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Exercício de escrita

Ninguém disse que ser mãe é fácil

29.09.22

Ninguém as disse que ser mãe é fácil. Mas não aleijava que os filhos trouxessem livro de instruções. Um documento com o que gostam, o que detestam, o tom que mais apreciam e as palavras mágicas a aplicar para prevenir que o sangue aqueça e a pessoa acabe a falar em decibéis menos aceitáveis.
Parir podia custar um pouco menos e as dores de pôr um filho no mundo podiam acabar com o primeiro colo em vez de se arrastarem no corpo para lembrar durante semanas, meses, que aquele ser que amo mais do que a própria vida me custou vísceras e entranhas.
Os filhos podiam ter modo de voo, um botão em que eu carregasse para garantir que não se metem em cabriolas que podem custar, mais do que a deles, a minha dor. Dava jeito que soubessem o quanto me custou fazer aquele corpinho de equipamento completo, que se move, respira e responde, especialmente, aquilo que eu não estavam à espera de ouvir.
Não custava que fosse por demais evidente que o segundo filho não é trigo limpo, farinha amparo.
A culpa podia diluir-se em vez de se multiplicar, deixando claro que agora tenho duas vezes mais probabilidades de errar, já que quando não falho com um, falto com a outra.
Podia haver uma alavanca que me permitisse desligar os medos, ou um botão que me deixasse regulá-los para que não sinta que o mundo foi feito para andar à bulha com eles. Que os vai magoar, mandar ao ar, retorcer e cuspir para que aprendam a levantar-se e seguir de cabeça erguida depois de cada trambolhão.
O tempo podia passar mais devagar quando ainda dormem serenos ao meu peito. Quando o poder do meu beijo ainda cura as dores, quando ainda gostam de passear de mão dada comigo, agarrados aos meus dedos como se aquele entrelaçar fosse o mais sofisticado mecanismo de segurança.
Devia haver uma entidade divina que se reunisse comigo ao fim de cada noite, depois de estarem todos a dormir. Uma entidade de sapiência super sónica se sentasse pacientemente a meu lado, que revíssemos em conjunto o dia e me dissesse, sem subterfúgios ou mensagens subliminares, como devo fazer a cada momento para que não meta os pés pelas mãos, numa sensação de que passo a maior parte do dia a fazer cocó metafórico.

 

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Apontamentos da vidinha

27.09.22

Faz este mês de setembro 20 anos que entrei para a faculdade. Foi um ano preenchido. Cheguei a ter três empregos em part-time para pagar propinas, livros e despesas básicas como transportes. Não tinha um segundo livre, estava feliz e sabia disso. Não tinha carro e no guarda fatos mal repousavam meia dúzia de peças de roupa que me pareciam mais do que suficientes.
Estudei psicologia certa de que um dia ajudaria alguém como precisei que um dia me tivessem ajudado a mim.
Depois a vida deu voltas e mais voltas. O curso ficou acabado mas nunca exerci com alguma pena minha. Quanto mais velha fico, menos certeza tenho de que teria sido uma boa psicológica. Tenho mais dúvidas que certezas, demasiadas insegurancas. Sinto cada vez mais que sei tão pouco.
Passaram 20 anos e continuo a estranhar que o tempo tenha andado tão depressa, que a minha idade esteja quase a chegar aos entas quando ainda sinto as mesmas incertezas daquela miúda de 19 anos.

