Quando cruzei o meu olhar com o da bebé, podia jurar que eram os olhos da minha mãe que me fitavam. Foi uma gravidez calma, sem dores ou idas urgentes ao hospital por pequenos sustos. Não engordei demasiado porque comia em excesso em resultado do stress, como aconteceu na primeira gravidez. Não fiquei um palito com barriga como aconteceu da segunda. Uma mãe demasiado cansada a fazer outro bebé.
Passou um ano desde que a carrinha conduzida pelo senhor Américo parou à porta da casa grande da quinta. Voltei à minha casa meia dúzia de vezes. Para mudar o processo escolar das miúdas para aqui. Para levar a minha mãe a consultas de acompanhamento, ainda que contra a sua vontade. Para tirar todas as minhas coisas daquele que foi o meu lar por mais de dez anos. A casa que as minhas filhas conheceram como sua. Quando tirei o último saco chorei, olhei em volta e chorei pelas saudades que já sentia dos recantos daquele meu espaço. O melhor e o pior da minha vida aconteceram ali.
Não vendemos a casa. Optámos por alugá-la. Assim ficaria como um investimento. A casa pagar-se-ia a si própria. Conseguimos uma inquilina excelente que não nos dá arrelias.
A Carina, menos apegada a tudo, vendeu a casa dela e só manifestou alívio por nunca mais ter de passar aquela porta. Por se ver livre do crédito habitação.
Quando propusemos ao nosso pai transformar o lugar num turismo rural o homem mostrou-se tão radiante que julguei que se ficava ali de excitação. Concordou com tudo o que quiséssemos fazer. Não quis valor de renda. Ofereceu-se para investir em melhorias se fosse necessário. Só pedia que, de vez em quando, uma vez por mês, quem sabe, o aceitássemos como cliente não pago.
Nem a Carina foi difícil de convencer.
As últimas semanas da mãe foram passadas num permanente abraço de família. Estávamos todos, sempre, a minutos dela. Exatamente porque sabíamos que a qualquer momento, podíamos chegar e ela já não estar connosco.
Até o nosso pai quis passar esse período connosco. Mantinha-se afastado. Fazia caminhadas longas para não se notar, mas, de quando em vez, lá dava com ele, encostado à cabeceira da cama dela, a falar-lhe em surdina de qualquer coisa que a fazia sorrir.
Estava um dia bastante agradável para dia de inverno. Ainda faltavam algumas semanas para o natal, mas tínhamos o espaço todo arranjado. Luzes, fitas, vermelho por todo o lado, brilhantes, bolas que imitavam neve. Chamou-me. Apetecia-lhe ir lá para fora. Queria apanhar ar, estava farta do quarto. Estava frio, mas bonito. O Daniel ajudou-me a sentá-la na cadeira de rodas, a aconchegá-la em mantas. Sentámo-nos no alpendre a fazer-lhe companhia.
Chegou-se a Carina, o Eduardo que agora trabalhava por conta própria e geria o seu horário, o meu pai, com a distância necessária. As miúdas brincavam ao longe. Riam na nossa direção, ocupavam-se da pequena que se encantava com tudo o que elas faziam.
- Vou ter saudades das miúdas. Especialmente delas. De vocês também. Pode ser que seja verdade, que as consiga ver lá de cima. Digam-lhes para que, de vez em quanto, acenem para o céu. Só para o caso de eu estar atenta. Assim sei que ainda se lembram de mim.
Pus-lhe a mão no ombro. A Carina, sentada no chão, deitou a cabeça no colo dela, como fazia quando era miúda e as coisas não corriam de feição na escola. E ela, dividindo o que tinha entre as filhas, como sempre fizera, segurava a minha mão por cima do ombro. Afagava o cabelo da Carina, devagar, como quem amansa um bichinho com medo.
Já não me lembro quanto tempo ali ficámos, em silêncio, ao som das gargalhadas das miúdas, até que nos disse que queria voltar para dentro. Ajudámo-la a deitar-se. Demos-lhe um beijo antes de sairmos para outros afazeres na casa. Era assim naqueles dias, despedidas muitas, despedidas que não se diziam por despedidas.
Partiu leve e pacífica. A dormir.
Nas semanas seguintes senti-me mal. Vomitava sistematicamente. Estava fraca. Achei que era tristeza, que era ansiedade, que era dor da perda, que era normal. Passaria quando o corpo e a cabeça se habituassem àquele vazio. Foi a Carina que insistiu que eu fosse ao médico.
Feitas as análises confirmou-se a suspeita do médico. Ri-me quando colocou a hipótese de eu estar grávida. Estava.
As miúdas ficaram radiantes. A minha irmã primeiro torceu o nariz. Depois achou fantástico que a filha tivesse uma prima ou primo de idade mais próxima.
- Vida nova. Pessoas novas. – disse o Daniel, mais eufórico do que eu podia imaginar.
Da minha parte não sabia o que sentir. Passei a gravidez assim, sem saber o que sentir. Tinha uma perda para sarar, uma mudança de vida para me habituar, um ritmo que se entranhava cada vez mais e agora, com esta idade, tudo de novo. Fraldas, choro, chupetas, noites interrompidas, primeiras gracinhas, primeiras palavras. Desta vez não tinha a minha mãe a quem ligar, por isso, na maioria dos dias, quando lavava a loiça e tinha a janela aberta, olhava para cima e pedia-lhe que me desse uma ajuda. Que fosse tomando conta daquilo a que eu não chegava. E a bebé mexia, pontapeava.
Quando chegámos a casa, eu cansada do parto e das primeiras noites. O Daniel fresco e a empurrar o carrinho. As miúdas pediram para mostrar o que era importante à irmã.
Pedimos-lhes cuidado.
Elas guiavam à vez. Num trabalho distribuído. Apresentavam uma casa, outra casa, o avô tardio que se sentava no alpendre da casa grande e era avô e hospede grátis. Um casal que estava a passar uns dias connosco ria com a desenvoltura das miúdas. A casa pequena da tia, a casa pequena onde ela ia viver. A piscina, o espaço para brincar, o escorrega, o caminho para as bicicletas. E o céu, onde morava a outra avó, aquela que só viam brilhar à noite, antes de irem dormir, para que nunca tivessem medo do escuro.