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Exercício de escrita

Às vezes o problema não são os outros, somos nós.

25.10.21

Às vezes o problema não são os outros, somos nós. Somos nós que: não sabemos dizer não vezes que cheguem, que nos multiplicamos para fazer vontades, que ouvimos quem não nos ouve, que damos valor a quem não interessa, que fazemos mais do que temos de fazer para que nos tenham em melhor consideração, que ajustamos a nossa vida em função de terceiros que não valem assim tanto, que procuramos validação sem percebermos que o estamos a fazer, que fazemos dos gostos dos outros os nossos para sentir que fazemos parte, que nos entregamos a amizades tóxicas para não nos acharmos sozinhos e com isso acabamos mais vazios do que se não estivéssemos ao lado de ninguém, que dizemos que sim ao que não nos apetece, que vergamos as nossas perceções, que nos ajustamos à procura de fazer parte de um todo que nos rejeita sempre que não lhe interessa. Somos nós que nem sempre conhecemos os nossos limites para que os possamos desenhar numa cor que só nós conseguimos ver, mas que os outros acabam por entender. Porque somos nós que temos de nos conhecer, somos nós que temos de dizer o que aceitamos, o que não toleramos, o que não admitimos e o que é a gota de água.

É fácil escrever estas frases, porque a teoria, refletida num punhado de palavras que se juntam na sequência certa, faz sempre sentido. É levar a cabo no dia a dia que custa. Mas tem de ser, porque como já dizia o leite Se eu não gostar de mim, quem gostará? E é verdade. Começa no espaço pequenino que os nossos pés ocupam.

Quando o despertador tocou o sol ainda não tinha nascido.

Conto

20.10.21

Uma mulher de cabelo curto e escuro acendeu a luz do candeeiro da mesa de cabeceira, pegou no telemóvel e, com um toque leve do dedo polegar, arrastou uma bola piscante para a direita. O aparelho calou-se. Em cima da mesa de cabeceira estava uma pilha com cinco livros, pela posição dos marcadores estavam a ser lidos a espaços. Todos os livros ofereciam promessas. Atinja os seus objetivos em cinco passos, Como ser mais produtivo, O livro que não vai querer perder para organizar a sua vida, Bons hábitos Pessoas Felizes e A Felicidade está ao seu alcance.

A mulher esfregou a cara com as duas mãos e pegou num dos livros. Passou os dedos pelas folhas, fazendo com que estas soprassem uma brisa na sua direção.

Bom, vamos a isto, disse para consigo e levantou-se da cama.

A sala tinha meia dúzia de móveis, uma televisão, um sofá e um gato deitado lá em cima. O gato semicerrou os olhos, ofendido com a dona que ligou a luz sem qualquer cuidado, encandeando o felino. A mulher pegou no comando e ligou a televisão. Por defeito estava sempre selecionado num canal de notícias, mas naquele momento não lhe apetecia saber como ia o mundo. Queria lixo televisivo.

Ainda de pijama subiu para cima da elíptica, escolheu um programa e começou a pedalar. Olhava para a televisão, mas não via o que estava a passar, a sua cabeça estava noutros sítios, nas suas escolhas, nos seus atos. Naquele momento revivia pela enésima vez a discussão que tivera com uma das pessoas da sua equipa, a frieza com que lhe tinha falado, a inflexibilidade para aceitar uma proposta. Ouvia, como se as palavras estivessem a ser ditas naquele momento, a conversa na sala de café.

Terminado o exercício, foi para a casa de banho. Um duche rápido, os cremes contra o tempo, a roupa escolhida no dia anterior. A imagem de método que tentava impor a si e mostrar aos outros.

Antes de sair passou pela cozinha, ligou a máquina de café, deu de comer ao gato, escreveu um recado que deixou em cima da mesa para que a empregada lesse, tirou um café e bebeu-o encostada à bancada da cozinha. Da janela do décimo andar via Lisboa a acordar, um ou outro carro na estrada, uma ou outra luz acesa nos prédios altos.