Gosto de dar a mão aos meus filhos

26.09.22

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<span;>Gosto de dar a mão aos meus filhos. Estou certa de que gosto mais de lhes dar a mão a eles do que eles a mim. O mais velho cedo começou a pedir para andar em mãos livres. Não queria cá amarras de nenhuma espécie. Esta mais nova logo veremos como será. Por isso é nos passeios de carro que aproveito este momento. Ponho o meu dedo na mão dela e espero que o aperte. Vamos ali de dedo e mão dados. Uma mão miniatura. É nesse toque que acalmo os demónios que me fazem cutucar um anjinho que dorme o sono dos justos. Mexo o dedo, ela aperta, eu tranquilizo-me.
<span;>Hoje, ensanduichada entre os meus filhos, no banco de trás do carro, dei com o meu indicador esquerdo a ser apertado pela minha filha e a minha mão direita apertada na mão do meu filho.
<span;>Soube-me bem, nem eles sabem como. É que por esta altura já compreendi que crescem depressa demais, que a mão dele, que um dia foi minúscula, rapidamente será a mão de um homem que chamo à cozinha para dar uma ajudinha à mãe com o frasco das azeitonas que parece impossível de abrir. Já sei que a mão dela, de dedos esguios, que hoje cabe aninhada na minha, não tarda nada será a mão de uma mulher feita, de unhas arranjadas, que me dirá: ai mãe, tenho de te levar à minha manicura que tens essas cutículas que são uma desgraça, parece que andaste a cavar batatas.

As trotinetas

24.09.22

Detesto as trotinetas em Lisboa. Detesto os turistas que andam nelas. Detesto que fiquem espalhadas, abandonadas aqui e acolá como se de um pedaço de ferro velho se tratasse. Detesto não poder dar um passeio em família sem estar sempre a pensar que pode aparecer um cabrão de holandês, um espanhol ou um italiano a zarpar naquela jigajoga e que me acerte no miúdo que vai entretido aos saltos e corridas. Detesto sobressaltar-me quando passam por mim, rentes demais, grupos de três e quatro. Só me apetecia que apanhassem uma falha no pavimento e fossem de focinho ao chão. Detesto que não se definam regras claras porque os camones e os avecs gostam de vir cá e sentir que podem brincar ao que lhes apetece.
Não sei quem é que se lembrou desta merda, mas confesso que só me ocorre que tenha resultado de uma verdadeira diarreia cerebral.

Mais apontamentos da vidihha

22.09.22

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O cérebro, assim como as pernas e a barriga, é um músculo que tem de ser exercitado. Porventura aquele que mais precisa de movimento, já que sem a disposição da moleirinha fracas são as hipóteses de se andar para a frente com o resto.
No último mês de gravidez li pouco. Comecei mais do que um livro e fui pousando porque a cabeça não tinha disponibilidade. Tinha tempo, dias inteiros, mas os olhos passavam pelas palavras sem reter informação. Havia demasiado a ocupar espaço: a ansiedade do parto, o cansaço de meses e meses de desconforto, a expectativa do que estava para vir.
Agora, que aos poucos vão ficando para trás esses momentos, é preciso reganhar rotinas. Fazer caminhadas para dar andamento às pernas, escrever para não esquecer o bem que me sabe esta catarse, ler para ocupar a mente com histórias e mais histórias.
Mas as noites têm sido mal dormidas, a acordar de poucas em poucas horas. Os dias ainda de habituação, com os trâmites burocráticos de legalizar um ser fresquinho no mundo e a submissão de mil papéis para as licenças de parentalidade.
Para não perder o hábito ando com um livro por perto. Ainda não tinha lido uma página desde que estamos em casa. Hoje, depois de dar de mamar, depois ter uma conversa detalhada sobre a diferença entre a Marvel e a DC Comics com o mais velho, depois de estender mais uma máquina de roupa, sentei-me no sofá e li três paginas. Um texto deste Jalan Jalan.
Um livro que já comecei a ler há algum tempo, e que vou lendo aos poucos, entre livros, como um passeio lento. Vou caminhando por entre os textos.
Para já está a ser o livro ideal, os textos são curtos e eu consigo acabá-los antes de ser chamada para me apresentar ao serviço de mãe a tempo inteiro.

Apontamentos da vidinha

21.09.22

Quando tem fome parece um pica pau a dar caroladas no peito do pai. Uma espécie de morse que aparenta dizer: isto. está. tudo. seco. pá. Onde é que param os tetos nutritivos?
Quando a vontade não é atendida de imediato larga o Pavarotti que traz na goela e berra com o pai num dialeto de vogais que permite antecipar aquilo que nos espera na adolescência.
Depois, quando o pai me passa o presente, para de gritar e persiste numa qualquer lamuria, um rame rame que diz qualquer coisa como: já viste o tempo que este bacano demorou a vir do quarto para a sala? Tive quase para chamar um Uber.
Entretanto vislumbra o jarrican de leite e agarra-sea ele como um bom bêbado à pipa de tinto.

