Coisas cá minhas
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Já não me lembro de muita coisa. Às vezes até penso que não me lembro de quase nada. Não me parece que vá dar vinho ao jantar e preparar-lhe umas patinhas de sapateira. Que vá transportá-la na bagageira e dar-lhe para a mão um pacote de toalhitas na esperança que troque a sua própria fralda. Mas recordo-me que havia muitos detalhes e já não tenho memória de todos. Nessa altura dormia poucas ou nenhumas horas e a cabeça vivia no modo reserva, a disponibilizar espaço a conta-gotas.
Mamam de quantas e quantas horas? Ponho sempre pomada quando mudo a fralda? Bebe água a partir de que altura? Como é que se chama aquela coisa para as cólicas? Em que dia é que sobe o leite? É que eu agora vivo do sem lactose do continente, percebem?
O tempo passa a correr mas são muitas as coisas que acontecem em sete anos. Às vezes sinto que é como um jogo, cada etapa é um nível diferente que absorve tanto que do anterior ficam só as recordações mais vincadas, as muito boas e as más.
Agora jogo na liga do: vai lavar os dentes, já te vestiste?, porque é que ainda não estás despachado?, o sofá está cheio de migalhas, chega de tablet, põe a televisão mais baixo, não revires os olhos, não te armes aos cucos, olha que não tenho a tua idade, há um par de ténis debaixo da mesa, arruma o teu quarto, sim, tens de ser tu a arrumar o teu quarto, sim, também te amo muito, não sei se podemos ir à Dinamarca no próximo ano.
São mundos diferentes. E agora a era do penico parece menos complicada.
Às vezes, quando acordo de madrugada e já não tenho sono, tento relembrar-me das coisas que tenho de saber. Se dorme de lado ou de barriga para cima. Quantas peças de roupa deve ter vestidas à noite. Quando é que bate palminhas e levanta a própria cabeça. Para a maior parte das dúvidas paira apenas um “acho que” e o medo de que já não tenha mãos para fazer como deve de ser.
Depois penso nas horas que passava a olhar para o Ricardo, só a vê-lo existir, curioso com tudo.
Aprendi na altura, vou aprender outra vez. Tenho a certeza disso. Vinho eu tenho a certeza que não bebe, até porque se bolsar dá cabo da roupa. Cerveja e pastéis de bacalhau tenho de confirmar, vou apontar para perguntar ao pediatra.
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Quando acordo de manhã, atrás de mim está o Ricardo. Veio para a nossa cama porque coisas que nem ele sabe bem. Está deitado de bruços, braços abertos, qual Cristo sem cruz. Ao acordar dirá que ELE estava muito apertado.
Eu podia ficar na cama. Não tenho tarefas nem obrigações. Só tenho de fazer tudo o que está ao meu alcance para que a minha hóspede esteja bem e se mantenha onde tem que estar até que chegue a altura certa. Mas sou um bicho de hábitos, tenho de ter rotinas para sentir a cabeça descansada e equilibrada. Não me dou bem com um dia acordar às 12 e outro às 11 e hoje almoço e amanhã nem por isso. Preciso sentir-me orientada mesmo quando estou no meio do caos. De outra forma fica tudo enevoado, esqueço-me do que tenho para fazer, sinto-me numa permanente atitude de que-se-lixe que não me faz sentir bem. Quando me foi dito que tinha de ficar em casa, repousar e pensar em mim e na miúda foi a primeira coisa em que pensei: tenho de, no meio das limitações, ter as minhas rotinas, mesmo que essas venham a ser escavacadas logo que sodona princesa venha berrar cá para fora.
Por isso levanto-me cedo. Tomo o pequeno-almoço em família. Leio. Tomo banho. Visto qualquer trapo elástico onde consiga espremer esta bola que trago comigo. Ajudo o pequeno a preparar-se para que vá ter um dia de jardim com o avô. Sento-me a escrever (mesmo que me falte assunto ou vontade). Recosto-me a ler e passo por todas as posições de que o corpo se queixa (deitada, sentada, recostada, meio de lado). Vou às redes sociais ver a vida de quem está em forma na praia. Sinto amiúde uma forte vontade de que alguém enfie o algoritmo no cu do Zuckercoisinho. Canso-me da leitura, das televisão e das redes sociais, então penso nas rotinas para depois, penso no parto. Almoço. Leio. Vejo um documentário. Leio. Cirando pela casa porque os rins já estão fartos de todas as posições. Volto a ler. Entretanto, entre leituras intervaladas, espero que o pequeno chegue para ter o que fazer e depois queixar-me de que ele chegou e já me está a dar que fazer.
