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Exercício de escrita

Agosto no fim

31.08.22

Fomos fazer uma última ecografia. Ela pôs a língua de fora, de forma nítida, quase parecia intencional. Eu pensei: pronto, não lhe falta nada para responder como o irmão.

À saída a médica ecografista disse-nos: boa sorte, vemo-nos daqui a dois anos. O Nuno respondeu: na-na-na-na-na-não não-não, se tudo correr como previsto só a encontro, por acaso, num shopping ou coisa assim.

Então a médica contou-nos do casal que tinha três filhos, a mulher engravidou uma quarta vez e quando fizeram a primeira eco descobriram que iam ter trigémios. Ou seja, passavam diretamente de 3 para 6 filhos. O pai, quando ouviu a notícia, caiu inteiro no chão.

De regresso eu dei comigo a pensar como teria sido a vida daquela mulher nos primeiros meses, quando os filhos mais velhos saíam para a escola, o marido para o trabalho e ela ali, suponho que assustada ou absorvida num completo modo de sobrevivência, a atender, sozinha, a três bebés, que querem comer ao mesmo tempo, que precisam de fraldas trocadas, que têm cólicas, que precisam tanto de colo quanto de mama.

Há vidas do caneco. E sendo do caneco, não quer dizer que são más. São só mais desafiantes.
Há vidas do caneco. Mesmo.

 

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Livros de agosto

31.08.22



Materna doçura, Possidónio Cachapa

Foi o primeiro livro que li de Possidónio Cachapa. Gostei tanto da escrita. Da forma verdadeira como são relatadas as conversas, com respeito pelo que acontece na realidade ao invés de subverter as palavras ao que seria correto de dizer mas que sabemos que, no corriqueiro mundo banal não acontece.
Gosto de saber dos personagens, do que pensam do que sentem, do que lhes acontece sem que a narrativa se perca em descrições espaciais e detalhes que enchem texto e pouco acrescentam. Este livro é mesmo assim, concentrado nas pessoas, nos azares e contratempos que ditam as vidas em vez da cega ideia de que conseguimos moldar tudo.

Mais informações sobre o livro aqui.





Toda a gente nesta sala um dia há de morrer, Emily Austin

É uma história engraçada, escrita de forma peculiar (com que simpatizei). Entretém. 
É aquilo a que se pode chamar de uma leitura suave, boa para as alturas em que a cabeça está menos disponível. Está giro, mas não é um livro do caraças. 
Penso desta forma porque me parece que a autora quis muita coisa numa história não particularmente longa, onde "bica" em vários assuntos, mas não explora verdadeiramente nenhum. Orientação sexual, saúde mental, desequilíbrio familiar, alcoolismo, crenças religiosas, eutanásia. Tentou que se misturasse sarcasmo com seriedade a espaços, mas fê-lo sempre com aparente receio de ferir as vozes sensíveis que andam de cadeias às avessas com a linguagem e a semântica. 
A ideia está boa, tenho pena que não tenha sido explorada de outra forma.

Mais informações sobre o livro aqui.

 




O efeito das expectativas, David Robson

Precisei de alguns dias para escrever a minha opinião sobre este livro. Foram várias as fases por que passei enquanto o li. Não é um livro fácil de ler, na medida em que, para o ler, aprender e repensar a minha abordagem, questionando sempre o que me está a ser apresentado (não aceito tudo só porque foram feitos estudos, é preciso ter presente que estes podem sempre ser enviesados) é preciso estruturar a  nova informação e compreender em que medida se pode aplicar a mim. 
Houve capítulos em que me revi mais, outros em que considerei que porventura a abordagem pode ser um pouco inocente, na medida em que, por mais estudos que se façam, é impossível replicar a realidade e todas as variáveis, tão distintas, que afetam a vida de cada pessoa.
Não obstante, o conceito - referido inúmeras vezes pelo autor como não sendo uma panaceia -  faz sentido. Se olhar para a minha vida e para momentos da vida de pessoas que me são próximas, consigo compreender que a forma como encaramos e nos preparamos para a vida (mesmo que costumeira) e para os desafios, tem, efetivamente impacto no seu desfecho, na minha perceção quanto às minhas capacidades.
É um livro interessante, com uma abordagem que procura ser honesta, que desafia o leitor a pensar sobre si, sobre a sua realidade, sobre a sua forma de avaliar as suas capacidades, sobre aquilo que pode investir e melhorar para chegar - gradualmente, com disciplina e paciência - a ser aquilo que, acredito, todos procuramos: ser uma melhor versão de nós próprios.

