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Exercício de escrita

Venha 2022

Votos de bom ano novo

30.12.21

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Achei sempre que cabia mais qualquer coisa. Que se calhar, com tudo o que tinha, ainda podia acrescentar ao malabarismo. Se ao menos a agenda permitisse. E eu, por hábito ou casmurrice, ia tentando fazer o tempo elástico. Se me levantasse mais cedo ou deitasse mais tarde. Se desse um jeito aqui ou ali. Como se o que conseguia fazer ficasse sempre aquém de uma expectativa inalcançável que só eu definira, nem sei bem quando nem como.

Este ano pensei muito nisto. Nesta minha insatisfação, no porquê de ela existir, na falta de sentido em mais uma ideia e outra e outra que invariavelmente levavam a cansaço e frustração por nunca me parecer chegar onde quero estar. Foi por isso que a determinada altura parei e desliguei tudo o que me entrava olhos adentro. Era preciso sossegar a cabeça e pensar no que quero e no que vale a pena.

Ganhei tempo e qualidade. Escolhi melhor aquilo a que dou atenção. Deixei de me exigir uma pilha cada vez maior. Passei a concentrar-me num montinho pequeno para que o completasse com dedicação e atenção.

Mais devagar vejo melhor à minha volta.

Planeei um 2022 com poucas linhas para ver se chego ao fim de pelo menos uma. Quero ir fechando janelas em vez de bater a todas as portas. Aprender a contentar-me com o que consigo, ainda que trabalhe para mais.

Por isso para 2022 não tenho resoluções. Tenho os desejos costumeiros: saúde para mim e para os meus, sorte que sem ela nada se faz, dinheiro que não compra felicidade mas encomenda muita alegria.

O resto vai-se fazendo. Sem pressão. Já dizia a Doris Day: Que sera, sera, whatever will be, will be.

Tenho um projeto que quero concluir, palavras para escrever quando puder e conseguir, bocadinhos de tempo que quero para descansar e ver o miúdo crescer.

 

Venha 2022 com capacidade de aproveitar o que de bom a vida ainda vai tendo para dar.

 

Um bom ano para todos, que o vivam com saúde, tranquilidade e meia dúzia de tostões que cheguem para mais do que remediar. Que parem para olhar para as pequenas coisas, porque essas – lamento o cliché – são mesmo aquilo que faz isto tudo valer a pena.

 

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A vida e os apontamentos sobre ela

#3

29.12.21

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Gosto de agendas.

Gosto de agendas porque me deixa alegre a ideia de que vou poder organizar a minha vida com cores garridas, como se pudesse arrumar tudo no sítio certo sem o frequente olvidar de aniversários, consultas ou a lista de três itens que saí para comprar mas só trouxe um porque entretanto me distraí no corredor das bolachas e dos chocolates.

Gosto de agendas porque gosto de papéis e cadernos e blocos de notas e canetas e agrafos e clips. Gosto de economato.

Gosto de terminar o ano com a agenda nova pronta, com as primeiras anotações e aquilo que tenho de fazer em janeiro, só que depois há dias que ficam em branco e isso aflige-me. Sinto que devia estar toda escrita, mas preencher o comum, o corriqueiro, as tarefas costumeiras do dia a dia parece-me uma coisa sem jeito nenhum. Não vou apontar que tenho de fazer o jantar ou de lavar a loiça ou de passar a roupa. Isso trata-se não em dias específicos, mas quando faz falta. Não tenho consultas ou reuniões na escola todas as semanas (graças aos santos, todos que eu não faço diferenças). Não tenho compromissos pessoais que mereçam registo todos os dias. E as obrigações profissionais ficam no Outlook do trabalho, para me entrarem olhos adentro com pop-ups. Então ponho-me a olhar para a agenda e impaciento-me com aquelas linhas todas por preencher, como se naquele dia a vida fosse vazia. A única coisa a registar é: mais-do-mesmo. Uma pessoa nunca sabe quando é que dá a bufa mestre e depois gasta assim dias, como se não servissem para nada, é mal empregue.