Janto.
Fazemos qualquer coisa em família.
Leio para ele.
Leio.
Abraço-me a um pacote de ervilhas congeladas.
Durmo até que a bexiga peça socorro outra vez.
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Ontem o Ricardo perguntou-me qual era a coisa que eu mais amava na vida. Normalmente quando me faz esta pergunta quer ouvir: tu, filho. Sempre tu.
Em vez disso respondi-lhe: os meus filhos.
Ele espantou-se com a resposta no plural de disse-me: filhos?, mas tu só tens um filho que sou eu.
Eu disse-lhe: sim, filhos. Tu e a mana. Que está aqui, sempre comigo.
É que para ele a irmã, ainda por nascer, é uma barriga grande e meia dúzia de fotografias com fraca resolução que os pais lhe mostram de vez em quando. É o carrinho que está a ocupar espaço no quarto dele, as roupas mínimas que temos comprado, a projeção de um futuro ser humano com quem ele vai conviver e que espera (e me pergunta tantas vezes) que o vai amar muito também. Mas para mim, a minha filha, a irmã dele, é muito real. Não preciso de a ver para o saber. Está aqui, comigo, a tempo inteiro, nesta relação quase possessiva em que ela é só minha e de mais ninguém, em que a tenho aqui só para mim, resguardada de todas as coisas de que tenho medo no mundo. Está aqui, a fazer companhia de uma forma um tanto ou quanto abrasiva, é certo, pautando-se a sua interação por murros, pontapés e cabeçadas em órgãos vitais, mas, ainda assim, fazendo dar-se conta de que aqui está.
Com ela, com a expectativa do rosto e da filha que tratei ao mundo, moram os medos, os medos do que pode correr mal, dos planos gorados, das coisas que a vida leva sem explicação. Depois dos medos, ou ao lado deles, a espera por um natal com mais um, as mãos dadas dos irmãos, o cão a roubar rocas, as impaciências – mais tarde – porque aquela camisa ainda não está tratada. Está aqui, ainda não nasceu para o resto do mundo, mas existe para mim e mostra-me isso todos os dias, especialmente quando sova a minha bexiga, deixando-me claro que não é desta que tenho uma princesa indefesa, vestida de rosa e adornada a purpurinas. É mais fácil que vá para lutadora de MMA.
Depois de lhe ter dito: sim, filhos. Tu e a mana. Que está aqui, sempre comigo. Ele fez aquele olhar de quem diz: ah, pois é. Depois voltou a perguntar aquilo que me pergunta quase todos os dias: a mana nasce quando mesmo?
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O país dos outros, Leila Slimani
Sendo o primeiro livro que li da autora, antes de mais fiquei impressionada com a escrita, da qual gostei muito. Neste livro a autora conta-nos um pouco da história da sua família, numa altura em que a presença francesa ainda era muito marcada nos territórios colonizados. Gosto do detalhe na descrição das pessoas, dos seus comportamentos e razões de agir.
É difícil viver com o permanente sentimento de que não pertencemos a lado nenhum.
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Quando a noite cai, Laurent Petitmangin
Apesar de ser uma novidade, pela sinopse, criei elevadas expectativas em relação a este livro. Talvez por essa razão, no fim, tenha ficado com a sensação de que queria ter gostado mais do que gostei.
Ainda assim, é uma história bem pensada e bem contada, muito contemporânea e que nos faz pensar nos receios que temos quanto ao caminho que leva a nossa sociedade. Mais do que isso, faz recear o que pode vir a ser a forma de pensar e de estar dos nossos filhos apesar do que tentamos incutir-lhes.
A escrita é boa, mas não encanta. De todo o modo parece-me um bom livro para ler, que mais não seja para pensarmos sobre o que vemos acontecer todos os dias.