Mais informações sobre o livro aqui.

 



Três mulheres no beiral, Susana Piedade

Sem dúvida um dos melhores livros que li este ano. Não conhecia a Susana Piedade, comprei o livro num impulso porque gostei do título e da sinopse. Gostei mais do que estava à espera, porque fiquei embevecida com a escrita e com a história tão verdadeira, tão humana, tão palpável. Qualquer dos personagens poderia ser uma pessoa que conheço e fiquei, de facto, com a sensação de que as conheço.
Este livro foi finalista do Prémio Leya de 2021, pelo que assumo que, para que não tenha vencido, o livro que ocupa o primeiro lugar deva ser um verdadeiro assombro.
A autora tem mais dois livros editados, sendo que o primeiro foi, também ele, finalista do Prémio Leya (2015) e conto lê-los em breve.
Mais sobre o livro aqui.




O perfume das flores à noite, Leila Slimani

Adorei ler O país dos outros, um livro tocante e maravilhosamente bem escrito. Talvez por essa razão esperasse mais deste O perfume das flores à noite. Gostei da escrita, sempre tão rica, gostei dos momentos de introspeção e de maior intimidade onde a autora nos deixa espreitar um pouco para como a sua mente funciona, o que me perdeu foi a mística gerada em torno do processo de escrita. Compreendo que o processo de criação seja diferente para todos, mas não me convence a ideia de que um escritor sofre mais ou abdica de mais do que qualquer outra profissão onde a excelência se procura. Não creio que abdique mais do que um médico de renome, um atleta de alta competição, um ator que dá voltas sobre si mesmo para interpretar um personagem. 
É um livro bonito, fora da ficção, que se lê num sopro, mas que não me convenceu como os demais livros da autora.
Mais informações sobre o livro aqui.

 

O chão dos pardais.jpg

 

 

 

 

 

O chão dos pardais, Dulce Maria Cardoso

É impossível ignorar a qualidade da escrita de Dulce Maria Cardoso. Provavelmente uma das mais brilhantes escritoras do nosso tempo. 
Uma família de aparências, que manobra e manipula quem consegue. O ser humano que se deixa corromper e molda o seu caracter ao estatuto.
Uma história muito bonita, escrita na terceira pessoa (o que é menos característico na escrita de Dulce) e que merece muito ser lido.
Mais informações sobre o livro aqui.

 

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O flagelo do interruptor

28.08.22

Sigo algumas páginas de maternidade e não sigo mais porque lamentavelmente não vejo alguns dos verdadeiros flagelos da parentalidade a ser abordados. Falam da gravidez, da amamentação, de violência obstétrica, mas não vejo uma alma a falar da calamidade dos interruptores.
Isso. Leram bem. Vou pôr a minha unha mal amanhada na ferida e falar das luzes que ficam por apagar.

As crianças são com os pirilampos: deixam um rasto de luz por onde o rabo passa. E é impossivel fugir ao desespero e à conta da luz.

Não tenho como saber o que acontece nas outras casas onde reina o amor com cheiro a algodão doce e sabor a caramelo salgado dentro de prazo, mas eu passo o dia a assinalar o estado da iluminação das assoalhadas: luz da casa de banho ligada, a luz do quarto ainda está ligada, a luz do escritório ficou acesa, e por aí em diante. Pareço a voz do intercomunicador do prédio que insiste em descrever o evidente: a porta está aberta, a porta está a fechar, a porta fechou.

Sinto que estou a falhar ao ambiente, à EDP e acima de tudo à minha carteira.

É como se as falangetas do menor ficassem em chagas sempre que se aproximam do dispositivo que permite gerir a iluminação, mas se é alergia é muito seletiva porque só tem efeito à saída.

As vezes toma conta de mim uma imensa vontade de arranjar uma fisga para lhe acertar com ervilhas congeladas lombo.

Convenço-me que há mais pessoas desesperadas por esse mundo fora e que precisamos de um grupo, tipo interruptores anónimos, para que possamos desabafar a nossa dor.

 

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Redefinição semântica da designação profissional

27.08.22

Empregada de limpeza - Master of the House Wellness

Trolha - Gestor de tijolos | Brick manager

Agricultor - Encantador de legumes | Vegetable whisperor

Feirante - Técnico especializado de comércio outdoor

Taxista - Pégaso da estrada

Esteticista - Técnica superior de escultura pilosa & outros

Peixeira/o - Fish designer

Coveiro - Técnico especializado no manuseamento da pá para a abertura de buracos retangulares

Homem do lixo - Engenheiro de reciclagem urbana

Caixa de supermercado - especialista no tratamento de código de barras a fazer pi-pi.