Então decidi começar a fazer um apontamento diário. A agenda vai com o livro para a mesa de cabeceira ao deitar. Uma caneta e anoto ali mais dúzia de palavras. Podem ser só adjetivos ou palavras soltas. Frases curtas. Tiradas e gracinhas do pequeno. Um retrato conciso do que me ficou cá na cabeça.

Assim a agenda fica a valer mais a pena, ajuda-me com as responsabilidades do futuro e ainda me guarda as notas do passado, para eu consultar no final do ano e relembrar o que raio fiz àqueles trezentos e tal dias.

 

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A vida e os apontamentos sobre ela

#2

27.12.21

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A minha tia vivia no andar imediatamente por cima do nosso. Nós no segundo, ela no terceiro. Onde era a nossa sala era o quarto da minha tia. Onde era o quarto dos meus irmãos era a sala da minha tia. Um dia, não me recordo a que propósito, fui lá a casa. A minha prima andava às voltas com uma máquina de escrever que tinham dado à minha tia. Eu sentei-me a olhar para ela a fazer de empregada de escritório. Tac-tac-tac-tac-rrrrac, muda de linha. Há qualquer coisa de especial no bater das teclas de uma máquina de escrever, no empurrar da folha para começar uma nova linha.

A minha prima cansou-se e foi fazer outra coisa qualquer. Se quiseres podes experimentar, disse-me. E eu ocupei-lhe o lugar, de joelhos no chão ao lado da portada que dava para a varanda. Estava um dia soalheiro e tudo aquilo me pareceu perfeito. O calor mesmo na medida certa, a iluminação que passava pelos cortinados rendados e chegava à folha. Tive medo de carregar nas teclas, de estragar a folha, de escrever alguma coisa que alguém, depois de ler, achasse ridículo e se risse de mim. Guardei na minha cabeça as palavras que gostava de escrever e fiquei ali, a fazer festas à máquina, pensando que um dia talvez viesse a ter uma minha, onde iria escrever as histórias que quisesse, porque depois guardaria as folhas bem escondidas e estaria a salvo da humilhação causada pela opinião dos outros.

Este dia foi há qualquer coisa como trinta anos. Se fechar os olhos ainda me lembro perfeitamente de como me senti ali. Em paz como em poucos sítios.

Hoje o ridículo não me assusta. Não me apoquenta o que pensam de mim. Talvez tenha sido por isso que fui perdendo o medo de partilhar o que escrevo.

Só ainda não tenho uma máquina de escrever, mas um dia destes ainda compro uma, nem que seja para me sentar em frente a ela nos dias em que a vontade me foge ou que as palavras parecem não se conjugar da forma que as gosto de ver.

 

 

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Apontamentos natalícios

21.12.21

O Natal está à porta e eu não tenho vontade para comemorações.

Não apetece acender as luzes da árvore e só o faço porque sinto que devo essa magia ao meu filho.

Cansa-me pensar em prendas. Já nunca penso muito. Quando calha, vinho e chocolates para os adultos. Para as crianças brinquedos. Para aqueles que ainda não têm filhos, mas já mandam no nariz que chegue para que não me arme aos cágados a comprar o que não sei se gostam, são corridos a envelopes com dinheiro.

Detesto prendas por obrigação e as do natal sabem-me sempre a isso. Menos as das crianças, essas são um regalo todo o ano.

Não tenho fome de bacalhau, nem de couves, nem de bolo rei, rainha, príncipe, visconde ou outro qualquer título dessa estirpe.

Sinto-me murcha e o que me rodeia como que numa onda de letargia com cobertura de alegria forçada, porque o natal é amor e harmonia e eu-meto-esta-felicidade-goela-abaixo-nem-que-seja-a-última-coisa-que-eu-faço.

