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Exercício de escrita

57

24.03.23

Enquanto como esta tacinha de estrelitas, procurando confortar o corpo cansado com sabores da minha infância, do tempo em que era cuidada em vez de cuidar e em que à sexta-feira, depois de terminados os trabalhos de casa, tinha direito a uma tarde de Pequena Sereia, Cocktail e Dirty Dancing, vou tentar a minha sorte a escrever alguma coisa, apesar de ter apenas uma hora de sono em cima do lombo.

Dou comigo muitas vezes a imaginar a vida em 2050, os miúdos criados, com sorte cheios de saúde, fora de casa, empregados e tendo sido capazes de evitar ocupações laborais menos edificantes, como drogados, proxenetas ou funcionários da EMEL. Imagino-me com tempo para mim, envergando as minhas cuecas descartáveis Tena Lady pretas, as quais, por essa altura, custarão 975 € o pacote de 10 com desconto de 20%. Almejo aquele suspiro de quem sente que fez o seu trabalho – no que mais importa – bem feito, e está agora capaz de gastar o que lhe sobra com coisas que não interessam a ninguém.

Esta noite acordei sobressaltada com um barulho no quarto do Ricardo. Espetei com dois biqueiros ao Nuno e disse: vai lá ver o que se passa com o miúdo. Só depois me ocorreu, quando vi o meu marido quase a cair da cama, que, estando ele a dormir e eu acordada, se calhar tinha sido mais sensato ter lá ido eu.

É quando ouço o xiiiiiiiiii de desespero que percebo que estamos perante merda da grossa. O miúdo tinha-se vomitado. Acordou atordoado e maldisposto e, sem se aperceber como, vomitou o jantar todo para dentro da cama.

Troca lençóis, limpa colchão, limpa miúdo, limpa edredão. Voltámos para a cama eram quase 2 da manhã. Suspirei. A Inês dormia descansada. Ufa.

Estava a acabar de me tapar quando ouvi aquele uuuuuuééééé que parece uma pequena lambreta a arrancar no sinal verde. Afinal a Inês também precisava de atenção.

A Inês acordou de hora a hora, o irmão vomitou pelo menos mais uma vez.

Eu e o pai limpamos, trabalhamos, resolvemos, compramos prendas para amigos, levamos a festas de aniversário, garantimos banhos, tratamos da roupa e das refeições e às vezes só nos cruzamos para passar a estafeta das responsabilidades.

E é assim que eu só escrevo quando o rei faz anos.

56

15.03.23

Às vezes sinto que seria capaz de passar os dias a olhar para os meus filhos. Trago comigo esta saudade de quem sabe que já está a perder para o tempo.

Às vezes, quando passo e eles não dão conta, deixo-me ficar para trás só para os ver existir, no mais puro estado de quem é sem fazer parecer. As expressões no rosto. Os olhos interessados. Os sorrisos que se alimentam apenas daquilo que lhes vai lá pela cabeça. No seu mundo. Um mundo que é só deles e do qual eu farei parte até que me deixem. Minguando no meu papel.
Eles serão sempre as peças principais do meu.

Queria ter uma estante na memória onde pudesse guardar todos os momentos, onde pudesse pôr em pastas os sorrisos desdentados, a alegria na mais pura forma, os primeiros passos, as primeiras gargalhadas, os primeiros argumentos e todos os marcos que, aos poucos, a memória vai reservando de forma esbatida, até que o mais velho pergunta quando lhe nasceu o primeiro dente e eu hesito porque já não tenho bem a certeza, ou quando me pede que lhe conte histórias dele e eu, sabendo que tenho em mim centenas, recordo nitidamente só um punhado.

Depois vou limpar o pó às pastas digitais, e tropeço em fotografias de momentos que já não recordava. A imagem transporta-me para lá e lamento mais uma vez esta incapacidade de trazer tudo o que foi bom à flor da pele.

Agora, sentada na penumbra do meu quarto, com a pequena Inês ao colo numa sesta de sono e mimo, contemplo-lhe o rosto perfeito. Penso na sorte da minha lotaria. Peço à cabeça que guarde comigo esta imagem. Depois decido escrever, para me lembrar das palavras que acompanharam este fim de tarde.