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Apontar é feio, Joana Marques
Gosto muito do sentido de humor da Joana e vejo o mundo, em muitas coisas, pelo mesmo espectro. Ainda assim, mesmo que não lhe achasse graça, gosto de acreditar que continuaria a considerar este um bom livro. Porque a Joana Marques, assim como todos os grandes comediantes, pensa a realidade em que está envolvida, despe-a das miudezas e faz-nos olhar para os assuntos com a importância que eles devem ter. Concordemos ou não. O trabalho que a Joana tem feito é muito importante neste momento, que que cada vez mais pessoas se sentem no direito de impor limites ao que os outros acham piada e pior, demonstram-se totalmente incapazes de compreender a diferença entre atos, convicções e pura sátira. Acredito piamente que, quando perdemos a capacidade de nos rirmos das piores coisas, é porque qualquer coisa se apagou cá dentro.
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A chave do sucesso, Malcolm Gladwell
Tinha este livro em casa há alguns anos. O meu marido já ouviu (em audiobook) outros livros do mesmo autor e esteve sempre a dizer-me maravilhas da sua capacidade de pensamento e da forma como nos explica temas pertinentes e em que não paramos para pensar entre o corre-corre dos dias.
Então decidi ler este. Gostei muito.
Acredito que o título em português não faz justiça ao que o conteúdo do livro nos pretende ensinar.
Em resumo (embora eu seja péssima com resumos) o livro pretende falar-nos de como o sucesso, a propagação de algo (bom ou mau, sendo o sucesso aqui referente à capacidade de vencer de algo, até de um vírus), depende de múltiplos fatores e não apenas do produto/elemento em si. As pessoas associadas, o contexto e a forma determinam tudo.
Às vezes dou por mim a pensar como é que um livro de que gostei tanto mal teve expressão e outros, que acho desprovidos de valor, conseguem ter tanto sucesso.
Este livro ajuda-nos a compreender esse fenómeno.
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A pediatra, Andréa del Fuego
Vi referência a este livro através do Instagram d' A mulher que ama livros e, pela descrição, soube que tinha de o ler.
Gostei mesmo muito.
Gosto de livros em que as personagens são humanas, descritas de forma crua, sem pretextos de perfeição, deixam a cores a sua rudeza e maldade. Porque todos temos maldade.
Não achei que a personagem fosse louca, vi-a como alguém desinteressado na vida e que, porventura por essa razão, acaba por agir de forma fria e desligada daquilo que enternece a maioria.
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O senhor d'Além, Teresa Veiga
Adoro a escrita da Teresa Veiga, mas este livro ficou um pouco aquém para mim. A história pareceu-me pobre, com um esmero e dedicação excessivos na descrição de espaços.
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Contra mim, Valter Hugo Mãe
É-me impossível ler um livro tão bonito de memórias sem que faça uma viagem no tempo para a minha própria infância. Para os tempos bons e os maus, para as dúvidas sempre constantes.
Gostei muito de ler este livro, tão honesto, sem florear aquilo que a vida tinha de ser e a forma como se conseguia perceber o mundo com um décimo da informação de que dispomos hoje.
Valter Hugo Mãe gostava em criança de jogar com as palavras e tornou-se um mestre nisso mesmo e é tão bom assistir a forma como joga.
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Positividade tóxica, Whitney Goodman
O que me chamou a atenção foi o título. Estou cansada de tanta positividade bacoca, com o frequente impingir da ideia de que se pensarmos sempre que está tudo bem e se virmos o copo meio cheio somos pessoas melhores a quem acontecem coisas boas. Se ao menos fosse assim....
Aquilo que acontece a cada um não depende somente da sua atitude, depende de uma multiplicidade de fatores sendo tantas vezes os mais subtis os responsáveis pelo resultado final.
É importante que vejamos o que de bom a vida tem, mas não é por isso que deixamos de ter o direito de nos queixarmos do que nos incomoda.
Tal como é referido no livro, também eu já havia reparado neste estranho pormenor: numa época em que tanto se advoga a positividade, são tantas as pessoas que se comportam de forma maldosa, vingativa e puramente agressiva.
É um livro escrito com uma linguagem acessível, que relata sem pruridos a hipocrisia desta onde de positividade que só aceita quem pensa de uma determinada forma.
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Lições de química, Bonnie Garmus
Comprei o livro sem qualquer expectativa, apenas sabendo que era uma recomendação de quem, por regra, não falha nas recomendações que dá.