A chuva só piora as coisas, deixa tudo mais cinzento. Os gritos no trânsito. Um quase desespero por chegar primeiro que os outros como se os compromissos de uns valessem mais que os dos restantes. As filas intermináveis. O centro comercial atestado de gente onde quase se podem ler os balõezinhos em cima da cabeças: vou comprar para me sentir feliz.

Porque o dinheiro não traz felicidade, mas embrulha e deixa levar num saco bonito de marca cara. E a pessoa sente-se melhor por momentos, eu sei disso, também já trouxe uns e enquanto estavam na mão parecia que trazia ali alegria pendurada.

E nem vamos falar das mensagens para impingir perfumes em promoção.

 

O Natal está à porta, sinto que estou em câmera lenta quando tudo circula a mil à minha volta e eu não consigo acompanhar. Não consigo agarrar o espírito espevitado de natal. Nem aquelas cantilenas de cassete gasta me deixam mais nostálgica. Soa-me a barulho de fundo.

São muitas coisas que não se alinham. Os natais encantados de um lado. Os solitários do outro, com quem não tem ninguém e os que até têm, mas ganharam senha para ficar em casa. Cumprimentos do bicho.

Se calhar sou eu que penso demais nas coisas. Devia sair da minha cabeça e entrar no shopping, é capaz de se estar lá melhor.

#3

Três dias, três pequenos contos

16.12.21

Sabia das crianças de lá de onde a mãe trabalhava. Um lugar que lhe parecia encantado onde se tomava conta de quem não tinha ninguém. Sabia que o natal não se passava entre os desaguisados dos tios, as travessas de bacalhau, os sonhos e as fatias douradas. O natal, nesse sítio onde se distribuía amor em porções iguais nas horas ditadas pelo ponto, era passado no amparo dos desamparados. Ouviu a mãe falar da festa singela que iam fazer com a simpatia de quem ajudava. Entrou no quatro e fechou as portas. Remexeu caixas e armários. A mãe de mãos à cabeça. Em poucas horas uma dúzia de embrulhos regados a fita cola. Levas amanhã, mãe. Dizes que foi um pai natal pequenino, sem barbas e sem trenó.

#2

Três dias, três pequenos contos

14.12.21

És um nojo. És uma merda. Peneirenta. Arrogante. As manhãs começavam assim desde que o programa foi para o ar. O azedume de rostos que não conhecia. As palavras amáveis e de força não pesavam da mesma forma, pareciam simpatia, uma espécie de caridade. Ligou para a mãe à procura daquele amor que se diz incondicional. De que é que estavas à espera, tu é que te meteste a jeito com essa mania de aparecer. A voz da mãe a desvanecer. Tens razão, disse. Um beijo. Outro para ti. O corpo dormente, a cabeça baixa. Parecia verdade, era ela a culpada. A mania das grandezas, a incapacidade de viver feliz nas sombras. Fechou os estores e voltou para a cama a rezar baixinho, pedindo para acordar outra pessoa.

#1

Três dias, três pequenos contos

13.12.21

Sentei-me para escrever, mas a inspiração programada na hora agendada no calendário era muito maior quando a pensei do que agora que o cursor pisca para mim e as minhas pestanas piscam para ele. Um encontro que está a correr mal. Nada temos a dizer um ao outro.

Há desconforto entre nós.

A campainha toca, um salvador dos CTT que me vem resgatar deste impasse dando-me a desculpa que precisava. Obrigada e resto de bom dia. A embalagem a rodar nas mãos. Uma curiosidade excessiva. Um café tirado com calma e a descoberta da encomenda feita há quinze dias. Leggings para outra resolução da agenda. Acabo o café e olho para o relógio. Entretanto acabou o tempo de escrita.

A vida e os apontamentos sobre ela

09.12.21

Estamos cada vez menos sensíveis às dificuldades dos outros. Mais metidos connosco próprios. Preocupados com o nosso nariz. Tenho medo disso. De viver numa sociedade avessa ao sentido de comunidade. Eu, que cresci numa rua em que a minha mãe conhecia a maior parte das pessoas pelo primeiro nome, em que as vizinhas traziam sopa quando alguém ficava doente.