No hall de entrada estava uma mesa onde a mulher pousava a mala e as chaves, ao lado uma fotografia onde aparecia com cabelos longos e lisos, muito escuros. Com ela um homem que considerava medianamente bonito e uma criança que ria com vontade de qualquer coisa que o homem lhe dizia ao ouvido. A mulher parou e olhou para a fotografia, passou o dedo indicador pelo rosto da criança, depois limpou a garganta, pegou na mala e nas chaves e saiu.

Quando entrou no escritório ainda não estava ninguém. Era assim que gostava de trabalhar: num escritório fantasma. Sem que entrassem e saíssem do seu gabinete para fazer perguntas, sem que ouvisse os queixumes de quem, na sua opinião, não se esforçava o suficiente.

Em cima da secretária estavam documentos, um computador portátil e um cubo com canetas e lápis. Era a única mesa onde não se encontrava nenhum bem pessoal, que dissesse alguma coisa da pessoa que ocupava aquele espaço. Não havia fotografias de família, nem prémios de lojas baratas dizendo que era a melhor isto ou melhor aquilo, não havia desenhos de crianças, nem o cachecol do seu clube.

As chamadas pessoais eram tidas de porta fechada, sempre com os phones nos ouvidos, sentada na sua cadeira, de cotovelos em cima da mesa, a cabeça baixa e os olhos fechados. Como se quisesse concentrar todos os seus sentidos naquele som.

O telefone tocou e a mulher olhou para o visor. Artur.

Levantou-se calmamente, fechou a porta e atendeu a chamada.

Preciso de saber se vens à festa do Jaime ou não, disse de imediato o homem do outro lado da linha.

Olá, respondeu a mulher.

Letícia, o miúdo faz dez anos e quer a mãe na festa dele, disse Artur num tom impaciente. Caramba, será que não percebes o quanto o magoas quando fazes isto.

A mulher tinha os antebraços pousados na mesa e os punhos, cerrados com força, faziam com que o interior da pele estivesse branca.

É assim tão difícil que consigas mostrar algum amor pelo teu filho, continuou Artur.

Eu amo o meu filho, isso nunca foi uma questão, é ele que não me quer perto e sou eu que não sei ser o que ele quer de mim, respondeu Letícia     numa voz que forçava para ser calma. Apetecia-lhe gritar, varrer com os braços todas as folhas que estavam na secretária, atirar com a cadeira contra as paredes de vidro do escritório, arrancar os próprios cabelos.

O facto de o nosso filho ter preferido viver comigo não faz de ti má mãe. São estes atos que fazem de ti má pessoa, acrescentou Artur. Devias procurar ajuda, falar com alguém, mas tu não aceitas, achas que resolves tudo.

Numa voz quase sumida Letícia disse: os filhos ficam com as mães e visitam os pais um dia por semana e fim de semana sim, fim de semana não.

Essa conversa outra vez, disse Artur numa voz mais baixa, cansada. Os filhos ficam com quem tem mais tempo e disponibilidade, Letícia. Está na altura de aceitares isso. O miúdo precisa de alguém que tenha tempo para ele, de não ser sempre o último a sair da escola porque a mãe ainda acabou mais uma coisinha no trabalho, sabes bem que eu sempre quis mais isto do que tu. Tu sempre foste distante e ele sente isso.

Já sabia que ias começar com essa conversa, disse Letícia suspirando e levantando a cabeça para ver que nas secretárias lá fora estavam a olhar para si e fingiram não estar atentos quando cruzaram o olhar com o seu. Eu queria…, começou por dizer e não conseguiu terminar.

Tu querias sentir-te como as outras mães, ter o instinto maternal que vem nos livros, mas não tens e é importante que aceites isso para teu bem e para bem do Jaime. O miúdo está a contar contigo, faz isto por ele. Já chega que arranjes desculpas para não o ires buscar durante a semana.

Ele não gosta do Jonas, respondeu Letícia justificando a sua escolha.

Ele não gosta do gato, então tu não vais buscar o teu filho. Lindo. E aos fins de semana – poucos - em que ele fica em tua casa e mal lhe dás atenção?

Eu às vezes convido-o para ir a sítios, ele não quer. Comprei-lhe uma Nintendo, achei que ele gostava.

