo de vinho na mão.

- A vida aqui é uma coisa diferente. – disse-me.

- É. – confirmei.

- E isto é mesmo do vosso pai.

- Sim. Estás a fazer contas?

- Estou. Mas não são as contas que estás a pensar?

- Então que contas são essas?

Olhou à volta. Inspirou profundamente. Parecia que estava a testar o ar. Apagou o cigarro.

- Este espaço podia ser um negócio.

- Explica melhor.

- Um turismo rural. Há tantos agora. Há procura. Imagina. Há uma casa para a tua irmã. Há uma casa para ti. Há uma casa grande com quartos para alugar. Há espaço. Há piscina. As miúdas podiam ir à escola aqui perto. Conhecer uma vida mais calma, mais simples.

- É uma ideia. A Carina falou nisso no outro dia.

- E tu o que é que achaste da ideia?

- Boa. Mas o pai das minhas filhas mora a mais de duzentos quilómetros de distância e eu não vou afastar as miúdas dele.

- E se o pai das miúdas viesse também? Vida nova. Casa nova. Pessoas (quase-e-com-muitos-defeitos-na-mesma) novas.

Olhámo-nos durante demasiado tempo. Como se estivéssemos a falar por telepatia. Até que ele acrescentou:

- Não a vejo desde que me disseste que nos íamos afastar. Acho que precisava de saber o que era ver-te sair para perceber.

Luísa

Parte 8 - Conto

28.08.21

Sou uma mulher de listas. Listas para as compras. Listas para as tarefas do trabalho. Listas para as tarefas de casa. Listas para as coisas que tenho de comprar para as miúdas. Listas, listas e mais listas. São a minha sensação de controlo. O mínimo de organização que consigo impor.

Por isso fiz uma lista com tudo o que tinha de levar: roupas das miúdas, roupas minhas, calçado, medicamentos da minha mãe, mercearias básicas, produtos de limpeza. Tratei de tudo e dei comigo naquela manhã, com o corredor cheio de malas, sacos, cestas, pacotes e mais pacotinhos e uma sensação de que ainda assim me havia de faltar alguma coisa.

O Daniel andava pela casa, fazendo notar a sua presença, passando por mim sem oferecer ajuda, mostrando o seu desagrado pelo tempo que íamos estar afastados.

- Isto pode ser bom para todos. – disse-lhe enquanto olhava para os sacos e ele se mantinha encostado à ombreira da porta da cozinha, de chávena de café na mão.

Não me deu resposta.

As miúdas estavam eufóricas. Para além de um verão em que fomos passar uns dias ao Algarve para uma casa alugada a preço de saldo a um familiar de um colega de trabalho do Daniel, as miúdas nunca saiam dali. Íamos à praia perto de casa, um tempo infernal dentro de um carro com o ar condicionado avariado, filas de trânsito, um desespero para sair da praia com carros estacionados dos dois lados, quase pendurados das árvores.

Iam ter uma aventura para contar às amigas. Iam passar aquelas férias livres, com espaço, longe das quatro paredes do apartamento, longe dos dias enfiadas no ATL onde olhavam por elas até ao final de julho e depois andariam aos caídos, entre uns dias de praia, uns passeios ao jardim, uns dias a ver filmes na televisão até que setembro acabaria por chegar e tudo começaria de novo.

O meu pai falou com um amigo que nos dispensou uma carrinha da empresa e um empregado que nos fosse deixar ao nosso destino. Dessa forma poderíamos seguir todas juntas e levar as tralhas que precisávamos para mais de um mês. Segundo o que o nosso pai nos disse, à porta da tal casa havia um carro velho, que deveria ainda funcionar, que era usado pelo senhor que de vez em quando lá ia dar um jeito às coisas, só mesmo para garantir que as ervas daninhas não comiam a casa.

A Carina chegou ainda não eram dez da manhã. Bebé sentada na anca. As malas no carro. O Eduardo num misto de alívio por ter umas noites para dormir sem solavancos e as saudades que ia ter das duas até que chegasse o fim de semana.

Para minha surpresa o Daniel acabou por se oferecer para levar as malas para baixo. Ele, o Eduardo e o senhor que nos havia de conduzir. Américo, era o seu nome. Um velhote castiço, de bigode farto, que estava reformado, mas que, dada a miséria dos rendimentos, fazia uns biscates aqui e ali para o Sr. Rodrigues. Ganhava mais algum, sentia-se útil e assim não aturava a patroa o dia todo. Não tinha feitio para ir para o jardim jogar à batota com os outros da sua idade, isso sim, é que o mataria, disse-nos bem-disposto.

Com tudo arrumado e prontos para arrancar, faltava que me despedisse do Daniel. Não nos beijámos nem lhe disse que ligaria ao final do dia para conversarmos um pouco. Não lhe disse que teria saudades.

- Quando chegarmos mando-te uma mensagem só para saberes que está tudo bem.

Ainda que de forma relutante, o Daniel tinha aceitado que o afastamento seria bom para os dois. Eu não lhe ligaria. Falaria com as miúdas ao final do dia e, se por acaso a saudade das pequenas apertasse, poderia aparecer lá desde que avisasse com antecedência.

Combinei que lhe mandaria fotografias delas. Que fariam chamadas pelo Whatsapp para que se pudessem ver todos os dias se desejassem.

Começamos a fazer caminho.

Precisei de uma boa meia hora para começar a descontrair.

As miúdas e o senhor Américo faziam a festa. A minha mãe estava tão entretida com as conversas dos três que a doença parecia ter-lhe dado tréguas ou estar ela mesma embevecida com aquela pândega, de tal forma que não se queixou a viagem toda.

Era bom vê-la naqueles momentos, esquecida do presente, despreocupada com o futuro, livre do mal que a subjugava.

A casa era mais do que uma simples casa. Um alpendre de novela, espaço para dar e vender. Uma casa principal e mais duas pequenas casas, ligeiramente afastadas da principal. Uma boa piscina, árvores de fruto e espaço, muito espaço.

Imaginei como seria bonita a noite ali, só com a luz da lua e o brilho das estrelas. Sem o som dos carros a passar lá fora.

A Carina limpou uma cadeira para a nossa mãe se sentar. Sentou-se e ali ficou, enternecida, a olhar para o que lhe parecia um infinito de terra, onde havia uma estrada ao longe. Um carro a cada duas horas.

Nem todos contam os últimos dias com os olhos postos em algo bonito.

Vi que os olhos se lhe começaram a encher de lágrimas e o velho Américo também. Sábio e de vida com contornos que só ele sabe, disse:

- Olhe Luísa, a sua mãe está com medo que a meta a aparar esta relva toda.

