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Exercício de escrita

Seis

13.11.22

Ter filhos é, tantas vezes, deixar para depois o que queríamos fazer hoje. É repensar planos. É organizar a vida em função deles. Mesmo quando os planos não os incluem envolvem sempre a logística dos filhos, quem fica com eles, a chamada para saber se estão bem, o telemóvel perto para qualquer urgência, a estranheza inicial do silêncio imposto pela sua ausência.
É desejar que aquele dia em que vão dormir aos avós chegue depressa, porque o cansaço é muito e a necessidade de silêncio é tanta, mas depois, quando a casa só tem os barulhos inusitados que parecem sair das paredes, reina um sentimento de falta como se alguma coisa estivesse esquecida. Abre-se uma garrafa de vinho, prepara-se o comer (aquelas iguarias que não se fazem quando eles estão em casa porque isto e aquilo tem este e aquele aspecto e sabe invariavelmentea a cáca), liga-se a televisão, o que de lá sai ocupa o pensamento e os filhos só voltam ao caminhar para a cama, quando não há quem precise de comandos para lavar os dentes.
Podia continuar, para aqueles dias em que até se organiza um jantar especial, só com os crescidos, finalmente sem os: come a sopa, deixa a tua irmã, apaga a luz do quarto da casa de banho da sala da cozinha, desliga o tablet, vem para a mesa, já te chamei dez vezes. Esses dias, mais raros do que deviam ser, em que, enquanto se comem as entradas e se espera pelo menu, se fala dos filhos quando se orquestrou toda uma logística para se estar meia dúzia de horas sem eles.

Cinco

12.11.22

Puta que pariu a "fruta da época". As viroses, micoses, merdoses que espetam com os miúdos em casa a torto e a direito. Narizes ranhosos, tosse que não deixa dormir, xaropes, termómetros, paletes de lenços de papel, olhos a lacrimejar, a tristeza de não poderem estar em momentos por que esperaram tanto. O magusto com os amigos da escola. O passeio à quinta pedagógica. O aniversário de um amigo. A ida ao teatro. O seminário da atividade desportiva. Este ano já perdeu três destas coisas. E nós, os crescidos, vamos estando de olho nos narizes, nos medicamentos e na febre enquanto damos o colo e o ombro para amenizar a tristeza das coisas boas que ficaram por fazer.
São viroses, micoses, merdoses tacanhas, sacanas, parece que estão à espreita e aparecem sempre nos dias por que mais esperam, quase de propósito. Tivessem as viroses, micoses, merdoses focinho e era certo e sabido que comiam com dois rotativos nas ventas, estilo Bruce Mãe Lee.

Quatro

11.11.22

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Gosto de castanhas de qualquer modo. Cruas. Assadas. Cozidas com erva doce. Piladas, daquelas que partem os dentes. Gosto do cheiro das castanhas assadas porque me fazem lembrar momentos bons da minha infância. Os cones feitos de folhas das páginas amarelas com meia dúzia de castanhas e a minha mãe danada com o vendedor quando metade tinha bicho; a minha mãe satisfeita com a honestidade do vendedor quando as seis castanhas estavam boas.

Ontem fui comprar castanhas. Caríssimas. Na banca, metade delas estragadas. Eu que tempos a escolher castanha a castanha. A apalpá-las como os velhos apalpam as mangas, até as deixar em estado pré-batido. Uma mão cheia para mandar para a escola. Dia de São Martinho. Iam assar as castanhas que os meninos levassem e eles, em vez de contas e cópias, iam saltar à corda e fazer gincanas. Mas cá em casa apanhou-se "fruta da época" e entre lenços e xaropes, houve quem ficasse em casa, triste, a dizer mal da vida, porque até tinha as castanhas para assar, aquelas que não ia comer, ia distribuir entre os amigos. Todos os anos prova, esquecido ou na esperança de que o palato mude, e depois diz: mãe, não gosto assim tanto.
Então prometi-lhe que faríamos biscoitos da avó (sou a única que come castanhas cá em casa), daqueles que borram as mãos de tal forma que ao terceiro ele me diz: mãe, tu tens mais jeito. Uma forma delicada de me dizer: faz lá mas é tu isso.
Depois decidi que me safava melhor com umas bolachas mais simples e fiz umas mesmo saborosas do @opecadomoraemcasaoficial (metade do tabuleiro já foi).