Empregado/a de mesa - Facilitador de nutrição

 

Basta que estejamos atentos para que consigamos ouvir o grito de dor. As pessoas não estão preocupadas com o vencimento e as condições de trabalho, é a designação técnica das suas funções que leva ao mais extremo burnout.

Tenho tido insónias, como sabem. Por isso aplico o meu tempo da forma mais inútil que me ocorre para ver se o cérebro se cansa de si mesmo. Assim, esta madrugada, decidi envidar esforços para identificar nomenclaturas modernas e à prova de pessoas sensíveis para profissões sobejamente conhecidas e que não têm tido o carinho semântico que metecem.

A lista tem 11 profissões, podiam ser muitas mais, mas às 3 da manhã a miúda parou de me pressionar a bexiga, eu caguei nisto e fui nanar.

(Espero que este trabalho de detalhe sirva de apoio a todas as pessoas e em especial a técnicas especializadas na difusão de entretenimento digital. Estou aqui para vos ajudar enquanto não tiver sono) 

 

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O corpo de inverno

25.08.22

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Ontem foi dia de consulta. Chegámos àquela fase em que há consultas a torto e a direito.

Quando cheguei a médica pediu-me para subir para a balança e eu disse-lhe: olhe que o número que vamos ver não é agradável.

A médica, sempre um doce, disse logo que não estava nada mal e que eu tinha de entender que estou muuuuuuito grávida. 

Eu , quando vi o número, só pensei em duas coisas:

1. tinha um bolo de aniversário encomendado ainda que ninguém tenha feito anos .

2. como é que eu vou garantir o meu corpo de inverno em tão curto espaço de tempo?

Porque ninguém fala do corpo de inverno. Anda sempre toda a gente doida com o corpo de verão, mas esse, a meu ver, é muito menos preocupante. Pensemos que a roupa de verão é composta por menos matéria têxtil e a roupa de praia, sendo feita essencialmente de lycra, estica que se farta. Mas a roupa de inverno é implacável.

Como é que eu vou enfiar o meu lombo L num quispo S/M? Hummm?! Alguém me explica?

É que se eu tiver de comprar todo um novo guarda roupa de inverno para mim, a miúda vai ter de se habituar a comer sobras mais cedo, a 26 de dezembro já está a malhar uma malga de roupa velha passada pela varinha mágica.

É no corpo de inverno que temos de pensar pessoas, o corpo que tem de caber em roupa que não estica, o corpo de tem de ser enfiado - nem que seja em modo chouriça - em casacos que consigamos apertar para que não entrem correntes de ar para debaixo dos sovacos.

Aposto que ainda não tinham pensado nisto, mas é para isso que aqui estou, para vos fazer pensar no que realmente importa.

 

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Agosto à hora que me apetecer

24.08.22

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Não é o meu aniversário nem o de ninguém cá de casa. Também não tenho nada especial para comemorar hoje, a menos que considere a satisfação de não ter batido de caras com um contratempo lixado. Por vezes a simplicidade de não ter nenhum drama à perna é alegria que chegue.
Agora que o escrevo percebo que nunca o faço. Nunca celebro o simples facto de as coisas estarem compostas.
É uma coisa que se faz pouco.
Sei que não o faço com medo de acordar as chatices, as malditas parecem estar à escuta, sorrateiras, aguardando que se baixe a guarda para atacarem.
Por isso mantenho sempre um olho aberto, fico à coca para o caso de sentir que o tapete me está a ser puxado de debaixo dos pés.

Não tenho nenhuma comemoração para assinalar. Passa-se apenas o seguinte: há meses que me apetecia comer bolo de aniversário. Este em especial. Pão de ló, recheio de chocolate e - mais importante que tudo - cobertura de pasta de açúcar.

Ontem decidi que não ia esperar pelo aniversário de ninguém. Os bolos foram feitos para ser comidos quando a gente quiser.

A senhora da pastelaria estranhou que não houvesse uma dedicatória, um parabéns a. Então perguntou se podia pelo menos enfeitar com uma rosa.
Ficou assim, lindo por fora e uma delícia no todo.

As minhas gravidezes têm sempre as suas peculiaridades gastronómicas, repletas de apetecimentos fora de contexto.
Quando estive grávida do Ricardo dei comigo em Paris a comer iogurte com azeitonas. Depois disso só me apetecia canja. Imaginam qual é a facilidade de encontrar canja no centro de Paris?
Desta ainda não tinha tido nenhum apetecimento bizarro, até estava a estranhar.
E pronto, bolinho de aniversário.
Já marchou uma fatia e está divinal.