E gosta, Letícia, claro que gosta, disse Artur regressando ao seu estado exasperado, mas ele vai passar os dias contigo e não com o aparelho de jogos. És tu que tens de te chegar a ele. É um miúdo, caramba. É teu filho.

Silêncio.

OK, disse finalmente Letícia.

OK, o quê?

Eu vou.

Do outro lado da linha apenas se ouviu um suspiro e, depois de alguns segundos de vazio, Artur acrescentou: ele vai ficar contente por te ver. E desligou.

A vida dos outros é sempre fácil de resolver.

14.10.21

Basta abrir a boca, verbalizar meia dúzia de soluções sem consideração pelo contexto e puf, já está, verdadeira magia. Tudo tratado.

Está cansada? É porque tem de se deitar mais cedo e respeitar as horas de sono, porque dormir é essencial para a pele e – em bom rigor - para a saúde no geral.

Tem filhos que não dormem à noite? É porque não os habituou desde cedo a dormir na cama deles. É porque as histórias não são as adequadas, porque o marido é calão e devia lá ir mais vezes. Tem de falar com a criança e encontrar estratégias para uma boa noite de sono. Há montes de livros sobre isso. Não se sabe bem quais, mas há montes de livros sobre tudo.

O filho fez uma birra? É porque há alguma coisa a falhar, salta a velha frase do “se fosse comigo não fazia que eu…(preencher com frases comuns)”. Se tivesse limites não era assim. Na velha guarda não havia cá disso, duas estaladas e andava tudo a direito.

Anda de cabeça perdida porque tem demasiadas coisas para tratar e não consegue? É uma questão de se organizar. Uma boa organização faz milagres. Há livros e soluções. É seguir esta página e aquela e tudo melhora. Basta força de vontade e perseverança.

O carro avariou? Também o carro já era velho. Já se sabia que mais cedo ou mais tarde ia acontecer. Isto carros é trocar a cada cinco anos antes que deem problemas.

Não consegue mudar de casa? Que disparate! É só procurar o agente imobiliário certo que lhe encontre o cliente certo, que lhe pague o valor necessário, que lhe permitirá dar entrada na casa nova. Depois é falar com o banco. Está tudo no poder de negociação.

Sobrecarregada de trabalho? É porque a pessoa permite. Tem de impor limites e deixar claro que não está para mais. Se não gostam ponham a beira do prato.

Detesta o emprego? Então muda, procura. Tem de ter LinkedIn, porque nos dias de hoje já se sabe que sem isso não se chega a lado nenhum a menos que queira montar negócio próprio. Olha isso também é uma opção, um negócio próprio, hoje também se abrem empresas com meia dúzia de tostões.

O dinheiro não chega para tudo? Também gasta no que não deve, não faz contas à vida. Almoça não sei quantas vezes fora.

Numa viagem de comboio de meia hora resolvem-se os problemas de, pelo menos, vinte almas. Estilo Lucky Luke do aconselhamento bacoco. Pfiu-Pfiu, venha o próximo. Mas depois alguém liga a perguntar o que é que se vai fazer para o jantar e é um drama porque tem de se passar no supermercado para comprar dois ingredientes, e isso sim, é de fazer a pessoa ficar com os cabelos em pé.

Livro "Filho da mãe", de Hugo Gonçalves

06.10.21

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Quando tinha 8 anos o autor soube que a mãe tinha morrido. Disseram-lhe: Sabes que a tua mãe estava a sofrer, não sabes? Ela agora já não está a sofrer mais. E ele soube que a voz mais doce de sempre não voltaria a ser ouvida.

Quando eu tinha 8 anos a minha mãe recebeu um envelope fechado. Não abra, é só para o médico ver, disseram-lhe. No dia em que o médico lhe explicou o que lá estava, caminhou a rua que liga Almada ao Pragal de mão dada comigo. Quatro filhos. Uma tão pequena, ainda por criar. A única miúda no meio dos rapazes.
Tenho consciência de que não me lembro deste episódio como se ele fizesse parte de uma memória nítida da minha cabeça, é mais uma recordação construída à força das palavras contadas pela minha mãe que, sempre que a coisa má voltava em força, relatava a uma amiga o dia em que caminhara aquela rua com a filha pequena pela mão. A filha pequena que estava na mesma sala, a ouvir a conversa, a engolir o mesmo medo. O medo de se tornar uma filha sem mãe.