Hoje, no centro comercial, à porta da farmácia, apareceu-me uma velhota de carteira em frente à cara. Esqueci-me da máscara, pode entrar e comprar-me uma. Estendia-me uma moeda de 2 euros. Dei um passo atrás, o afastamento social que se transformou num hábito. Tenho umas 15 pessoas à frente, não quer experimentar ver no hipermercado, talvez seja mais rápido, disse-lhe eu enquanto me ocorria que com cerca de 20 pessoas à espera da sua vez me havia de calhar logo a mim a batata quente.

A senhora lá foi, com um lenço em frente à cara. Eu fiquei a remoer a minha atitude obtusa. Podia ter entrado na farmácia borrifando-me para a senha, podia ter feito mais do que um vá desenvencilhar-se para outro lado. À minha volta mais de dez almas que agiram como eu, suspirando de alívio porque não lhes calhou a rifa. Ufa. Limpa a testa. Segue em frente.

O marcador das senhas ia apitando e eu culpada por não ter feito o que devia. Olhava à volta. Dizia para mim: tragam-me a velha outra vez para que me redima da minha estupidez. E lá apareceu ela novamente, como que a pedido. Abanava a cabeça, que não, não a deixavam entrar no hipermercado. Andava de um lado para o outro e nem funcionários nem clientes, ninguém a ajudava. Chamei-a, venha cá que a gente resolve isso. Entrei na farmácia despreocupada com a minha vez. Não quero ser atendida antes, quero só que me arranje uma máscara para uma pessoa que anda ali aflita porque se esqueceu da dela em casa. A farmacêutica não disse palavra, foi à catacumba dos comprimidos, trouxe um pacote e disse: sessenta e sete cêntimos. Eu voltei com a moeda que me tinha sido estendida, paguei e levei o troco. A velhota, mais descansada, dizia: muito obrigada, a senhora é uma querida. E eu pensava: não, não sou, sou uma merdosa que precisou um duas voltas para perceber o que estava certo.

Dezembro

Conto

01.12.21

O Bublé, com a sua voz doce e encantadora, cantava I’m dreaming of a white Christmas, as prateleiras do supermercado estavam carregadas de chocolates caros com caixas vermelhas enfeitadas com pintas brancas para imitar a neve e eu estava ali, na fila para as caixas rápidas, que já foram rápidas e agora parecem mais lentas que as outras. No tempo em que as pessoas ainda se preocupavam em roubar o trabalho à senhora da caixa, no tempo em que tinham medo de passar pip-pip a sua própria salada pelo scan, no tempo em que tinham medo de se enganar nas contas ou pena de não ter alguém com quem reclamar o aumento dos preços, nesse tempo as caixas rápidas eram uma brisa. Meia dúzia de corajosos. Agora toda a gente sabe mexer com aquilo. Impacientam-se é certo, mas não mais do que já bufam quando esperam cinco minutos na fila para passar com o carrinho atestado.

Pensei ter visto uma caixa vaga e aproximei-me para confirmar que tinha um papel à frente, Temporariamente indisponível. Porra. Volta aos calcanhares. Espera.

De regresso ao início da fila dei com dois amigos/amantes/colegas/namorados/ou qualquer coisa que não me interessava. Estavam cheios de pressa, tanta que viam o mundo por cima dos meus ombros, como se eu não estivesse ali. Miragem de salada em mãos. Moviam-se de um lado para o outro, numa agitação entre os pagamentos em cartões e os pagamentos em numerário. Ponderei, engalfinho-me com os petulantes que se fazem de míopes, ou encolho os ombros e deixo passar porque o pior que se pode arranjar é uma discussão com um estúpido que tem a mania que é esperto. Espera, não tinham aberto umas caixas novas, ocorreu-me de repente. Espreitei, duas livres. Arranquei com a velocidade de uma chita. Quando pousei as compras e cliquei em iniciar olhei vitoriosa por cima da máquina, procurei os amigos/amantes/colegas/namorados ou qualquer coisa que não me interessava para lhes mostrar que era mais esperta e ia ganhar aquela corrida. Para meu lamento, assim que virei costas uma lesma acabou de pagar e abrira uma vaga. Pus-me atenta, ia ganhar aquela competição. Pip-pip, não encalhes, não digas para aguardar pelo assistente que te arreio uma mocada, vá lê o cartão depressa. Já está. Obrigada e volte sempre. Pego no saco e confirmo. Acabei primeiro.