(nada como descrever a beleza da maternidade com a eloquência de uma boa tasca)

Colo

19.09.22

Não sei qual de nós gosta mais deste colo meloso, ela ou eu. Suspeito que seja eu, já que ela não me pode pousar na alcofa e eu arrasto estes momentos tanto quanto posso ou até o pai reclamar pelo bocadinho dele, com jeitinho, porque também gosta de a ter alapada ali ao peito, onde ela estará sempre, mesmo depois de crescer que chegue para que lhe cheirem mal os pés.
Somos deste tipo de gente peganhenta. Somos gente de dar colo até que as vértebras ganhem bicos de tucano (bicos de papagaio é para meninos). Somos gente de abraços e beijos a troco de nada. Somos gente do "sabes que gosto tanto de ti?" a propósito de coisa nenhuma.
Às vezes, quando ando mais lamechas, digo ao mais velho: só quero que um dia, quando fores crescido e já não precisares desta carcaça velha para nada, que me venhas visitar e que te lembres sempre de dar um abraço a esta velhota. Ele diz-me que sim e que até me leva a viver com ele (pobre, não sabe nada da vida).
E assim por aqui estou, com a loiça do almoço para arrumar, roupa no estendal para apanhar e eu a dizer para mim que são só mais 5 minutos e já a pouso, mas depois fico mais 5 porque ela não se vai aninhar assim, em mim, para sempre e se é para aproveitar é agora.

 

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As cuecas

16.09.22

Estas são umas cuecas descartáveis pós-parto da wells. São L (large) e não passam da minha coxa. Aliás, como é possível ver na foto, o cós é pouco maior do que um palmo da minha mão (e eu tenho mãos pequenas). Não quero imaginar para quem se destina o S (small) mas concluo que deve ser para o recém-nascido.
Gostava de compreender a base para definição destes tamanhos. Suponho que seja: nalgas arrebitadas ao cubo vezes a raiz quadrada de se-não-servir-voltem-e-comprem-tamanho-acima. Ou isso ou foi feita numa extrapolação com base numa amosra das modelos da Vitória Secret. Parece que o produto foi criado destinando-se ao período pré-concepção e depois a informação ficou baralhada na caixa do artigo.

Este produto é procurado por mulheres que acabaram de parir. Mulheres que, na sua maioria, ainda têm (na fase em que precisam destas cuecas espanta tudo) uma parte da barriga da gravidez. Três, quatro, cinco ou mais meses de espaço oco, vazio, um nada à espera que o corpo reaja à saída do seu hóspede. Então, destinando-se a mulheres, especialmente num período em que o seu corpo ainda não está no seu estado habitual, digamos assim, é criado um produto cujos tamanhos são uma anedota. O que leva à compra de algo que vai acabar no contentor.

Esta publicação poderia servir o propósito de manifestar o meu desagrado face à falta de sensibilidade na produção de algo que pode milindrar o cliente, logo numa fase tão sensível. Mas a verdade é que serve apenas para dizer o quão lixada estou por ter pago por uma merda que agora vai para o lixo já que não há lugar a trocas para produtos desta natureza.

Amanhã passo lá outra vez, vou ver o que é que eles têm na secção de tendas descartáveis.

Estamos um país de gente pouco amiga das pessoas.

01.09.22

No outro dia alguém dizia que somos um país pouco amigo das crianças, mas creio que, ainda que sendo verdade, a realidade é mais profunda.

Podia dizer-se que o problema é do governo, da oposição, das cabeças profissionalmente cuspidoras de opiniões que ocupam cadeiras no Largo do Rato, mas não acaba aí. Esses, todos os que lá estão, não são menos do que um reflexo daquilo que vemos no dia-a-dia, de pessoas que, nas suas vidas comezinhas, só olham para o seu umbigo.