A capa seduz e o título também.
Depois a história, a escrita, a mensagem e toda a construção desde livro me deixou maravilhada. Tem a sua cota de fantasia, com um cão que conhece mais palavras que alguns políticos ativos e uma criança encantadora, mais perspicaz que a maioria dos adultos.
Mas é a personagem principal que nos marca. É esta Miss Zott que fica na mente como alguém que conhecemos noutra vida ou que gostaríamos de ter conhecido.
Todos precisamos de mais Elizabeth's Zott no mundo.
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Porque há dias em que não lhes apetece nada. Porque há dias em que já não há forças para ver desenhos animados e fazer caretas e deixar-se ser convencidas a fazer aquilo que não têm vontade. Porque se é para sair e fazer mais um passeio que desagua nas coisas que os filhos querem para não lhes aturar mais um amuo, mais vale ficar em casa, agarrada ao aspirador ou a inventar tarefas feitas à bruta para descarregar a neura. Porque há dias em que a única coisa que parece funcionar é um sofá, duas pernas esticadas, um livro lido com o catrapiscar de um programa fútil no intervalo de cada capítulo.
As mães também fazem birras. Porque estão cansadas da roupa que ainda não está tratada, das idas ao parque, das corridas em casa, dos brinquedos que ficam semeados, das migalhas deixadas em carreiros, da fome que chega quando a cozinha acabou de ser arrumada, das respostas tortas ou dos choros a troco de nada. Estão saturadas de estar sempre erradas, dos olhos revirados, de serem as chatas de serviço.
As mães também fazem birras. Porque estão pelos cabelos de se repetir, de pedir que a escova de dentes volte a ser guardada no sítio, que o tampo da sanita venha para baixo, de pedir que se grite menos, de gritar porque estão fartas de pedir o que não é ouvido.
As mães também fazem birras. Porque querem ser boas mães, porque leem livros e apontam dicas e perguntam às amigas e aos entendidos e especialistas sobre a melhor forma de lidar com isto e com aquilo e, mesmo assim, nunca parece bastante. São melgas, não entendem, gritam, podiam falar mais baixo, vivem lá no tempo delas, preocupam-se demais, preocupam-se de menos.
As mães também fazem birras. Porque a culpa é sempre delas. Porque não anteciparam, não organizaram, não previram, não pesquisaram, não questionaram, não se preveniram, não adivinharam na bola de cristal que evidentemente pariram no dia em que trouxeram ao mundo o primeiro filho.
As mães também fazem birras. Porque se lhes esgota a energia. Porque quando fazem uma coisa bem só fizeram o que uma mãe faz, mas quando fazem uma coisa mal, Deus nos acuda. A impostora, não merecedora do mais puro e elevado epiteto. Mãe.
As mães também fazem birras. Porque têm saudades de ouvir o seu nome. Aquele com que foram batizadas, até aquele que desejaram que fosse outro durante tantos anos. Aquele que lhes confere identidade. Porque passam a ser “a mãe”, chamada assim pelos filhos, pelos professores, pelos médicos, pelos amigos dos filhos, pelas mães dos amigos dos filhos.
As mães também fazem birras e têm direito a elas. A bater o pé, a gritar, a descabelar-se, a dizer: hoje não estou para isto. A fazer valer a sua vontade sem remorso, a deixar os filhos com os avós para fazer nada e fingir, por meia dúzia de horas, que ainda mandam no seu nariz. Têm direito a dizer: não me apetece, agora vai brincar para o teu quarto, entretém-te um bocado sozinho, deixa-me aqui um bocado por minha conta.
As mães também fazem birras. Porque antes de terem filhos eram pessoas donas das suas vidas, que não se moldavam às necessidades de pequenos seres que ainda não sabem limpar o próprio rabo, porque têm saudades de serem donas de si, sem o peso da responsabilidade, da culpa e do remorso.
As mães também fazem birras. E amuam e ficam de trombas. E depois, ou ainda durante correm para os filhos quando estes batem com o joelho na esquina da mesa a fazer o que já lhes haviam avisado estar errado. E abraçam e dizem que já passa e que os amam muito e dão beijos em joelhos sujos de andar pelo chão.
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Tenho tido tempo. Muito. Tanto tempo que dou comigo a contar o tempo que falta para que chegue a hora de alguma coisa que eu tenho de fazer.