A nossa mãe riu-se. Nós também. Pousei-lhe a mão no ombro, apertei só o suficiente para que o calor daquele gesto fosse maior que quaisquer palavras. Há momentos em que o silêncio fala mais. Fala melhor.

Levámos os sacos para dentro. A casa não tinha muito para limpar. Era notório que alguém aparecia ali de quando em vez para garantir que não ficava ao abandono.

As miúdas foram correr em torno da casa. Conseguia ouvi-las lá fora. Para além dos pássaros eram o único som. Pediram para ir para a piscina, deixei-as ir molhar os pés.

Abri a janela da cozinha, a que ficava mesmo por cima do lava loiça. Conseguia ver as miúdas sentadas na berma da piscina, a conversar sobre coisas que só a elas interessavam.

Preparei uma salada de atum com grão. A iguaria de quem tem mais que fazer. Sentámo-nos no alpendre, cada um com o prato na mão, um garfo na outra e o copo pousado ao lado. O dia estava bonito demais para que nos fechássemos em casa.

- Fazia disto vida. – disse a Carina com ar satisfeito.

- Quem não, menina. – respondeu-lhe o Américo.

Parei para respirar um pouco daquele ar fresco e concluí:

- Para já é a nossa vida para o próximo mês e meio.

Luísa

Parte 7 - Conto

27.08.21

Surpreendeu-nos que vivesse de forma tão simples. Era certo que o apartamento era melhor do que o meu e do que o da Carina, mas quando alguém aparece capaz de dispensar umas dezenas de milhares de euros, confesso que penso que essa pessoa viverá, no mínimo, numa vivenda com mais casas de banho do que assoalhadas, sala de jogos, piscina, garagem para quatro carros e um Mercedes estacionado à porta.

Era um homem bem-parecido e razoavelmente conservado para a idade. Tinha a sua estampa, mas, apesar de não denotar o desgaste do tempo, aquele que a nossa mãe tinha, percebíamos que a vida lhe tinha pesado de alguma forma. Havia algo no olhar que mostrava que conhecia os efeitos do sofrimento.

A mesa estava posta e sentámo-nos para almoçar.

Eu tentei alguma conversa de circunstância. A Carina não permitiu.

- Então diga lá o que é que quer de nós ao fim destes anos todos?

- Conhecer-vos.

- Acha-nos burras?

- Não. Mas porque razão… - não o deixou terminar.

- Ouça, eu não sei quem o senhor é, mas aparentemente partilhamos o ADN… – tentei chamá-la, refreá-la, Carina, disse-lhe com tom de quem admoesta, mas não me estava a ouvir.

– … a nossa mãe cuidou de nós anos a fio sem a sua ajuda. Não teve vida. As somas e subtrações do seu calendário somos nós. Nunca viajou, nunca gastou dinheiro para se cuidar, quando deixámos de ser uma despesa já sentia que a vida estava pelas costas e não valia a pena mais. Nunca conheci um namorado à minha mãe, sabia disso? Não precisa responder, é retórica.

- A vida também não foi fácil para mim.

- Imagino. – disse, enquanto enchia um copo com vinho rosé e o bebia de um trago.

- A Carina está cansada, tem uma bebé pequena…mais isto agora e sabermos que a mãe…é complicado.

- Ah, que se foda essa conversa, Luísa. Lá estás tu. Tu desculpas toda a merda, eu não. Estou aqui, já me conheceu, já viu a cara de quem achou que não era sua filha. Agora transfira o dinheiro e deixe-nos estar com a nossa mãe.

A Carina levantou-se. De maço de tabaco na mão, aparentava estar perdida, como se procurasse algum sítio.

- Quero fumar um cigarro, onde é que há uma varanda nesta casa.

- Podes fumar aqui. Vou buscar-te um cinzeiro.

Ele levantou-se. Eu abri os olhos para a Carina. Falei suficientemente baixo para apenas ser possível perceber o que queria dizer lendo o movimento dos meus lábios: o que é que se passa contigo?

Encolheu os ombros.

Quando regressou à sala, o nosso pai trazia o cinzeiro que deu à Carina. Disse-nos que tinha aproveitado para desligar o forno. Tinha metido na cabeça que íamos ter um almoço encantador, entre duas filhas contentes de reencontrar um pai que as queria muito ver. Imbecilidades de um velho que às vezes já não sabe o que pensar, concluiu.

- Podia pedir desculpa, mas a palavra parece-me pequena para o que vos devo. A minha falha é um buraco no meu chão, um fosso sobre o qual caminho todos os dias. Eu gostava muito da vossa mãe, mas gostava ainda mais do que ela representava: a possibilidade de criar um lar como nos filmes, como o que eu não tinha. Quando olhava para ela não a via, via a ideia do que eu julgava poder ser aquela vida do homem que chega a casa e tem a mulher bonita e arranjada com os filhos ao colo. Filhos que não choram e menos fazem birras. A vida de um homem de negócios que, quando entrasse nos quarenta começaria a fumar charutos e convidava os amigos para almoços na sua casa com jardim. Tinha muitos sonhos e planos para cumprir. Queria provar que era melhor que o meu pai, que nos tratava como tralha, que trabalhava de vez em quando, que nunca se esforçou por nada. Achava que tudo dependia no meu esforço e dedicação. Trabalhei para esse ideal. Noite e dia. Mas a vida não era assim. Os negócios davam dinheiro, mas o meu sócio era melhor do que eu. Eu era bom a fazer, a garantir o trabalho, ele era o homem de negócios confiante. Comecei a invejá-lo. A custar-me estar perto dele. Eramos amigos. A vossa mãe, depois de tu teres nascido Luísa, passou a ter-te como a única e principal preocupação. Eu era o pai da filha dela. Não existia. Sentia-me um vulto em todos os lados, até que um dia conheci uma mulher, ela era uma atriz de teatro de segunda que vivia como se fosse uma estrela de cinema. Era atraente, sabia viver bem, onde ir, como comportar-se. Fiquei fixado nela. Acho que seria capaz de fazer qualquer coisa que me dissesse. Mas ela nunca quis que eu deixasse a tua mãe. Dizia que não destruía lares, divertia-se. Custava-me ver-vos. Qualquer uma de vocês. Eram o meu fardo, era por vossa causa, pelo sonho falhado que representavam, que eu sofria. Por vossa causa eu não me conseguia ver capaz de virar costas a um negócio que detestava, eu era o vosso sustento e recusava-me a ser o meu pai. Por vossa causa a mulher que eu amava não se casava comigo. Tentei até que a vossa mãe saísse de casa acusando-a de infidelidade. Achei que, se a vossa mãe saísse a Laura entraria de livre vontade. Não aconteceu. A Laura não queria uma vida de casada, queria ser independente e não estar agarrada a homem nenhum. O que ela tinha de que eu mais gostava, a sua independência, era o que a fazia nunca poder ficar comigo. Então fiz pior do que o meu pai. Afastei a família que tinha. Entreguei-me à bebida. Depois ao jogo. Perdi a casa em que vivemos. Foi o meu sócio que me deu a mão e me ajudou a recuperar. Foram precisos anos para que eu pudesse compor uma parte do mal que fiz e por essa altura já vocês seriam adolescentes. Procurei a vossa mãe e um dia vi-vos chegar a casa de um passeio. Pareceu-me injusto, nessa nesse momento, intrometer-me no que ela tinha conseguido sozinha. Mantive-me longe, mas tentei estar suficientemente atento para que, se um dia precisassem de mim, vos pudesse valer. Esse dia chegou. Não quero que gostem de mim. Não preciso que me chamem pai. Não espero sequer fazer pazes comigo mesmo. Os meus demónios vão estar comigo sempre. Espero apenas que a soma do que fiz bem nos últimos anos me permita fazer uma coisa boa.