De volta às castanhas. Segui as dicas da Filipa Gomes à risca e ficaram uma delícia. Papei-as todas. Não sabem ao mesmo que as da minha mãe, não sabem às que o vendedor assa e embrulha nas folhas de jornal (não podem saber ao mesmo porque o fumo não se entranha na roupa enquanto espero e as mãos não ficam negras da tinta do jornal e das castanhas sujas da cinza do carvão), mas sabem a esta minha família e às coisas que fazemos juntos.

Três

10.11.22

Alguém me consegue explicar o que raio se passa com este tempo? É suposto passarmos o natal de blusinha de manga curta? Se assim for, que é que faço eu aos pijamas de estampado natalício, todos polares, que ficam na gaveta à espera de dezembro? E é suposto comermos ceviche e saladas frias em vez do bacalhau com grão e couve que aquece a tripalhada? Querem lá ver que empurro as passas com um mojito.

Estamos a meio de novembro (mais coisa, menos coisa) e ainda há dias de calor em que estar ao sol de manga comprida é um desafio.

Posso ou não posso desempacotar as roupas quentes? Começo a ficar arreliada com isto. Até porque a miúda tem casacos mesmo lindos para estrear e não posso deixar aquilo para o ano que vem.

Não que eu goste particularmente das estações frias, mas gosto de saber com o que é que conto. Ter uma certeza mais ou menos absoluta de que amanhã posso sair à rua de manga cava ou preciso de chapéu de chuva.

Esta segunda choveu. Na terça também. Na quarta cairam uns pingos e voltámos ao tempo solarengo. No meio disto tudo vejo-me à rasca para saber o que vestir à pequena. Duas peças? Uma peça? Posso comprar babygrows fofinhos ou ainda devo apostar nos mais finos? É que estamos a levar com a inflação e com o sacana do tempo em simultâneo e uma pessoa não pode andar a investir em roupa mesmo quentinha de 3 a 6 meses e depois pôr para dar ainda com a etiqueta porque o sacana do tempo quer estar quentinho.
Até o mais velho anda farto disto, tem o quispo novo no armário e não há meio de o vestir, logo agora - diz ele - que tem um quispo com mangas de super herói. Seja lá o que isso for.

Olhem, vai-se aproveitando para umas caminhadas e para tirar umas fotografias com uma luz mesmo boa. Até parece que a pessoa sabe o que está a fazer.

Dois

09.11.22

Coloque-se em posição de agachamento. Isso. Agora pegue no haltere com a mão direita e levante o braço acima da cabeça. Boa. Toque com a mão esquerda no calcanhar direito e faça força nos glúteos. Excelente trabalho. Este treino é ótimo porque trabalha upper body, lower body e core. Faça 5 sequências de 10. Não são mais do que 15 minutos e fica com um treino completo para o dia. Qualquer pessoa tem 15 minutos. Não há desculpas para não treinar.

Só que há. Não desculpas, mas razões. Este parece ser o discurso de quase todas as páginas de treino que encontro. Cada exercício a tentar espremer a maior parte de grupos musculares possíveis, tudo para esmifrar um treino completíssimo em menos de um quarto de hora. Até aqui tudo bem, se eu puder ficar mesmo boa em 15 minutos escuso de correr 1 hora. O problema é que não estamos a falar exatamente de 15 minutos, não é? Já que o treino até pode ser rápido, mas a logística em torno do treino é implacável. Em princípio (a menos que seja PT) não ando sempre de roupa de desporto, o que significa que, para treinar vou precisar de trocar de roupa e aqui temos logo, na boa, uns 5 minutos. Depois de acabar o treino, é conveniente - para bem do asseio e da convivência em sociedade - que tome um banho e troque de roupa para algo limpo e que cheire a lavado. Temos logo mais 15 a 20 minutos. Ora, tudo somado, já vamos em 35 a 40 minutos. Isso já é tempo mais difícil de esgueirar num dia.

Dizem que o melhor é deixar o treino despachado logo de manhã, e idealmente é verdade, mas para quem já se deitou fora de horas porque teve de preparar o dia seguinte, para quem não dormiu a noite toda porque os miúdos acordaram, não é assim tão simples acordar meia hora mais cedo. De mais a mais, as manhãs já são caóticas que chegue, a despachar pequenos-almoços e marmitas, a garantir que as malas estão prontas para a escola e que levam peúgas da mesma cor. O treino sabia bem depois desta azáfama, mas nessa altura já está a pessoa atrasada para chegar ao trabalho a horas.