A empatia parece estar em desuso. A menos que seja em comentários com emojis nas redes sociais e em quantidade de likes. E mesmo aí, só em causas desgraçadas em que o manifesto pela pena se enaltece para mostrar como cada um se condói com a dor alheia, num: olha para mim, que sofro tanto por este pobre.

Importa o eu, o eu, o eu e depois o eu. O que eu quero, o que eu preciso, o que eu desejo, o que eu mereço, o que eu tenho direito. E travamos naquilo que eu tenho dever, porque o dever obriga a algo que custa e então esse pode ficar fora da lista.

Vivemos numa constante guerra de posições, em que não se assiste ao esgrimir de argumentos informados e à análise de factos de fontes credíveis. Em vez disso transformam-se opiniões em dogmas e procura-se o porta-voz mais incisivo para transportar a mensagem.

As pessoas não conversam, porque conversar pressupõe, mais do que falar, escutar o outro. E a única coisa a que se assiste é a gente que só se ouve a si e a quem fala palavras iguais às suas.

As notícias são sensacionalistas e sanguinárias. Os jornais lutam pela capa que mais indignará quem passa. Para que fique para ler as outras letras grandes sem nunca chegar às mais pequenas. Evita-se o enfadonho. Os factos. Aqueles que permitem desconstruir a indignação que incendiará o dito envolvimento. Sem envolvimento não há comentários nem partilhas, não há um propagador de informação (distorcida ou não) para ocupar o pódio.

As pessoas procuram a lado criticável de cada notícia. A vida vai mal, vai vazia, vai sem a praia de águas cristalinas e pior do que isso, num emprego que detestam, com horas a fazer o que não lhes apetece.

Por isso importa que a Maria não estivesse feia que chegue a sair da maternidade. Que a Josefa não tenha conseguido perder o peso e já passou um ano desde que pariu. Que a saia da sicrana era curta para ir a igreja. Só se vê ladrões, assassinos e incompetentes, seguindo-se a nota de que: as pessoas são burras, votaram neles. Nota esta, frequentemente proferida por quem, tantas vezes, nem se levantou do sofá para pôr a cruzinha no papel.

A mixórdia é tanta e tão vasta que vai do momento a que se pede uma bica até à altura em que precisamos de uma ambulância para ir às urgências.

É o carro que ocupa o lugar do portador de deficiência. A mulher que vê uma grávida atrás de si e desvia o olhar para que não tenha de lhe dar a vez. O carro que se para no meio da estrada porque dava muito trabalho andar dois metros. O carrinho de compras que fica por arrumar no meio do parque de estacionamento.

Todos, à sua forma e num determinado contexto, somos reféns da precariedade das nossas condições. O médicos e profissionais de saúde que arriscam em decisões possíveis (ou impossíveis) porque o desgaste é imenso e não há mãos a medir à quantidade dos que pedem ajuda para os que os podem ajudar. Os professores que ensinam como podem, tantas vezes de opinião cerceada, porque o governo quer estatísticas e os pais querem filhos perfeitos. Os pais que desesperam para ter quem cuide dos filhos, porque as férias de verão são quase três meses e os pais mal têm os 22 dias, já que uma parte desses acabam sempre gastos para resolver burocracias, muitas delas, justamente relacionadas com os filhos.

Damos atenção superficial a tudo e não avaliamos nada com o detalhe que lhe merece. Estamos sempre com pressa para voltar para a nossa vida ou para a próxima notícia cor-de-rosa. Queremos saber o que esta página disse e o que aquela influenciadora achou. Porque se alguém achar por nós não temos de perder tempo a pensar na nossa própria posição e perceber, tantas vezes, que gastamos tempo com o que não o merece, que apontamos o dedo acusador de forma implacável sem nos colocarmos no lugar do outro.

E nesta dança deixamos de querer saber dos outros. Ou queremos, mas só se for para lhes pontar o dedo. Tem de haver sempre um culpado. E às vezes o responsável somos o aglomerado que dá pelo nome de todos-nós.

 

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