Eu e a Carina olhámos uma para a outra, sem palavras.

- Obrigada por ser honesto connosco. – disse-lhe.

- Recentemente comprei uma casa no Alentejo, ali para os lados de Beja. Tem muito terreno e foi remodelada há poucos anos. Penso que um dia talvez me mude para lá, mas depois quando lá vou acho que aquilo é grande demais para mim. Tem demasiadas coisas para tratar. Faz-me sentir ainda mais sozinho.

Parou e ficou a rodar o copo, parecia concentrado no líquido rosado que estava lá dentro.

- Pensei que podia ser um sítio para que possam querer ir com a vossa mãe. Pelo menos durante algum tempo. Respirar ar fresco. Deixar os afazeres. Podem levar as crianças que vão entrar brevemente em férias da escola. Prometo que não lá apareço de supetão.

Luísa

Parte 6 - Conto

25.08.21

- Estás a contar o episódio de ontem à noite na novela da TVI, certo?

- Não. Não estou com brincadeiras. É mesmo isto.

A bebé começou a chamar do berço, tinha acordado da sesta. A Carina baixou a cabeça e suspirou.

- Acabou o descanso, tenho de ir buscá-la. Não fica quieta tempo nenhum. Ou dorme ou quer atenção.

- É pequenina, tens de ter paciência.

- E tenho, Luísa. Queixar-me de estar exausta e de que queria poder continuar a conversar com a minha irmã enquanto bebo um café e fumo um cigarro não tem nada de errado.

- Eu sei.

- Sabes? Devias experimentar um dia destes teres um bocado para ti. Levares as miúdas para a tua sogra, deixares a mãe aqui, cagares para o teu marido traidor e ires cuidar de ti. Dar uma volta, espairecer, descobrires coisas que tu gostas.

A Carina já ia longe no corredor e por isso não me ouviu dizer mais para mim que para nós: não saberia o que fazer comigo. A minha vida era consumida pelos outros, acho que seria assustador se, de repente, me visse com a possibilidade de poder fazer alguma coisa que eu pudesse escolher.

Apareceu com a pequena ao colo. As duas sorridentes. Passou-me a menina que ficava sempre encantada com os meus brincos e foi preparar-lhe uma papa para o lanche.

- Tens de ter atenção às quantidades.

- Eu faço a olho e ela está ótima. Relaxa, criatura.

Fiquei a vê-la preparar a papa, capaz de lhe arrancar a colher das mãos e de, com a criança pendurada na anca, fazer eu mesma, com os gramas e os mililitros certos.

- O teu mal é esse, sabes? Criaste um mundo onde achas que tens de fazer tudo de uma certa forma e que tens de ser tu a fazer e que para que tudo apareça feito tu tens de te anular porque dessa forma não tens de olhar à tua volta e lidar com o que te atormenta.

- Vim cá falar da nossa mãe e do pai que afinal temos. Como é que acabámos a falar de mim?

- Eu amo a mãe e estou aqui para lhe dar todo o carinho neste período. Quero mais é que esse senhor se foda…

Interrompi-a.

- Não devias dizer asneiras em frente à menina.

- …como eu dizia, quero que esse senhor se foda, não é meu pai porque se borrifou para mim, mas aceito conhecê-lo porque a mãe pediu. Agora tu, meu zombie feito pessoa, preocupas-me mais. Já te viste ao espelho? Eu sei que estou na merda, mas a minha miúda tem ano e meio e eu estou a tentar sair do buraco, tu não esgatanhas para sair daí há quase oito anos.

- É complicado.

- É uma segurança ilusória. Tens medo de quê?

- Eu não tenho medo.

- Tens. Tens sim. Que te julguem má mãe. Que te julguem má filha. Que ele volte a olhar para ti depois de te esforçares e mesmo assim não te queira.

- Estás a ser cruel.

- Estou a ser uma irmã que te ama e te vê de cabeça enfiada debaixo do chão, Luísa. O teu marido tem uma amante. Tu sabes e não o metes fora de casa. A tua sogra, apesar de chanfrada, é boa pessoa, oferece-se para ajudar, não aceitas porque só tu sabes cuidar das miúdas. Implicas porque a mulher não lhe lê histórias à noite, elas sabem ler as duas, caramba. E a mãe?

- O que é que tem a mãe?

- Tu sabes. Queres poupar-me como se eu tivesse cinco anos e ficas tu com o fardo. Ambas adoramos a nossa mãe, mas vá lá, pesa. Tu sabes que pesa.

Fui ao frigorifico buscar uma coisa que não sabia o que era. Aproveitei o frio para engolir a vontade que tinha de chorar.

- Tenho curiosidade em saber se alguma de nós é parecida com ele. Se calhar ele é como tu, prático e desapegado. – disse-lhe.

- Eu não sou desapegada. Sou racional e quero que os outros vão bardamerda. Não me preocupo com opiniões alheias. A mãe também não. Vai na volta tu é que és como ele.

Fez-se silêncio.

Acabámos distraídas com as gracinhas da bebé e não voltámos ao mesmo assunto. A Carina sempre foi assim: capaz de perceber a quantidade certa de pressão que cada um consegue aguentar. Invejo-lhe isso.

Na minha cabeça ficou a pergunta: será que eu sou como ele?

Quando cheguei a casa pedi à minha mãe que o contactasse. Estávamos disponíveis para ir almoçar com ele no sábado. Numa primeira fase iriamos apenas as duas. Sem filhos e maridos.