A hora de almoço também é uma hipótese, mas lá está, é uma escolha: comer ou treinar. Porque existe um limite para o que se consegue fazer em 60 minutos. Para não falar que, quem tenha que se deslocar ao ginásio tem de acrescentar ainda mais uns 15 minutos para o caminho. Ou seja, nesta proposta temos fome e treino para chegar ao treino. Quando a pessoa pega nas tarefas de tarde já está de tal forma elétrica que é possível carregar um Tesla se lhe espetarmos com a ficha no reto. É experimentar.

Ao final do dia também dá, mas é menos aconselhado porque a vontade vai diminuindo. Dizem. Não é a vontade que diminui, são as tarefas que se acumulam, porque é preciso despachar banhos, garantir que os TPC são feitos e que há jantar na mesa.

Sobra aquela hora tardia antes de dormir, quando a pessoa finalmente suspira porque está toda a gente a descansar e talvez consiga ir tomar um banho sem ter filhos, tarefas ou o relógio à perna, a última coisa que precisa é de correr o risco de deixar cair a porra de um haltere e acordar alguém. Para além do que, o que sabe realmente bem, é agarrar num livro e ler meia dúzia de páginas para exercitar o cérebro ou adormecer a ver uma série enquanto se baba ligeiramente para o lado.

Dito isto, sim, os treinos são bons. Tenho muitos guardados nos meus favoritos do Instagram. Uma vez por semana, com sorte, lá faço um. Quando alguém fica com os miúdos e eu finjo não ter filhos e troco o aspirador (apesar de o chão estar uma miséria) pelos halteres.

Lá está, não há desculpas, é um facto, porque há razões e essas variam com a vida de cada um.

 

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1

08.11.22

Primeiro estavam a chegar ideias como pessoas às finanças logo de manhã a ver se arranjam senha. Eu com a pequena ao colo, incapacitada de anotar em papel ou no telemóvel. É sempre assim, as besteiras que escrevo começam a escrever-se na minha cabeça nas alturas menos oportunas. Mas tarde, depois de resolvida a questiúncula doméstica, sento-me para transformar éter em conteúdo e tudo o que lá está já se esfumou. Eu incapaz de voltar à sequência de palavras que me estava a soar tão bem, isto quando ainda me lembro do tema.

Há dias ocorreu-me uma ideia para uma história. Apontei à pressa os traços principais. Tudo no bloco de notas do telemóvel, sentada na sanita. Matutei onde havia de arranjar tempo para tal empreitada. Estar em casa com uma bebé dá – aos outros – a ilusão de que o tempo sobra, de que se conseguem criar rotinas para ter um tempinho para isto e outro para aquilo, mas a realidade é que estou sob o jugo de uma patroa implacável, que até interfere com as minhas idas à casa de banho.

Pus de parte a ideia quando percebi que, sem cabeça e disponibilidade, não conseguiria dedicar-me a fazer uma coisa com qualidade, tive uma daquelas conversas existenciais comigo mesma e conclui que há tempo para tudo e quando for tempo disso, tenho de pôr falangetas ao trabalho.

Arrumado esse assunto ocorreu-me fazer de Miguel Esteves Cardoso, não na qualidade da escrita, porque isso por mais feijões que coma não lá chego (mesmo que inclua a ingestão da lata), mas na periodicidade. Há anos que o MEC escreve diariamente para o Público. É exercício de escrita, é desabafo, é uma forma de pôr um pé no mundo onde circulam pessoas crescidas que não me gritam para lhes trocar a fralda ou dar mama.

Serve assim a presente missiva para dizer que tentarei (pelo tom até parece que alguém me pediu) escrever (e publicar) um post por dia, ao final da manhã. Sobre o quê não sei. Prova disso é que queria começar o primeiro com uma coisa inteligente e depois saiu isto. Até quando também não me ocorre, mas se chego aos 40 sem uma legião de seguidores, que fazem tudo o que eu digo, clamam por mim e já não conseguem viver sem ler o que escrevo, sou pessoa para fechar a barraca.  

 

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As histórias que não se contam, de Susana Piedade

07.11.22

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Apaixonei-me pela escrita da Susana Piedade quando li o Três mulheres no beiral (o seu livro mais recente e finalista do prémio Leya). Como me acontece com os escritores que me prendem não só pela história, mas pela forma da sua escrita, decidi ler todos os livros Susana. Assim tratei de comprar o primeiro (este, também ele finalista do prémio Leya).
Este As histórias que não se contam está, diria, dolorosamente bem escrito. Digo dolorosamente porque são história que doem e que marcam o leitor, não só porque sei que são tantas vezes reais, mas porque o detalhe me fez tocar no pior dos meus medos.