Passei pelos dois de peito feito, vencedora, medalha de ouro dos jogos olímpicos das caixas de supermercado.

O Bublé já se calara e agora Chris Rea preenchia as ondas sonoras com o seu Driving home for Christmas.

Faço isto. Às vezes. Pequenas conquistas de merda que ninguém dá conta. Campeonatos organizados, geridos, jurados, alimentados pela minha cabeça na pequenez desta imbecil existência.

Na última caixa uma velha gritava com a rapariga que lhe tinha feito a conta, Ladra, gritava-lhe, Queres ficar-me com o dinheiro. Aparentemente a moça passou um brinquedo do neto duas vezes. A velha, em vinha de espírito de Natal, ofendia-a, como se o erro não pudesse ser corrigido, como se quem serve aos outros nascesse ensinado, como se nunca, em nenhuma das rugas que lhe marcavam o rosto, tivesse cometido a mais pequena gralha. É assim, quando os erros dos outros, por mais pueris que sejam, se lhes aparecem à flor da pele, todos somos santos, cheios de dedos indicadores, moralistas de bancada.

Puta da velha, quem lhe arreasse com um tarolo no alto da mona era pouco, pensei para comigo. Imaginei a velha a tombar depois de um pedaço de madeira vindo de lado nenhum lhe rachar o crânio. Imaginei-a com um fio de sangue a escolher pela têmpora direita, o cabelo pejado de laca manchado do vermelho do interior daquele saco amarfanhado feito gente e ela, ai Jesus, ai Jesus, e eu a rir satisfeita pelo castigo divino.

Passada a porta do centro comercial, paz sonora. Encarquilhamento dos nervos. Um frio de rachar. Acelero o passo. Não se está bem em lado nenhum. Da janela o sol mentia, dizia que estava simpático para um passeio, mas quando chegávamos à rua era como uma partida, o frio apanhava-nos pelas costas e deixava-nos o nariz gelado e a pingar.

Mais uma porta. Cartão. Elevadores.

Detesto elevadores, não só porque podem cair de pisos altos e desfazer-se em papa, não só porque em caso de encravanço me podem deixar ali, suspensa entre o nono e o décimo à espera que alguém desaparafuse aquilo e me apanhe lá de dentro, mas porque a espera me esgota. A conversa de circunstância de que ninguém gosta mas toda a gente faz, como se o silêncio espetasse fartas nos olhos, como se o balançar de pernas e o consultar das redes sociais fazendo-nos ocupados não fosse bastante para consumir aquela meia dúzia de minutos terríveis.

Boa tarde, diz-me a voz do corpo que se aproxima. Com a sorte que uma pessoa tem só podia ser este, ocorreu-me. O tagarela de serviço, o sabe tudo, o acha-coisas, o homem das soluções que só arranja trabalho aos outros, o não-me-contestem-que-amuo, o zero-capacidade-de-síntese que fala mais de meia hora e não se aproveita um caralho do conteúdo.

Boa tarde, como está, perguntei, idiota e sabida de que uma pergunta retórica não cairia naquele goto para escorrer na medida certa.