Repito-me. Dou comigo sem saber em que dia da semana vamos.
Amanhã é sábado. Fui confirmar.
Leio, vejo documentários, ligo o computador e escrevo estas linhas para não perder o traquejo da escrita. Tenho ideias mas falta-me a disponibilidade mental para as reduzir a escrito. Penso: jamais concluo essa ideia até ao parto e depois não vai haver cabeça para isso.
Uma das histórias em que pensei é a de uma mulher com dois filhos que um dia dá o tilt, aniquilam-se-lhe as sinapses todas, e, a meio da noite, sai de casa, com as suas havaianas de padrão floral desbotado e camisa de noite do Harry Potter. Caminha sem destino concreto. Para em Azeitão para comprar umas tortas para a viagem e, depois de curvas e contracurvas, chega a Elvas. Ali, sem se saber muito bem como, abre um negócio de eliminação de piolhos, o qual a torna a rainha do piolho. Volta a casa quinze anos depois, abastada, pedindo perdão aos filhos por tê-los deixado a meio da noite para perseguir o seu sonho de dizimar lêndias.
Dou comigo a pensar em cenários idílicos, a fazer planos de recuperação física, a ultrapassar catástrofes pessoais. Outras vezes ocorrem-me coisas mais simples, como a chegada a casa e a receção que os cães farão ao novo ser. A Tulipa vai olhar para ela e fazer aquelas ventas de quem diz: desde que sejam vocês a tratar disso. O Ghandi vai cheirá-la horrorizado e fugir com ar de vítima que pensa: outro? Foda-se! O Bob vai ser o eterno entusiasta, aquele que vê sempre uma fonte de qualquer coisa boa em mais um par de mãos. Conto com o Bob para roubar rocas, bonecos com apitos e suspeito que chegará o dia em que dou com ele adormecido com uma chucha que não lhe pertence. Porque este é o Bob, o cão que se indigna quando alguém não dá valor à sua presença. O cão que parece ter uma pessoa boa lá dentro. O cão que me faz companhia nas madrugadas de insónias, encostando a cabeçorra à minha perna, olhando-me com os seus olhos esgazeados, numa expressão que diz: porque hás de te arreliar quando me podes estar a dar festas?
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Há dias em que os meus sentimentos são como um gelado de três bolas com sabor a medo, angustia e ansiedade. Topping: desespero.
São palavras pesadas porque quando estou arreliada acende-se-me a veia do melodrama.
Ontem, depois de dizer ao mais velho tantas vezes que deixei de contar para que: estivesse quieto, se sentasse à mesa, não interrompesse, comesse o que estava no prato, lavasse as mãos….e todas as mil outras coisas que não fez nem à primeira, nem à segunda, nem à terceira; dei comigo sentada no sofá, com a miúda aos pontapés na minha pança, a pensar se ela estaria já a manifestar a sua defesa para com o irmão que insiste em levar a dele avante ou a dar-me aquela palmada nas costas (neste caso no baço) de quem diz “é isso, mãe”. Dei comigo a duvidar das minha capacidades para conduzir este autocarro que vai passar a ter dois passageiros que têm de fazer a carreira dos valores, princípios e educação com destino à paragem das pessoas que crescem para ser seres humanos com o mínimo de consciência cívica e respeito pelos outros.
Hoje mais rebeldia e eu, a um triz de arrancar os próprios cabelos, a dizer que já não sei o que dizer, o que fazer. Eu a confessar-me cansada e desesperada. Parece que as palavras atuam menos do que placebos. Entram no organismo e são rejeitadas como impurezas.
Fico triste quando já não sei o que fazer.
Fico angustiada quando perco as estribeiras e grito e abro os olhos como uma tresloucada.
Fico assim, como se estivesse debaixo e uma nuvem cinzenta que ainda não decidiu se quer desfazer-se em água ou se vai ficar ali a tapar o sol só porque lhe apetece.
Ninguém disse que a maternidade é fácil. E com os anos que levo disto já não me sinto uma má mãe por mais que me apresentem tretas de positividade bacoca. As pessoas mal-educadas com que me deparo todos os dias são filhas de alguém também, amadas por essas mães e pais, e tantas vezes são assim porque a vida não foi outra coisa para além de facilitada.