Quatro anos depois de operações, quimioterapias e radioterapias. Depois de salas de espera onde crianças mais pequenas que eu passavam por mim com um veredito implacável. Depois da esperança e das pequenas derrotas que se superavam a custo, a notícia final. O telegrama do hospital. As palavras que o meu pai não disse, caminhando de um lado para o outro, perdido no corredor de casa, com um pedaço de papel na mão. Lamentamos informar que Sra. Maria José faleceu durante a noite.

Quando se perde uma mãe e se precisa ainda tanto dela há um vazio que nos acompanha. Um eco que não sabemos explicar. Uma falta que não se colmada, que se evita, para a qual não olhamos com medo de ver o que está lá dentro. O nada.

Ao ler este livro revisitei muitos momentos do meu passado. Voltei a pedaços escondidos da minha infância. Pedaços de que falo pouco, porque não é fácil encontrar quem compreenda. É preciso ter estado numa guerra igual.

Li palavras como aquelas que me foram ditas, porque dizer cancro parecia proíbido.

Obrigada Hugo Gonçalves por este livro maravilhoso. Por colocar em palavras coisas que trago comigo.

Uma mãe puxava uma criança birrenta pelo braço.

03.10.21

O menino queria fugir-lhe, voltar na direção do escorrega. A mãe dizia-lhe: temos de ir, tenho coisas para tratar em casa. Já tinha negociado, já tinha ralhado, agora levava-o quase de arrasto.

Outra mãe andava freneticamente atrás do filho que não teria mais de quatro anos. Seguia-o com o olhar de uma águia, acompanhava-o de uma ponta à outra, os pés enterrados na areia fofa do chão. Elogiava a mais pequena das conquistas e desconfiava de todas as outras crianças, como quem vê a sua cria rodeada de lobos.

Sentada num banco estava uma mulher de cabelo louro escuro, aparentemente natural, com os olhos cobertos por óculos escuros com lentes quadradas que lhe ocupavam boa parte do rosto, pensava que se os filhos fossem seus teria tempo, porque tudo o resto seria secundário, que lhes daria liberdade e falaria de forma meiga para as outras crianças, para que gostassem dos seus filhos e fossem todos amigos.

Bem fazes tu que não tens nenhum, disse uma mulher de cabelo castanho escuro atado num rabo de cavalo mal amanhado. A roupa era simples e provavelmente comprada em packs de duas e três camisolas iguais. Trazia ao ombro uma mochila de criança meio aberta, lá dentro, numa salganhada de objetos, poderíamos encontrar toalhitas, embalagens de fruta batida, pás de praia, carrinhos e no fundo de tudo um pacote de bolachas partidas que por ali estavam esquecidas há mais de seis meses. Tinha estado a dar um sermão aos filhos que, não satisfeitos com qualquer coisa sem importância, se haviam pegado um com o outro no meio do parque. A mulher de cabelo mal amanhado falava para a mulher dos óculos grandes, deixando o corpo cair sobre o banco de jardim, soltando um suspiro que era um misto de alívio e cansaço, lançando aquele desabafo pouco verdadeiro, daquelas coisas que as mães dizem quando os filhos lhes dão água pela barba e elas já não sabem o que fazer. Daquelas coisas que se dizem quando se tem vergonha dos comportamentos dos petizes que se trouxe ao mundo e se tenta pedir desculpa de um mal que não se fez. Mas já se sabe que o mal que os filhos fazem se propaga sempre para as mães. Porque elas o absorvem como seu. Porque os outros lhe conferem tal responsabilidade, já que se a criança fez pior, foi porque a mãe não ensinou melhor.

O que a mulher de cabelo mal amanhado não sabia era que a mulher de óculos grandes, a sua grande amiga, tentava engravidar há mais de três anos. Não sabia que aquele sorriso que lhe foi devolvido, num gesto de carinho e compreensão, num deixa lá que os miúdos são mesmo assim, camuflava a dor de mais um aborto espontâneo. Recente. Não sabia que os abraços e as palavras já não a consolavam. Não sabia que chorava à noite e sentia raiva de um corpo que para os outros era tão bonito e para si tão incapaz.