 

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Agosto (muito depois das) 5

20.08.22

No outro tive um sonho aterrador: estava grávida do quinto filho. Não me lembro dos rostos dos outros quatro, o que até me parece bastante realista porque uma pessoa com quatro filhos em casa deve desenvolver uma espécie única de miopia que a impede de fixar as mini ventas daquela gente toda, causando momentos constrangedores em que num shopping alguém encontra um perdido e quando pergunta "é seu?" a pessoa demora aquele segundo dos 5G da NOS para responder afirmativamente.
Acordei, preocupantemente pouco assustada, e fui confirmar que só havia mesmo mais um cá em casa.
Ufa.
O meu organismo, acagaçado, como mecanismo contraceptivo antecipado, decidiu espetar-me com enjoos, ao que parece, até ao final da gravidez. Tenho o palato todo marado e a sensação permanente de que andei a chuchar os canos da casa da avó Gertrudes depois de ela ter passado pelo ralo os restos de um gaspacho azedo.

 

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Agosto (quase) às 5

Dia há não sei quantos porque deixei de contar

19.08.22

Agosto é definitivamente o pior mês para se estar fechado em casa, estilo beringela à espera de ser arranjada para a sopa, a menos que se seja proprietário de uma vivenda com piscina onde a pessoa até pode fazer de conta que “vai à rua” e molhar o pezinho em aguinha com cloro.

Entre final de 2014/início de 2015 já tinha sido presenteada com uma situação similar, também por razões de multiplicação, mas era inverno e psicologicamente era mais fácil estar em casa, a tirar uma pós graduação em ócio. Chovia lá fora e eu punha a mantinha em cima das pernas. Dormia enrolada no edredão, em vez de abraçada a uma saca de ervilhas congeladas (qualquer coisa para não sentir que vou derreter como uma vela barata).

Em agosto até a internet é enfadonha. Praia, praia, praia, biquínis, resorts, praia, praia, cremes para o bronze, sumos de fruta que é mais fruta do que a fruta que a gente vê nas árvores, praia, corpos torneados, bolas de Berlin, gelados, praia, lagoas, desportos aquáticos e não sei se já disse, praia.

Não há uma controvérsia fútil para incendiar as redes sociais, permitindo à pessoa que está alapada ao sofá, estar a comer bolachas – borrando-se de migalhas e nódoas - enquanto lê as caixas de comentários e confirma que o mundo vai mesmo acabar mais tarde ou mais cedo. Em vez disso há incêndios de verdade. Dor, perda, desespero.

Vou no meu sexto livro este mês, em menos de dois dias vi uma mini serie de sete horas e passo demasiado tempo a tirar dicas de fitness das contas das Patrocínios, porque depois de a miúda fazer check out desta pensão Airpançanb quero enveredar pelo projeto Becoming-fogosa e tenho de tirar notas de quem sabe.

Agora vou ali fazer scroll a ver se alguém disse alguma merda que não devia e, se lamentavelmente estiver tudo pacífico, ler mais um bocado.

 

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O que é “envelhecer bem”?

17.08.22

E já agora o que é “saber envelhecer”? Porque, parecendo uma mesma coisa, não é bem.

Será aceitar que a cor dos cabelos vai sendo trocada pelo branco? Será o carro descapotável ou o salto de paraquedas depois dos cinquenta? Será a mentalidade de quem não se entrega ao número que o documento de identificação dita e avalia por si próprio o que está ou não capaz de fazer? Será a roupa que escolho? Será a ideia de que há coisas que já não são “para a minha idade”? Será saber apreciar um copo de bom vinho ao jantar? Preferir um jantar caseiro com amigos a uma noite de discoteca?

Lembro-me da minha avó Maria sentada na cama, umas vezes com a sua saia de fazenda e uma blusa, outras com a sua bata. O cabelo puxado num carrapito de fios finos e grisalhos. Nunca o pintou. Os olhos caídos com o tempo, o mesmos brincos de sempre. Lembro-me dela já com mais de oitenta anos, não a conheci mais nova, mas sei, pelas fotografias, que era assim há mais de vinte anos.

Quando penso na minha avó ocorre-me que: se chegar àquela idade não quero estar assim.

Era outro tempo, as meninas deixavam de ser moças para ser senhoras quando casavam, envelheciam anos depois do primeiro filho porque passavam a ser mães e quando chegavam aos quarenta era como se fossem senhoras de idade. A roupa ditava a conduta que ditava o dar-se ao respeito.