 

 

No meu emprego aceitaram conceder-me a licença sem vencimento. Mas percebi que muito provavelmente as coisas poderiam não correr de feição no meu regresso. Não pensei mais nisso, tinha um ano para ver o que havia de fazer da minha vida. Para a Carina veio mesmo a calhar, soube que não lhe iam renovar o contrato. Trabalharia mais duas semanas e depois voltava à estaca zero do fundo de desemprego. As mães com filhos bebés e as entidades patronais, uma história que não tem fim.

Luísa

Parte 5 - Conto

22.08.21

- Já decidiste o que é que vais fazer?

- Sim. Vou aceitar conhecê-lo. Não posso dizer que vou rever uma pessoa de quem mal me lembro. Só me falta falar com a Carina.

- Claro que aceita.

- Porquê “claro que aceita”?

- Luísa, eu às vezes não sei se és mesmo ingénua ou se queres ter os olhos fechados para a realidade. O velho está carregado de dinheiro, a tua irmã vive a fazer contas à vida, como nós, aliás. Esta é uma oportunidade de vos compensar pelo que fez. Eu digo que o melhor é ver até onde vai o pote.

No domingo à noite, depois de a casa estar em silêncio, sentei-me do meu lado da cama e encostei-me à cabeceira. O Daniel estava a ver qualquer coisa no telemóvel, ria-se que nem um perdido. Interrompi o divertimento. Contei-lhe o que se tinha passado.

Gostava de dizer que esperava uma reação diferente, mas era exatamente assim que sabia que aconteceria. Sentido prático. Sem lamechice. A oportunidade de deitar as mãos a uma vida melhor. O Daniel sempre foi um homem trabalhador e um pai amoroso. Nos momentos altos, quando somos um casal e não meros companheiros de responsabilidades, consegue ser o homem carinhoso com quem me quis casar. É, ainda hoje, o homem que quero para mim. Tenho amigas que passaram por fases complicadas nos seus casamentos, umas que acabaram por se divorciar, outras que tiveram amantes, umas que quase tiveram amantes. Tanto elas como eles tinham chegado a um ponto de rutura, uns por causa dos filhos, outros pelas rotinas, outros ainda porque não estava certo desde o início. Deixavam de se ver como homem e mulher, já não havia desejo, aquilo que faz a diferença de uma amizade para algo mais profundo. A entrega, a partilha. Então aparecia alguém que representava frescura, novidade, aquele malfadado frio na barriga que, na nossa idade se revela na fuga de uma vida que tomamos por certa e sabida, com voltas contadas e previsíveis.

- Nem todas as pessoas avaliam a vida como tu, sabes?! Este homem fez coisas erradas, virou costas à família, virou-nos costas a nós. Do que sei, podíamos ter tido uma vida mais completa, com um pai presente, sem faltas.

- As pessoas cometem erros.

- Compreendo que sejas tolerante.

- Como é que este assunto deu a volta para ser sobre mim.

- Porque é sobre nós.

- A meu ver é sobre ti e a tua irmã. Só se vier daí alguma coisa é que pode ser sobre todos nós.

- Não encontro palavras para descrever o que acho do que estás a dizer.

- Estás à procura de uma discussão? O teu pai traiu a tua mãe e tu queres ir buscar assuntos antigos e fazer-me a mim pagar por isso.

- Não são assuntos antigos e tu sabes disso.

Eu tirava e voltava a pôr a aliança. Olhava para as minhas mãos. Não conseguia olhar-lhe para a cara. Ele remexeu-me na cama, o incómodo dos culpados que se julgam impunes porque calculam estar a ser avaliados por imbecis.

Por momentos recordei-me da última vez que tínhamos ido jantar fora só os dois. Eu tentei arranjar-me, mas fi-lo sem vontade e isso notava-se. Ele escolheu um sítio com televisão e esforçou-se para que nos sentássemos num lugar em que ele teria vista para o ecrã. Percebi isso quando começou o jogo. Comemos as entradas entre comentários de quem não se conhece. Que o pão estava bom, que a manteiga de alho valia a pena ser provada. Eu pensava se a minha sogra teria lido uma história às miúdas em vez de as meter a ver a novela até adormecer. Quando me ocorreu uma pergunta para fazer – já não me lembro sobre o quê – ele fez um comentário sobre o onze escolhido pelo treinador. Percebi que tinha ido jantar sozinha. Uma refeição de noventa minutos, com direito a descontos e intervalo.

Quando chegámos a casa vesti umas calças de fato de treino e uma t-shirt velha. Sentei-me no sofá a ver uma série. Aproximou-se de mim e tentou beijar-me o pescoço. Disse-lhe “quero mesmo ver isto se não te importas” e ele foi para a cama.

Afastei a memória e respondi-lhe:

- Eu sei que ainda te encontras com ela.

- Luísa…

- Não me venhas com o “Luísa”. Eu sei. A Marta viu-te entrar no prédio dela. És tão burro. Sabes que eu e a Marta somos amigas, sabes que moram a duas ruas uma da outra. A Marta já te viu lá mais do que uma vez.

- É complicado.

- Sempre foi complicado.

- Não posso fazer nada em relação aos meus sentimentos. Tu afastas-me. Desde que as miúdas…

- Não metas as miúdas nisto. Se não me queres, então porque é que não vais viver com ela?

- Porque queria que as coisas se compusessem cá em casa. Que fosses minha mulher outra vez. Minha mulher, em vez de seres a mãe das minhas filhas.

A culpa terminava sempre apontada a mim. Ele precisava de outra porque eu não lhe dava atenção. Eu não me arranjava, não me cuidava. Eu só pensava nas miúdas. Era uma mãe e peras, mas tinha matado a mulher que ele queria.

- Tenho um trabalho difícil e stressante. Tenho duas filhas, sendo que uma acorda todas as noites e pede para conversar. Tenho uma mãe a morrer de cancro. Tenho um pai que nunca quis saber de nós até agora, aparentemente. E tenho um marido que, com tudo isto, queria que eu aparecesse fresca e fofa, sempre com vontade de andar às cambalhotas e a lavar o chão de saltos altos e mini saia. Tens ideia de como és egoísta?

- Querer que me vejas não é ser egoísta. Sentir-me homem e querer que a minha mulher queira estar comigo não é ser egoísta. Eu ajudo em tudo, caramba.

- O mal é esse: ajudas. Tu achas e toda a gente acha que eu sou uma sortuda. Tu não devias ajudar, é o teu papel. Apoiar e fazer a tua parte.

Ele voltou-se e disse até amanhã. Não quer ser o mau da fita.

Adormeceu em minutos. Invejei-lhe a capacidade de encostar a cabeça à almofada e dormir como se não estivesse ao lado de uma mulher que trai frequentemente.

Apaguei a luz, deitei-me e virei-me para o outro lado. Procurei a imagem do rapaz da cafetaria e imaginei como seria se eu fosse uma mulher sem amarras.