O período tinha falhado como falhara tantas vezes. Esperou. Esperou que não fosse falso alarme até comprar o teste. Esperou porque o coração já não aguenta tantas falsas partidas. Porque a cabeça se vai convencendo de que a vida pode ter outros sonhos e porque ser mãe não é parir. Andavam a falar na hipótese de adotar. As pazes iam sendo feitas com a vida devagar, era preciso avançar, duas pessoas que se amavam tanto, que tinham uma vida boa para dar. As reportagens na televisão, crianças perdidas, maltratadas, violentadas, deixadas ao acaso e ela ali, com tudo para dar e um ventre que não carregava o que ela mais queria. Foi então que chegou o resultado positivo. Mais uma hipótese. A alegria contida de quem tem medo do que pode acontecer a seguir. Do que já tinha acontecido seis vezes antes. A primeira consulta, o primeiro bater de coração. As lágrimas a correr pelo rosto. A esperança, os sonhos, o quarto, a mãe que ia ser. Mas a segunda consulta chegou e com ela a ecografia de rotina. Sem som. O barulho do vazio que ecoou mais alto que qualquer tambor.

Lamento, disse a médica.

Não lhe saíram palavras da boca.

Foram feitos os procedimentos necessários.

Não verteu uma lágrima.

Queres que te traga um chá, disse-lhe o marido ao início da noite quando se sentou na beira da cama e lhe acariciou a perna.

Não.

Ele saiu. Ele sabia que só o tempo a faria voltar a si.

Soube ele. Soube ela. Soube a médica.

Para os outros seria apenas falatório. Olhares de lamento. Frases forçadas porque as pessoas não sabem que o silêncio por vezes dá mais apoio que as palavras de quem não conhece a dor, de quem, por dentro pensa: ainda bem que não foi comigo.

A mulher dos óculos grandes também queria pensar isso: ainda bem que não foi comigo. Que o mal de ventre fosse de outra e não seu.

Aquilo a semana passada é que foi, disse a mulher de cabelo mal amanhado, a Júlia esticou-se um bocado, não achaste?, continuou.

Pois, não devíamos falar do que não sabemos, respondeu a mulher de óculos grandes, mostrando falta de interesse no assunto da vida alheia.

É tu, Verónica?, perguntou a mulher de cabelo mal amanhado.

Verónica olhou para a amiga e perguntou: eu o quê?

Andas cabisbaixa, a semana passada mal falaste. Limitaste-te a ouvir o que dizíamos e sorrias aqui e ali. Tá tudo bem contigo e com o Zé?, perguntou.

Está tudo bem connosco. Não falei muito porque ando um bocado cansada daqueles jantares, respondeu. Cansada dos jantares e dos e-mails nas costas umas das outras, sempre a fazer julgamentos sobre as escolhas desta e as escolhas daquela. Sabes que também se trocaram e-mails sobre ti. Quando ficaste grávida do Martim, a louca que foi ao terceiro como se já não estivesse assoberbada com dois.

Eu sei, respondeu a mulher de cabelo mal amanhado, enquanto levava a mão ao carrinho e acariciava um bebé que dormia tão serenamente que, não fosse o espaço ocupado do carrinho, mal se dava conta que estava ali.

Eu sei que tudo é tema. A Marta acha que também é muito esperta, mas também falamos dela.

Claro que falamos. Falamos de todas nas costas umas das outras e depois como sabemos o que fazemos, todas nos vamos escondendo. No fim, nenhuma de nós conhece a pessoa com quem diz ser amiga, confessou Verónica.

Tens razão. É por isso que tu estás sempre bem mesmo quando é notório que não estás, disse a mulher de cabelo mal amanhado, perscrutando o parque para garantir que os filhos mais velhos estavam no seu ângulo de visão.

E é por isso que continuarei a estar bem. E é também por isso que tu, apesar de desgastada, de notoriamente capaz de quebrar num pranto por não saberes para onde te virares, vais sempre dizer que a tua vida está excelente e os miúdos são o melhor da vida.

O bebé acordou.