Bem obrigada a preparar o Natal tudo enfeitado muito bonito não é a preparar o ano novo para o ano vamos ter muitas coisas novas e otimizações e melhorias. A voz monocórdica sem pausas ou oscilações, como se debitasse palavras coladas umas às outras. A boca a mexer e a minha cabeça abanar como aqueles cães de brincar no tablier dos carros. O prédio a parecer o Empire State Building. Deviam mandar pôr umas músicas de Natal no elevador, discorria animador, não achas, perguntou-me quando saímos. Ora aí está uma ideia a explorar, não lhe escapa nada, disse-lhe já a voltar costas. Nada não me escapa migalha. E lá foi, mão direita no bolso, braço esquerdo a dar a dar, desengonçado sobre as ossadas. Nem se apercebia que os lábios se lhe mexiam para verbalizar pescadinhas de rabo na boca.

A tarde passou entre meia dúzia de chamadas e três tarefas que espreitei e adiei por mais uns dias. À minha volta sonhos e filhoses trazidos por este e por aquela, boas festas, fica aqui, amanhã estou de férias, vou sair um pouco mais cedo, depois compenso. Quem é que quer trabalhar no vinte e três? Quem é que quer trabalhar no vinte e quatro? Quem é que quer trabalhar? Ninguém. Menos ainda quando cheira a mesa posta e iguarias da avó feitas pela tia que foi a única filha que deitou mão à receita.

Saí agora. A fila não está pior. Devo chegar daqui por uma hora. Disse ao Whatsapp. Dois vistos. Lida.

As vantagens das tecnologias. Nem precisamos de um chip no cachaço, somos nós que queremos que os outros saibam onde estamos a cada instante. Assim avança-se o jantar, vai-se pondo a mesa, a miúda vai tratando dos trabalhos. Ele chega mais cedo, trabalha a minutos a pé de casa.

Os vinte quilómetros para casa nem os vi. Vieram-me à ideia os pingarelhos natalícios que ia comprar e não comprei. A sala pouco vermelha. A toalha de mesa. Não comprei outra por isso ia usar aquela branca com folhas de Poinsétia, que as pessoas conhecem como Estrela do Natal, mas eu, desde que me entreguei ao mundo das plantas, conheço o nome de registo.

Sempre compraste salada, perguntou o Whatsapp.

Sim. Comprei salada. E comprei bifes, daqueles cuja pele é feita de embalagem porque assim não parecem pertencer a bicho nenhum. Ganhei uma medalha nas caixas rápidas e deixei para trás dois petulantes que nem deram por mim. Sou uma vencedora.

Assim que o trinco desprendeu a porta ouvi o meu nome, Mãe. Estava na sala debruçada sobre os cadernos. De joelhos na cadeira. Um sapato atirado para casa lado. A mãe já vai.

Passei na cozinha, deixei a salada, pousei os bifes, entreguei um beijo rápido a quem fazia o jantar e arrumava a loiça lavada que salta da máquina para as prateleiras mais aquela que nunca se chega a guardar porque está sempre a servir. Olá, disse, está a fazer os trabalhos, perguntei. Sim, está empenhada e quer que vejas.

Olá filhota, como foi o teu dia, perguntei com a frase alongada pelo abraço. A Luísa escreveu na minha borracha e a Sara não me deixou brincar à apanhada no recreio. Lamento, respondi-lhe sem ser capaz de lhe dizer como resolver de forma inteligente aqueles desaguisados infantis que hoje lhe parecem do tamanho do mundo e amanhã continuarão a parecer. Sei disso porque ainda me lembrava da Natália, que fazia pouco dos meus ténis da Guimarães quando ela usava Converse verdadeiros. Ainda me lembrava e ainda naquele momento, trinta e tantos anos depois, a dia e meio do Natal, desejava que alguém lhe tivesse enfiado uma sapatilha no cu. Não me ocorreu nada que não envolvesse segurar a cabeça da pequena facínora pelos cabelos e arrear-lhe com a cara na carteira da escola meia dúzia de vezes. Por isso repeti, Lamento, e desconversei para um, O pai diz que estás muito dedicada a fazer os teus trabalhos, posso ver?