Hoje a expectativa está tão baixa que não faço a minha reza habitual por uma casa com piscina e um Tesla seminovo. Só quero pedir uma coisa, ser ouvida, e que essa coisa seja feita sem contestação, contra-argumentação ou protesto.
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Fui ler as 3 primeiras páginas do tão magnífico livro que vai embevecer Bruxelas. Fiquei tão consternada emocionalmente, que quase estive para escrever Bruxelas com ch. Depois passou-me.
Em três páginas temos o corriqueiro inverosímil de quem conversa com uma criança que não quer brinquedos da Patrulha Pata ou um jogo da porquinha Pepa, ou uma Playstation, ou está sequer danado porque lhe cortaram o acesso ao YouTube. Uma pessoa lê aquelas páginas e pensa: ora aqui está um diálogo que eu teria com nenhuma criança que eu conheço. Faz sentido.
É a lamúria de que a felicidade não tem preço e o que conta são as pequenas coisas e rrrrrrrr... estou quase a adormecer. O dinheiro não compra felicidade e blá blá blá. Só compra cuidados de saúde no privado quando o SNS fecha serviços. Mas isso é outra matéria.
Diria que se percebe desde a primeira letra que é uma obra-prima. De facto emergente e inédita na sua abordagem.
Dito isto, o autor é alheio à escolha. O autor escreve o que acredito que corresponderá ao seu conceito de arte e ao que gosta de ler.
O que eu não entendo é como, num país em que se consome mais do que se pode, numa sociedade em que se vai para supermercados no natal raspar prateleiras para comprar mais com desconto, em que se estaciona nos lugares de pessoas portadoras de deficiência, onde se faz vista grossa às grávidas nas filas de supermercado, onde não se usa o bom dia e boa tarde como cumprimento e educação básica; como é que nesta mesma sociedade se vive um encanto tão acérrimo com as coisas puras e simples. Imagino o cenário em que a sogra oferece à nora A raridade das coisas banais, porque o que interessa é o calor cá dentro e depois passa a ceia a afinfar na moça porque bacalhau está salgado, as couves mal cozidas e o filho tinha casado bem era com a Belinha que estudou para médica, ganha bem e tem uma vivenda para os lados de Palmela.
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Se nestes meus 39 anos de vida alguém me tivesse dito que eu ia dormir noites seguidas abraçada a uma embalagem de ervilhas congeladas, eu diria que essa pessoa estava ébria, drogada ou com as sinapses severamente comprometidas. Mas, eis que aqui estou confessando que, nas últimas três noites, descobri a pólvora, que é como quem diz, descobri a leguminosa congelada como forma de arrefecimento global do corpo em forma de esfera que presentemente possuo. Têm sido noites quentes, sem ar condicionado, janelas escancaradas e a casa sem dar tréguas, mantendo-se quente apesar da brisa fria que se sentia lá fora. Noites a dormir uma hora e meia, com sorte duas. Noites sem posição para estar, com a nítida sensação de que a bexiga me vai saltar como a rolha de uma garrafa de champanhe e depois eu entro em auto combustão. Vi todas as comédias românticas, tantas que à tarde já me pus a papar documentários de assassinos americanos, só mesmo para dar algum equilíbrio à informação que recebo. Depois Eureca, no final da semana passada, munida daquilo a que eu chamaria a filha de uma grandessíssima égua de uma neura, pensei para comigo: se calhar o melhor é ir buscar qualquer coisa congelada e espetar com aquilo em cima de uma parte aleatória do corpo. Resultou. O Nuno acordou para dar comigo desgrenhada, a babar ligeiramente do lado esquerdo porque estava a dormir de boca aberta, meio entrançada com uma chouriça em padrão de estrelas e um pacote de ervilhas congeladas entre os braços.
Dormiste melhor assim?
Eu grunhi qualquer coisa. Porque eu não tenho competência para emitir vocábulos inteligíveis nos primeiros 15 minutos depois de acordar, e mesmo na hora que se segue é preciso ter alguma atenção à pergunta apresentada.
Então é isto. De noite acordo, vou fazer o meu 2167468464 chichi, vou comer uma bucha, passo pela arca, levo as ervilhas e vou abraçar-me a elas até que o despertador toque, ou que a bexiga peça socorro outra vez.
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