A mulher de cabelo mal amanhado pegou-lhe ao colo e ajeitou a roupa para lhe dar de mamar. Verónica assistiu, num misto de encanto e inveja. Reprimindo a pergunta: porque é que ela tem três e eu não consigo ter nenhum?

O filho mais velho empurrou o irmão e este desatou a chorar.

Deixa que eu vou lá, disse Verónica, sempre solícita.

Agachou-se para ficar ao nível dos miúdos. Tirou os óculos grandes para os poder olhar nos olhos. Disse-lhes coisas que a mãe deles não ouviu.

Os miúdos voltaram a brincar sem reclamar.

Enquanto Verónica caminhava de regresso ao banco de jardim, a mulher de cabelo mal amanhado pensava: tem tanto jeito com crianças, é uma pena que não queira ser mãe.

Livros de Setembro 2021

02.10.21

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Você nunca mais vai ficar sozinha

Tati bernardi

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A escrita da Tati Bernardi arrebata-me sempre. A sanidade na loucura, a loucura na sanidade e a gargalhada inesperada. Neste livro são tantos os pontos de verdade que se os fosse sublinhar riscaria todas as folhas. Não tive mãe a vida toda, mas sempre senti (e sinto até neste momento em que escrevo) que sou a eterna filha da minha mãe. O reflexo do que ela criou. Que me condeno por aquilo que ela acharia de errado. Que me engrandeço quando sei que abanaria a cabeça em satisfação. Sou mãe e filha ao mesmo tempo e dou comigo a pensar, tantas e tantas vezes, que, pense o que o meu filho acabe por achar se mim, eu estarei lá sempre, mesmo quando ele não precisar.

 

Um fogo lento

Paula Hawkins

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A vida não são só clássicos e obras que nos questionam o pensamento. São precisas histórias bem contadas com linguagem escorreita e clara. Daqueles que a pessoa consegue ler enquanto toma conta do filho a fazer patifarias sem ter de voltar atrás vinte vezes.

Um livro que se lê num ápice. Bem escrito, bem contado, com as reviravoltas necessárias.

Dos três livros da autora este pareceu-me o mais previsível. No entanto foi uma excelente escolha para leitura à beira da piscina.

 

A biblioteca da meia noite

Matt Haig

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A escrita é clara e agradável, sem malabarismos linguísticos. O autor tem uma mensagem para passar e penso que o consegue.

O conceito essencial da história está na valorização das pequenas coisas e na aprendizagem de que não existe uma vida perfeita.

Gostei da originalidade da biblioteca que permite viver outras vidas.

É um livro que se lê bem. Um bom livro para repensar as pequenas coisas esquecidas. Um bom livro para quando nos debatemos com momentos menos bons e nos deixamos emaranhar pela culpa e por arrependimentos.

 

Beautifull World. Where are you

Sally Rooney

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Há para mim um certo encanto na escrita da sally rooney que me prende completamente. É como se estivesse sentada com uma amiga no café a ouvi-la contar-me o que sabe. E eu ali fico, embevecida, a virar páginas.

A versão em português sairá até ao final do ano, mas ao passar pelo livro não resisti e trouxe em inglês.

Quatro personagens. O que pensam, como agem, os seus sentimentos em relação a si mesmos e aos que mais gostam, as dúvidas, os medos, as incertezas, o receio de falhar com o que são e com o que os outros esperam, os seus pensamentos sobre o mundo que os rodeia, o dissecar da forma perversa como o mundo valoriza o que menos importa.

 

Vista Chinesa

Tatiana Salem Levy

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Tão, mas tão bem escrito que as imagens do que aconteceu estão claras e desagradavelmente vívidas na minha mente.

Um livro que merece ser lido por múltiplas razões: porque a vítima tem o seu tempo, porque o trauma é ultrapassado de forma diferente por cada um, porque a dor não é o que vemos, é o que o outro sente, porque a nossa dor causa aos outros dor, porque não chega encontrar um culpado, é preciso encontrar “o” culpado, porque o que acontece passa a fazer parte da pessoa, acaba inserido no seu quotidiano e nas decisões mais pequenas, mas mais do que tudo porque a culpa nunca é da vitima, já chegam os porquês que carregará para sempre pela certeza de que não é possível reescrever o passado.