Luísa

Parte 4 - Conto

21.08.21

Nunca houve discussões. O meu pai aparecia pouco porque trabalhava demasiado. Às vezes passávamos dias sem o ver. A minha mãe estava em casa, tomava conta de nós e cuidava da casa.

Até que um dia, quando cheguei a casa vi que uma mala estava em cima da minha cama. A minha mãe pediu-me que guardasse os meus brinquedos, ela guardaria os da Carina, íamos viver para outra casa, mais pequena, mais aconchegada. Não íamos ter as mesmas coisas que tínhamos até aí, mas ficaríamos bem.

A minha mãe chorava copiosamente. A dor de um coração partido vê-se espelhado no rosto que se disforma.

O único assunto tabu em casa era o pai. Podíamos falar e perguntar sobre tudo com a mãe, menos isso.

Acho que senti mais falta das regalias, de ter um quarto para cada uma, do jardim e espaço para dar e vender, senti mais falta das coisas que ele nos proporcionava do que dele. A imagem do nosso pai era uma ilusão que aparecia poucas vezes e que quando estava, mal interagia connosco. Não me recordo de abraços, de carinho ou de beijos de boa noite.

Com o tempo passou a ser uma memória esfumada. Se o encontrasse na rua não o reconheceria.

Não havia fotografias em molduras nem álbuns escondidos numa gaveta secreta.

Depois de lhe ter dado o telefone para a mão a minha mãe fechou-se no quarto das miúdas e esteve lá mais de uma hora. Quando de lá saiu disse-me apenas:

- Está tratado. Vê no teu emprego se há algum constrangimento.

Tinha os olhos em lágrimas. Voltou a sentar-se à janela. Não jantou. Comeu meia dúzia de bolachas para acompanhar com os medicamentos para as dores. Pensei em insistir, mas sabia a resposta que iria receber: achas que se não me alimentar em condições ainda morro. É capaz.

De madrugada conseguia ouvi-la na sala. Assoava-se amiúde. Fungava. As notas musicais que o corpo não esconde quando chora.

- Podemos conversar? – perguntei-lhe quando cheguei à sala e a encontrei de lenço na mão.

- Uma mulher sabe que vai morrer, chora.

- Não é por essa razão que estás assim e ambas sabemos disso. Passaram-se mais de trinta anos, sempre respeitei o teu pedido, mesmo quando me casei, mesmo quando tive de inventar histórias de encantar para explicar às miúdas porque razão não tinham avô materno. Mas preciso saber. Acho que merecemos saber.

- Está bem, vamos para a cozinha. Bebemos um chá, que sempre me tira os enjoos.

Primeiro não quis ajuda a chegar à cozinha, mas acabou por aceitar encostar-se a mim. Quando se sentou, com os braços suportados pela mesa redonda e gasta da cozinha, parecia ter caminhado dois quilómetros em vez de dois metros.

Pus água na chaleira, preparei as chávenas com chá. Sempre chá coado, a minha mãe dizia que as saquetas roubavam qualquer coisa ao sabor das ervas, contaminando-o com algo desagradável.

Deixei que começasse quando quisesse, a seu tempo, pela parte que lhe fosse mais confortável. Eram três da manhã e nenhuma de nós ia voltar a dormir. Para além disso domingo estava à porta e não haveria correrias para sair para a escola ou para apanhar o malfadado autocarro.

- Estávamos muito apaixonados quando nos casámos, eu e o teu pai. Era como se o mundo se desenhasse em torno dele. Tínhamos pouco dinheiro, fizemos um casamento simples. Casámos no registo, com a família mais próxima e meia dúzia de amigos. Oficializámos os nossos sentimentos. Eu trabalhava no ministério e o teu pai tinha começado a empresa dele. Ao principio só dava prejuízo, o dinheiro era contado e dependíamos do meu ordenado. Fiquei grávida pouco depois. Vivíamos numa espécie de lua de mel, em que tínhamos pouco de tudo, mas os sentimentos ocupavam os espaços vazios. Pela altura em que nasceste a empresa já começava a dar algum lucro. Ainda não tinhas um ano quando as coisas estavam verdadeiramente compostas e ele insistiu que eu devia ficar em casa, tomar conta de ti, deixar que ele tomasse as rédeas das contas e dedicar-me à família e à casa. Assim fiz. Ele dava-me uma mesada para a casa e para mim. Depois começou a chegar cada vez mais tarde. A ter mais e mais reuniões. As camisas não cheiravam a suor. Até que um dia a camisa chegou com marcas de batom. Confrontei-o. Disse-me que tinha sido só uma vez. Que era coisa de homens, que os homens tinham necessidades que as mulheres não entendem. Nunca lhe tinha ouvido aquele discurso. Perdoei. Porque não tinha para onde ir. Porque o amava e não conseguia imaginar-me a quebrar tudo o que tinha.

Parou para beber mais uns goles de chá. Eu não disse uma palavra.

- Tu devias ter uns três anos quando nos mudámos. O teu pai insistiu que devíamos ir morar para uma vivenda grande, com jardim e piscina. Uma casa em condições, dizia ele. Como se o apartamento onde começámos a nossa vida não tivesse valor. E foi aí que as coisas descambaram. Raramente aparecia em casa. Quando chegava já estávamos todas deitadas. Saía cedo. Era como se não nos quisesse encontrar. De vez em quando marcava um jantar com outros homens de negócios, dava-me dinheiro extra para comprar roupas novas para nós. Queria a fotografia da família feliz. Eu apoiei em tudo. Mudou-se para a casa ao lado um casal novo, ela era enfermeira e ele era jornalista, por isso passava muito tempo em casa. Começámos a conversar no alpendre. Depois começámos a ir a casa um do outro. Ambos queríamos, mas nunca aconteceu nada. Uma tarde o teu pai apareceu mais cedo em casa e viu-nos a beber café no jardim das traseiras. Tirou as suas próprias conclusões, ou aquelas que lhe interessavam. Discutimos pela primeira vez. Ele acusou-me se ser infiel, chamou-me de puta, de vadia. Eu acusei-o de me trair com uma e mais outra. Ele defendia-se dizendo que para os homens era diferente. No calor das emoções, ele encostou-me à parece e quando eu pensei que me iria bater, acabou por me beijar. Passámos uns meses felizes até que descobri que estava grávida. Depois a tua irmã nasceu. Ele não estava lá para a ver chegar ao mundo. Tratava a menina com indiferença, como se não lhe pertencesse. Uma tarde ligou uma mulher lá para casa, queria falar com ele. Assuntos pessoais, disse. Fiz as malas. Nesse dia esperei por ele e disse-lhe que me ia embora. Só me respondeu “então levas a filha do vizinho contigo. Eu só me responsabilizo pela minha, ou por aquela que sempre julguei ser minha.”. Preferia que me tivesse batido. Informei-o que sairíamos de manhã, as três. Acordámos que eu não o incomodaria. Assinámos os documentos necessários sem guerras. Deu-me valor bastante para eu conseguir compor a minha vida. Suficiente para que não o envergonhasse em frente aos amigos. Nunca soube o que lhes disse.