Hoje a rainha da pop faz 64 anos, veste-se e comporta-se de forma jovial, tem a pele do rosto mais lisa que a superfície dos meus armários de cozinha. Ainda assim, ao olhar para a fotografia mais recente do seu Instagram, ocorre-me: se chegar àquela idade não quero estar assim.

São exemplos de espectros opostos, o primeiro dita uma entrega completa a uma construção social antiquada, em que o número calculado em função da data de nascimento define o que pode ou não ser feito, vestido, ousado. O segundo luta contra o tempo tentando criar a perceção de que ele não passa e que, quiçá, até consegue regredir.

Nenhuma das abordagens me parece saudável e não quero nenhuma para mim. Não me vejo sentada à lareira de mantinha nas pernas envolta em queixumes de reumático, nem me vejo em clínicas num processo de estica-estica e puxa-puxa e ajeita-ajeita para parecer que sou mais nova do que os meus filhos.

Saber envelhecer, para mim – e cada um terá a sua forma de o encarar -, passa por aceitar que o tempo passa, que o corpo vai perdendo capacidades, que a biologia é incontornável e que tudo o que é novo, ou morre ou chega a velho, mais gasto, marcado em cada ruga pela sapiência que se espera de um ancião.

Envelhecer bem, para mim - e cada um terá a sua forma de o encarar -, passa por não me entregar ao número que a certidão de nascimento indica, por manter-me nova, mais por dentro do que por fora, é saber avaliar o que ainda sou capaz sem que me prenda a um número para dizer “já não tenho idade para isso”. Quem definiu afinal até que idade se faz o quê? Envelhecer bem é cuidar de mim, para manter o corpo a andar, aceitando que a imagem que vejo ao espelho levanta os punhos todas as manhãs para uma luta inglória com a gravidade. É saber que cada ruga é um sinal de que sei mais do que soube ontem. É aceitar que os cabelos ficam brancos, que os posso pintar ou que os posso deixar ao vento.

Envelhecer bem é, para mim, um misto de saúde mental e física, onde sei a quantas ando, aceito o tempo que passou e valorizo o que aprendi com os dias contados. É saber manter a cabeça disponível para aprender, sem amarras às construções sociais do que espera para uma determinada idade, é aceitar que o tempo passa sem medo de que se reflita na minha imagem, que pode ser cuidada, sem ser distorcida.

Saber envelhecer está muito mais naquilo que acontece dentro da minha cabeça do que naquilo que a pele do meu rosto diz.

 

 

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Agosto às 5

Dia 9

12.08.22

Gostaria de usar a publicação de hoje para falar de um flagelo que acomete uma fração significativa da população adulta. Fala-se muito de síndromes e perturbações de toda a estirpe, mas não vejo ninguém a abordar a condição da gaveta-quase-fechada.

É um problema que agrava com o tempo e a pessoa, à semelhança do que acontece com a perda de memória a curto prazo, a demência e o Alzheimer, nem se apercebe de que o faz. Só que nesta síndrome é pior, porque não há medicação.

A pessoa está a fazer a sua vida normal, sem contratempos e capaz de verbalizar ideias completas, depois recorda-se de que precisa de uma coisa de um armário, abre a gaveta sem dificuldades, retira o que precisa, mas o movimento do braço que conclui o fecho do móvel, colocando como estava, não acontece. A gaveta fica, invariavelmente, a dois dedos de ficar fechada.

Começa com gavetas e, no estado mais avançado, espalha-se para guarda-fatos, em que as portas ficam sempre escancaradas.

Habita, em minha casa, um adulto portador destra síndrome. Confesso que numa fase inicial fui insensível, dizia coisas como: porque é que esta merda fica sempre assim?,  Ficas com as falangetas entrevadas de empurrares a gaveta toda?, ou Mas tu tens medo da puta da gaveta, ou quê? Mas depois fui estando atenta, fui compreendendo os sinais. A pessoa não o faz por mal ou desmazelo, fá-lo porque não consegue que o seu corpo desempenhe a função em pleno.

Achei essencial falar deste tema para vos dizer que temos de ser pacientes, que podia ser pior, que podia deixar migalhas na cadeira, ou o copo de deite com um restinho lá dentro que depois de seco deixa aquela auréola que custa a limpar. Há coisas mais enervantes, como não deitar fora cuecas com buracos. É preciso olhar para a gaveta meio fechada.

 

Se conheces, padeces ou vives com alguém que sofre em silêncio com esta ou outra condição similar, não te acanhes, desabafa nos comentários. Juntos não nos passamos da mona.

 

 

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