Os às pareciam ós e os pês pareciam quês e eu não lhe pude dizer que por mim apagava tudo e fazia como devia ser, porque a aprendizagem hoje é positiva e devemos elogiar as conquistas por mais pequenas que sejam.

Está ótimo, filha. Vejo que estás a melhorar a olhos vistos.

Arrumados os cadernos na mochila. Posta a mesa com os individuais manchados. Tocou a campainha. Espreitei. Era a chanfrada do segundo frente, a dos gatos. Todos a conhecemos como a-dos-gatos, ainda que ela também tenha um cão.

Não sabemos nada dela. Se é boa ou má pessoa. Sabemos que tem seis ou sete gatos e isso chega para que o resultado matemático entre o que eu faria e o que tu achas que deve ser feito dê igual a lunática.

Abri a porta desconfiada. Ocorreu-me que me viesse tentar impingir um felino apelando à candura da época. Despontou-se-me como de um pop-up se tratasse o pedido da miúda, que se desfazia em argumentos para ter um gatinho cor de laranja como o da Maria lá da escola, que se chama cenourinha e gosta muito de brincar com as bonecas, tanto que lhe deixou duas Barbies descabeçadas.

Boa noite vizinha, está tudo bem, perguntei numa solicitude matreira de quem não quer oferecer ajuda.

Boa noite, está tudo bem obrigada, espero que convosco também. Lamento vir incomodar à hora de jantar, mas já se sabe que é a esta hora que as pessoas estão em casa.

Temos muitos vizinhos reformados, esses devem estar em casa mais cedo. Disse, rindo-me em excesso da minha própria tirada.

Sim, com esses não é preciso falar, aliás é mesmo por causa deles a minha visita. Como sabe o prédio é antigo e uma parte dos inquilinos são idosos. Alguns não têm filhos e outros têm, mas estão longe e não vêm passar o Natal. As viagens de avião ficam sempre pela hora da morte por esta altura.

Lá isso é verdade, confirmei. Não me digam que a gaja quer que eu fique com um ou dois velhos na noite de vinte e quatro. Não. Mas é que não mesmo.

Pensei em fazer alguma coisa bonita, continuou. Podíamos organizar uma troca de prendas e fazer uns postais uns para os outros com mensagens animadoras. Acho que os ia deixar felizes.

Detesto almas boas, pensei. Especialmente porque me fazem parecer uma víbora insensível. Já me tinha lembrado dos vizinhos, do Natal, dos rostos à janela na noite de vinte e quatro, fortes contra o frio, a perscrutar cada janela, quem sabe para rever ali, na caixa que cada nova família ocupava o que já se havia passado na casa que agora era feita de paredes e vazio, com meia dúzia de luzes postas por hábito ligadas à ficha para piscar só para um par de olhos cansados. Mas nunca me ocorreu fazer nada porque a vida nos dá desculpas para tudo. Porque há correria, porque há trabalhos, porque há a lida, porque não apetece e vejo o tempo a galgar em direção ao dia em que serei eu à janela, com uma casa desabitada de afazeres, à espera de sentir no que pulsa em lar alheio o que um dia já se passou no meu.

Podemos-mãe-podemos, perguntou logo a pequena saída do esconderijo com uma solicitude que deixei de ter quando a inocência se foi esvaindo de mim.

Podemos, respondi num suspiro.

No vinte e quatro arrumei a mala mais cedo. Feliz Natal, vou saindo, depois compenso.

Fizemos sonhos com a receita ditada pela minha tia ao telefone. Tentei estender filhoses, mas não quero falar delas. Recortámos cartões de Natal e a pequena escreveu a frase principal. Lá dentro mensagens que eu não sabia que tinha para escrever.

Às sete, quando os meus pais, a minha irmã e os meus sogros começavam a subir as escadas, deram connosco porta a porta, com um pratinho de iguarias forradas a açúcar e canela e um monte de postais feitos em casa por quarenta e sei anos de mãos. Quarenta meus, seis de quem ainda desenha as letras com o encanto de cada curva.