- Então como é que tens o número dele?

- Quando fiquei doente ele soube e procurou-me. Estava velho e gasto. Arrependido, disse.

- E agora?

- Agora ele vai dar-vos dinheiro para que possam ficar em casa comigo. E gostava muito de vos voltar a ver.

Luísa

Parte 3 - Conto

15.08.21

- Não vos deixo nada, a não ser meia dúzia de tarecos e as memórias do estorvo que vos causei.

- Mãe, não digas isso. Estás doente e nós cuidamos de ti com todo o gosto. Tal como cuidaste de nós com todo o amor e carinho. Tantas vezes fazendo de pai e de mãe ao mesmo tempo.

Mentira. Falsidade piedosa. Ambas sabíamos que nos causava transtorno, que quando eu estava perdida a meio do hall de entrada sem saber se devia ver se a minha mãe precisava de alguma coisa, se as miúdas já tinham acabado os trabalhos de casa ou se ia para a cozinha pôr o jantar ao lume, a vida ficava esse tanto mais custosa. Sabíamos que nesses momentos o fardo pesava. Mas não se dizia, porque uma filha que é boa filha cuida da mãe e agradece a Deus ter um teto para dar um lar àquela que a trouxe ao mundo.

Quando entrei na cozinha olhava absorta para a janela. Os olhos estavam pousados lá fora, como se estivesse atenta ao bulício da rua numa manhã de sábado, mas eu sabia que estava perdida em pensamentos de culpa e arrependimento. Todas as coisas que agora lhe pareciam claras como água e que, anos antes, não se lhe apresentaram com a mesma lucidez. É a matemática final da vida, parece que quando a reta se começa a esgotar nos dotamos finalmente da clarividência necessária para descortinar as decisões mais inteligentes.

Aparentemente deu conta que entrei na cozinha, mas não reconheceu a minha chegada com um cumprimento básico, em vez disso, estava já eu encostada à bancada, à volta com os copos e as canecas da manhã, quando começou esta conversa, como quem continua um raciocínio que se iniciou há muito tempo, silencioso. O único fragmento da dor que estava disposta a partilhar.

Os médicos concluíram os exames e pediram para falar comigo. Não havia muito mais a fazer para além de lhe garantir o conforto possível até ao fim.

Entre três e seis meses.

Máximo dos máximos são seis.

O médico perguntou-me se eu queria que ele falasse com a mãe também. Disse-lhe que tinha de conversar com a minha irmã. Que tínhamos de ter uma pequena margem de tempo para quebrar e voltar a levantar a cabeça. Seriamos nós a contar-lhe.

Quando nos viu às duas na hora da visita percebeu e limitou-se a perguntar:

- Quanto tempo?

Teve alta dois dias depois e veio para minha casa. Custa-me que as miúdas tenham de ver a avó assim, mas é complicado para a Carina com uma bebé de colo em casa.

- Vou ter saudades das miúdas. Ou acho que vou ter saudades. Achas que, para onde vou, terei saudades? – continuou ao fim de alguns minutos.

- Não sei, mãe. Nunca pensei nisso.

- Eu acho que sim, porque já levo as saudades comigo. Vossas, sim. Mas mais das miúdas. Gostava de ver as miúdas crescidas sabes? Sempre me imaginei velha no casamento delas, a ser apresentada aos convidados como a avó fixe, a velha divertida.

- Elas vão recordar-te dessa forma.

- Não vão nada. Vão lembrar-se de mim aqui, encostada a esta janela. Sem estar morta, mas já sem vida. Apagada. É isto que a doença faz, apaga-nos aos poucos, como uma borracha que insiste em fazer desaparecer um desenho a carvão. No fim só ficam as marcas na folha.

Estaquei a meio da cozinha e detestei-me por isso. O sentido prático e mecânico não me deixava, estava tão habituada a andar na roda, como os ratos, que a ficha dos sentimentos só chegava ao anoitecer, de mão dada com as insónias e as angústias que me devoravam o sono. Muitas vezes, quando a minha mãe acordava eu já andava a pé. Quando as miúdas chamavam, não interrompiam nenhum sonho.

Queria agarrar-lhe na mão e ter coisas bonitas para lhe dizer, palavras que lhe minguassem a dor e fizessem passar o que estava errado. Mas não lhe podia prolongar os dias, não lhe podia dizer que ia passar e que tudo ia acabar bem.

Sabíamos que não ia.

Pousei-lhe a mão no ombro e olhei para a rua lá fora, tentei perceber o que lhe entretida a mente nos momentos em que não se digladiava com os seus monstros.

- Só te posso dizer que te amamos muito e que nunca serás esquecida. Acho que sabes isso. A vida pode acabar para qualquer um de nós de forma inesperada. Tu tens a oportunidade de arrumar algumas gavetas. Nem todos têm isso.

- Eu preferia que fosse de repente, sem que eu desse conta. Não sofremos com o que não sabemos.

Eu também preferia. Mas não lho ia dizer.

Detestei-me por me ver resumida a lugares comuns. A frases de autocolante. Por querer pôr um penso naquela dor, porque as premências mais urgentes me chamavam e eu não queria estar ali, com uma mãe moribunda, numa casa pequena, cansada e farta de mim e de todos. Preferia, nestes momentos, que tudo tivesse acabado naquela tarde. Que tivesse entrado num coma irreversível, que se desligassem as máquinas, que sofrêssemos o tempo de dor contado que nos oferecem e que a vida fosse retomando à sua normalidade, sem que a dor e a perda estivessem à minha frente, lembrando-me que devia sofrer, que ainda viria a doer mais.

Quando me preparava para voltar costas e retomar os meus afazeres, segurou-me a      mão com a dela. Continuava a olhar para a janela, como se o seu rosto estivesse dormente ali, numa promessa com aquele vidro manchado.

- Queria mais tempo contigo. Mais tempo com a tua irmã.

- Nós também queríamos, mãe.

- O que quero dizer é que quero passar mais tempo do que me resta convosco, mas vocês passam a vida a trabalhar, vejo-vos ao final do dia, para me ajudar com o que não consigo fazer.

- E o que é que podemos fazer, mãe? Não somos ricas, não temos poupanças avultadas no banco, temos de trabalhar.

