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Exercício de escrita

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Pequeno conto

03.01.23

Enquanto sorris, perdida na felicidade das coisas simples, derretida com a dança que as sombras da roseira fazem na parede do teu quarto, eu olho-te sem que te apercebas que estou perto. Nos minutos em que balanças as pernas e ofereces vogais ao teatro que se desenha com a ajuda da brisa que sopra lá fora, consigo imaginar a tua vida. Travo no momento em que reconheço que também tu és finita. Imagino-te a andar, a falar, a contar-me histórias enquanto acabo o jantar, o dia em que te faço tranças. O primeiro dia de escola. A entrada para a faculdade. O primeiro desgosto de amor. O primeiro emprego. A casa que compras. O dia em que tens filhos. Os netos que cuido para te ajudar. O dia em que me dizes adeus, cumprindo ambas a ordem certa da natureza. Eu de barriga cheia de ser mãe. Tu de barriga cheia de ser filha.  Choramingas por mim, já não queres conversar com a roseira. Estou aqui, sempre aqui, digo-te.

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02.01.23

Daqui a uma semana regresso ao trabalho. Vou passar a responder a uma chefe que, apesar de ter dentes e ser uma excelente pessoa, é muito menos fofinha que esta patroa que me explora nos últimos quase quatro meses. Vou voltar às diretrizes inteligíveis, com palavras que constam no dicionário em vez de andar a toque de gritos onde primam as vogais de um ser humano pequeno e exaltado.

Vai ser uma semana difícil, repleta de choro injustificado, colo e abraços que se arrastam no murmúrio de quem pede que o tempo se demore só mais um bocadinho.

Sei que será assim porque não é a primeira vez. Sei-o tendo também presente que nesta volta irá doer menos, não porque tenho mais calo, mas porque a malfadada pandemia me trouxe o teletrabalho em força e estarei por perto. Porque em vez de gastar 2 horas em filas deixo-a 2 minutos antes de ligar o computador, abraço-a à hora de almoço e volto a ser dela 2 minutos depois de terminar o dia de trabalho. Tenho essa sorte e não me posso esquecer que a tenho. Porque para muitas mães não é assim. Eu sei. Já me custou antes. Esta licença de tempo nenhum. Dá para ser maior? Dá. Mas esse maior tem um custo e há casa para pagar e comida que tem de se pôr na mesa.

Agarro-me ao saber que vou ser dona da minha agenda. Que vou voltar a planear, pelo menos para aquelas horas, com o prazer de saber que depende de mim cumprir e não de uma chefona de mãozinhas pequenas e trapalhonas que precisa da fralda trocada.

Vou brincando com isto, porque se não o fizer a nostalgia ocupa tudo.

Agora vou ali agarrar-me à minha patroa, mesmo sabendo que o único aumento à vista vem em cocó e no volume de fraldas trocadas.

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01.01.23

Escrevo este texto atabalhoadamente sentada no braço do sofá, de frente para a árvore de natal, cujas luzes já não me dou ao trabalho de ligar, tentando infrutiferamente alienar-me da música que toca na casa dos vizinhos. Anitta com dois tês e uma qualquer espécie de reggaeton. O meu filho já me interrompeu três vezes para me perguntar coisas nas quais não me apetece pensar e de todas as vezes tenho de me esforçar por voltar ao meu raciocínio. Escrevo este texto enquanto espero que chegue a hora de jantar e depois a hora de comer as passas e entrar no ano novo. Chegar finalmente ao alívio do: este já está vamos ver como é o outro. O mundo que me rodeia parece sob o efeito de um anestésico potente, meio impedernido, sem saber a direção. É como se o cérebro se tivesse afogado em sonhos e rabanadas e na semana entre o natal e o ano novo só se conseguisse manter à força de Guronsan.

Escrevo este texto sabendo que o vou publicar no primeiro dia do ano. Escrevo-o com antecedência porque não gosto de sentir que tenho tempo de sobra e porque no primeiro dia do ano tenho a casa para aspirar e os confetis, que deixo o miúdo espalhar, para apanhar do chão.
São trezentos e tal dias novos que me dão a mesma sensação de uma mala nova ou uma roupa por estrear.
Conto escrever muito e ler outro tanto. Conto guardar e registar as coisas pequenas que faço com os miúdos, aquelas que a cabeça tende a esquecer, aquelas que um dia vão fazer falta. Conto esfalfar este pandeiro para arrebanhar umas boas nalgas de verão. Conto não perder os berlindes que tanta falta me fazem.

Por aqui conto publicar diariamente todo este ano, arriscando um compromisso de escrita como o do ano passado mas mais extenso. Conto, lá para fins de janeiro, ter uma coisa preparada para quem lê o que escrevo e gosta.

Por isso é isto, este é o 1 de 365. Vamos ver como corre. Conto convosco desse lado?

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