Não é fácil ler sobre uma mãe que perden um filho quando temos um bebé de semanas ao lado. A vida fica em perspetiva. Chatear-me com o mais velho por causa de um quarto desarrumado e voltar para o meu livro, terminar um capítulo com a sensação de que me desgastei com o que nao importa.

Os livros bons são assim, contam vidas que nos fazem pensar, dão-nos perspectiva, fazem-nos crescer e aprender com os sucessos e as derrotas de quem está dentro das suas páginas disponível para contar uma e outra vez a sua história.

 

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Calçada para que te quero

07.11.22

Se me perguntassem o que é que faz mais falta em Portugal eu responderia: calçada portuguesa. Acho que ainda não há suficiente. Para quê uma autoestrada bem alcatroada que depois tem de levar tapete novo de xis em xis anos, quando podemos ter tudo em calhaus. Lisboa-Algarve em pedrinhas que até permitem fazer desenhos mesmo magníficos para entreter os pneus que tantas vezes se aborrecem com alcatrão-alcatrão-alcatrão. Três faixas para cima, três faixas para baixo e ainda se fazia com as pedras que sobrassem um percurso pedonal porreiro para quem quisesse ir a pé. Na autoestrada não há gajas de saltos altos para estraçalhar os sapatos e em princípio a malta das cadeiras de rodas também vai de carro, de maneiras que ficava só beleza e qualidade de produto. Como se não bastasse, o trepidar ainda punha aqueles aceleras a fancos, que isto de fazer trezentos quilómetros em cima duma espécie de martelo pneumático em velocidade baixa, massaja as ossadas e faz com que uma pessoa tenha mais atenção a carregar no pedal direito.
Aqui perto de minha casa, a Câmara, que tem olho para o futuro, já mandou fazer um percurso pedonal de um quilómetro e tal todo em calçada. Ali, mesmo bonita, as pedrinhas todas alinhadas, uma riqueza. É certo que algumas já saltaram do sítio, mas cheira-me que não foi falta de qualidade do trabalho realizado, é por demais evidente que foi um morador que, ao ver uma raposa das arábias na mata em frente, decidiu, e bem, sacar um calhar emprestado para acertar o bicho na mona, já que toda a gente sabe que isso é bicheza que finfa forte nas galinhas c'agente não tem nas cidades.
A colocação da calçada custa um bocado de dinheiros e por isso foi preciso fazer o passeio estreitinho, o que é também é bem esgalhado, porque incita o morador ao minimalismo e a manter um corpo esbelto para lá caber. É muito bonito ver os cidadãos, uns para lá, outros para cá, sem espaço para passar em simultâneo, o que obriga ao entabular de meia dúzia de palavras constrangedoras e desnecessárias para decidir quem passa primeiro. Como se todas estas vantagens não fossem suficientes, também os possuidores de cadeiras de rodas ficam a ganhar, já que desta forma asseguram o treino do condutor habitual da cadeira, evitando que noutras circunstâncias mais relevantes empurrem o portador de deficiência como se este estivesse ébrio. Não queremos isso. Senão como é que ele depois faz o quatro se a policia o mandar encostar? Pois é. Já quem empurra não fica de mãos a abanar, até porque tem de agarrar nas pegas da cadeira e, sempre que se depare com um cadeeiro de rua, pode aproveitar a ocasião para um micro treino de upper body fazendo a cadeira descer e voltar a subir o lancil.

Até as mães têm o que agradecer, uma vez que podem passear os seus bebés nos carrinhos preparando-os para a trepidação da vida. Chega de bebés confortáveis em pisos lisos. Passa uma má mensagem para a geração futura, como a de que se podem fazer as coisas respeitando as necessidades de todos e conferindo comodidade para toda a gente em vez de fazer como sempre se fez apesar de estar mal feito.

A minha proposta é falar com a Úrsula e redefinir a forma como vamos receber a verba da bazuca. Em vez de vir tudo em guito, é assegurar que 75% vem em dinheirinho, 20% vem em calhaus brancos e 5% em calhaus pretos, daqueles que depois permitem fazer apontamentos encantadores no chão. Assim pode ser que se consiga pôr o país exatamente como ele devia estar: sem espaço nas cidades e mesmo a jeito para ficarmos escangalhados.

 

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