- E se tirassem uma licença sem vencimento por seis meses ou um ano? Tu e a tua irmã?

- E vivíamos do quê nesse tempo?

- Se eu arranjasse uma solução, estarias disposta a estar mais tempo com esta velha?

Olhou para mim pela primeira vez durante aquela conversa.

- Sim, penso que sim. Se no trabalho aceitassem…

- Então traz-me o meu telefone.

Fiquei intrigada a olhar para ela. Parecia-me sã, mas aquela conversa estava a ganhar contornos estapafúrdios.

- Não fiques aí especada, anda. Vai lá buscar-me o telefone. Quero falar com o teu pai.

Luísa

Parte 2 - Conto

08.08.21

Quando entrei no quarto parecia-me animada.

- Olha, ali vem a minha Luísa! Olá filha, como estás?

- Eu estou bem, mãe. E tu? Daqui a pouco vou falar com o médico e saber mais alguns detalhes. Sei que estás desejosa por saber quando é que te dão alta.

Tinha falado com o médico havia uma semana. Quando cheguei ao hospital encontrei o meu cunhado a andar de um lado para o outro no corredor, sem novidades. Esperámos mais quase duas horas até que aparecesse o médico para nos dar informações. O dia estava a ser caótico e percebemos que entre urgências que chegavam e problemas que já lá estavam, não conseguia chegar a todo o lado. Esqueci-me da situação em que estava e tive pena do médico.

Sei que disse as palavras alastrou e metástases. Depois enveredou por um jargão médico que me pareceu uma língua estrangeira e concluiu dizendo que a minha mãe teria de ficar internada uma semana no mínimo. Teria de fazer mais exames para perceber o que tinham em mãos.

A princípio não me apercebi do ar embevecido com que a senhora da cama ao lado olhava para mim. Foi a própria que chamou a minha atenção, satisfeita por se dar a conhecer.

- Olá Luísa, é um prazer conhecê-la. Eu e a sua mãe temos falado muito de si e das suas meninas.

Olhei para a minha mãe de sobrancelhas franzidas como quem pergunta de que raio estamos a falar.

- Luísa, esta é a Ester. É a minha companhia desde ontem. Vamos ocupando o tempo a falar dos nossos filhos e dos nossos netos. A Ester tem dois filhos, o Artur e o Manuel, não é assim Ester? – a senhora, mantendo o seu ar de encanto, sorriu para mim e assentiu em confirmação – A Ester tem dois netos, filhos do filho mais velho, já que o mais novo está totalmente focado na carreira e ainda não quer crianças.

Fui acenando com a cabeça, parecia-me uma situação normal, duas mulheres cujo destino era incerto, a falar dos que mais amavam, procurando tudo o que de bom podiam somar sobre cada um. Assim foi até que a Ester acrescentou:

- A sua mãe falou-me também muito das suas meninas, deve ser um grande orgulho. Os meus netos também são meninos muito dedicados, eu às vezes até os acho sobredotados. O meu Artur é que diz que eu exagero, mas é verdade. Agora ler os Maias aos sete e saber três línguas aos quatro. Isso é absolutamente fenomenal.

Fixei a minha mãe e abri muito os olhos. De que raio estava aquela senhora a falar? A minha filha mais velha gostava de histórias de princesas e a mais nova ainda não sabia o abecedário completo e dizia que quando fosse grande queria ser o Cristiano Ronaldo. Maias?

- Bom, eu não sei como é que acontece com as outras pessoas, mas eu estou farta de estar nesta cama. Luísa, ajudas-me a sentar na cadeira de rodas e levas a mãe a dar uma voltinha?

Ajudei-a a sentar-se. Empurrei a cadeira o suficiente para estarmos fora do quarto e dos ouvidos da Ester.

- OK, agora que estamos só as duas vamos lá perceber o que se passa senhora dona Maria de Fátima. Eu sei que o teu cérebro está intacto, pelo que, quero que me expliques que raio de conversa vem a ser esta das miúdas falarem múltiplas línguas e andarem a ler livros de gente crescida?

Riu-se. Depois deu-me uma palmadinha na mão esquerda que segurava um dos lados da cadeira.

- Deixa lá esta velha em reta final divertir-se um bocado. Leva-me à cafetaria para comermos qualquer coisa e eu já te conto tudo. Sabes que há lá um rapazinho novo muito engraçado. Toda a gente fala do Marco, quero saber de que é que vem a ser o sururu.

- Mãe, tu tens de comer as refeições que te servem. Não te posso ir comprar bolos e café.

- Não são para mim. Quero ver-te a ti comer alguma coisa, Luísa. Há quantos dias não almoças?

Rodara a cabeça para encontrar o meu olhar. Conhecia-me bem demais.

Quando chegámos à cafetaria obrigou-me a procurar nas placas da roupa o rapaz que tivesse o nome de Marco. Não foi difícil encontrá-lo. Era evidente pela boa aparência que era o rapaz que estava atrás do balcão.

- Bom, vou então buscar um sumo e uma sandes. De certeza que não te importas de eu estar a comer.

- Com os cocktails que me metem nos tubinhos, só de pensar em comer até fico verde.

Sabia que era verdade e fui buscar a minha sandes.

Quando chegou a minha vez fui atendida pelo agraciado Marco. Tratava-me por menina, o que inicialmente me deixou desconfortável. Que palermice, eu, com quarenta anos, mãe de duas filhas, que vivia como casada há mais de quinze anos. Eu a ser chamada de menina. O que é que vai ser, menina? Quer esta ou esta sandes, menina? O sumo, quer fresco ou natural, menina? Arranjo guardanapos sim, menina? Quantos quer? São seis e noventa e oito, menina?

O caricato passou a divertido e o divertido levou-me a olhar para ele e a pensar como seria ter o tronco dele encostado ao meu, as mãos, que denotavam ser mãos de trabalho, a tocar o fundo das minhas costas.

Fui sorrindo. Peguei no tabuleiro e voltei para a mesa.

Quando pousei a comida a minha mãe sorria.

- Elas têm razão. Aquele Marco é uma coisa. Temos de vir cá mais vezes.

- Mãe, tem juízo.

- Filha, filhota. Isso tive eu toda a vida e agora estou aqui. Tanto juízo para quê?

- Uma coisa não tem que ver com a outra.

- Pois não. Mas podia ter vivido mais. O teu pai arranjou outra pela qual me trocou e antes já tinha tido mais. Eu sei. E nunca fui capaz de lhe fazer isso. Fui fiel, virei muitas vezes a cara a oportunidades porque eu não era uma mulher que fizesse isso e hoje só queria ter tido uns Marcos na minha vida.

Não era sítio para aquela conversa. Sabia onde é que ia levar e não estava disponível para entrar naquele assunto. Por isso voltei à Ester.

- Então e aquilo da Ester. Queres explicar, por favor?

Deu uma gargalhada sonora.

- A Ester é uma metida a esperta que acha que é melhor que as outras – abanei a cabeça, não conseguia fazer este julgamento frio de uma pessoa deitada numa cama de hospital, mas aparentemente havia um pragmatismo claro entre aqueles que estavam na mesma condição que lhes assegurava que não se prendiam com essas atenuantes quando faziam a sua avaliação – passa o dia a falar do filho cientista, do filho que é CEO numa multinacional qualquer e nos netos que andam num colégio rococó e que tocam violino e jogam ténis e vão ao estrangeiro não sei quantas vezes ao ano. Já estava farta de a ouvir tagarelar sobre as boas escolhas e esforços dos filhos e de como os netos evoluíam nos seus colégios caros. Então disse-lhe que as minhas netas estudavam numa escola pública porque a mãe as queria expor ao mundo e que elas eram praticamente sobredotadas. Foi aí que apareceram os Maias.

- Mãe…

- Eu e a Ester sabemos que não nos voltamos a ver, deixa lá. E para além disso, tu não trazes cá as miúdas, por isso….já agora como é que elas estão?

- Bem, como sempre. Tu não sabes se não voltas a encontrar a Ester.

- Sei. Ouvi as enfermeiras a falar dela enquanto faziam um dos meus exames. Tem menos de um mês.

O dinheiro não compra felicidade, dizem.

06.08.21

Mas compra uma casa com jardim e piscina. Paga o ordenado a uma empregada para a manter limpa e a um jardineiro para que o jardim não se transforme num pardieiro. Compra viagens para destinos paradisíacos. Paga a amas para que cuidem das crianças enquanto os pais descansam a cabeça. Compra as roupas que se quiser. Paga despesas médicas, hospitais privados, tratamentos alternativos e complementares. Dá a possibilidade de, em muitas das coisas da vida, dizer “eu não estou para isto”, virar costas e começar de novo.

O dinheiro não compra felicidade, mas alivia o fardo.

O dinheiro compra uma possível solução ao pai que precisa de um medicamento caro para o filho com uma doença rara, dá-lhe esperança e tempo para estar com o filho nem que seja mais um dia. Ameniza a amargura da mãe que hoje tem de pedir a uma associação que lhe deixe um saco de comida para que os filhos não passem fome. Atenua o mal-estar do velhote que com a sua reforma miserável deixa mais uma lista de medicamentos na conta da farmácia, porque se os comprasse todos não tinha que chegasse para a água, luz e gás.

A felicidade não se compra em frascos, nem se escolhe como alguns apregoam. Porque a felicidade não se desembrulha de uma caixa que escolhemos tirar da prateleira em detrimento da caixa acinzentada da tristeza.

O dinheiro não compra felicidade, mas compra opções. Compra tempo. Compra a possibilidade de escolher ficar ou sair de um emprego que transtorna. Solta amarras. Compra tempo e qualidade.

Compra liberdade, de todas as forma e feitios. Basta que olhemos à nossa volta. Paga aos advogados competentes, paga fianças, adia processos.

Compra independência e autonomia.

O dinheiro, se fosse assim tão despiciendo, não andava o mundo atrás dele. Uns a querer comprar mais barato para que lhes sobre no bolso, outros a querer pagar mais caro para ganhar um estatuto social superior. Os empregos de horas infinitas para um cargo cada vez mais alto, de mais poder e de mais dinheiro. Se o dinheiro não comprasse felicidade não se tentava vender a dita a cada esquina. A felicidade da aceitação num livro que está aqui, é só comprar. A felicidade em três, cinco e sete passos, é só comprar e aplicar. A felicidade num retiro, é só pagar. A felicidade e bem-estar depois da terapia, é só ter dinheiro para as sessões. A felicidade e leveza nos sumos milagrosos que desintoxicam, é só comprar um pack de três dias pelo dinheiro das mercearias de uma semana para uma família de quatro. E podia continuar até ao infinito.

O dinheiro não compra felicidade, dizem. Mas compra sonhos. Constrói uma casa sem vizinhos em cima e em baixo, onde os miúdos podem brincar com os amigos no escorrega que está nas traseiras. Compra tranquilidade e abafa as preocupações que amiúdam a vida de moedas contadas no bolso até ao fim do mês. 

O que me vale é que em agosto há melão bom e maduro...

03.08.21

Não gosto particularmente do mês de agosto. Em miúda não tinha primos a vir da aldeia, nem família emigrada de que matar saudades. Não ia de férias para a terra dos avós. Ficava ali perto de casa e quando chegávamos a agosto já estava farta de estar sem ver as minhas amigas, entediada com os dias quentes passados à conversa no jardim para os quais já não havia assunto que chegasse. Havia praia é certo, mas em miúda não havia carro e os pais de todas estavam a trabalhar e, quando não estavam no ganha-pão, lá iam elas para a terra passar uns dias.

Em agosto todos os sítios de lazer se enchem de gente. Do lugar onde ponho a toalha, parece que o mundo tirou férias e quer divertir-se todo ao mesmo tempo. As estadias em qualquer lado custam os olhos da cara, as viagens espremem a carteira e isto, quando ainda se arranja para onde ir.

Não gosto de marcar férias em agosto porque não quero descansar num período em que me parece impossível que uma pessoa descanse, a menos que alugue uma ilha deserta só para si.

Então fico a trabalhar e sonho que vou ter tempo para me organizar como nunca antes, porque tudo vai abrandar e eu vou ter uma agenda com símbolos e cores berrantes e um caderno de apontamentos com uma letra legível e vou arranjar uma organização inovadora para o e-mail e nunca mais vou arrancar cabelos à procura de uma resposta de 2017.

Mas depois o que já era evidente torna-se um facto: as pessoas se estão de férias não estão a trabalhar e então agosto é um mês mais pesado do que os anteriores. Vejo-me como um cartoon em que estou de braços estendidos a receber dossiers enquanto os que vão agora de férias dizem “volto daqui a quinze dias…PRAIAAAAAAAAAAAAA!”. E eu peço que chova para que o clima se ajuste ao meu estado de espírito que, por esta altura, está deprimido e a suar as estopinhas.

O que me vale é que em agosto há melão bom e maduro, há melancia fresca e doce. Os dias duram até perder de vista e eu posso sair do trabalho ir com o miúdo ao jardim, para o ver a brincar antes que ele ache que a mãe perto é uma seca. Aproveitam-se as noites simpáticas para passearmos os cães com calma, como se no dia seguinte não fossemos trabalhar outra vez.

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