A vida e os apontamentos sobre ela
#2
A minha tia vivia no andar imediatamente por cima do nosso. Nós no segundo, ela no terceiro. Onde era a nossa sala era o quarto da minha tia. Onde era o quarto dos meus irmãos era a sala da minha tia. Um dia, não me recordo a que propósito, fui lá a casa. A minha prima andava às voltas com uma máquina de escrever que tinham dado à minha tia. Eu sentei-me a olhar para ela a fazer de empregada de escritório. Tac-tac-tac-tac-rrrrac, muda de linha. Há qualquer coisa de especial no bater das teclas de uma máquina de escrever, no empurrar da folha para começar uma nova linha.
A minha prima cansou-se e foi fazer outra coisa qualquer. Se quiseres podes experimentar, disse-me. E eu ocupei-lhe o lugar, de joelhos no chão ao lado da portada que dava para a varanda. Estava um dia soalheiro e tudo aquilo me pareceu perfeito. O calor mesmo na medida certa, a iluminação que passava pelos cortinados rendados e chegava à folha. Tive medo de carregar nas teclas, de estragar a folha, de escrever alguma coisa que alguém, depois de ler, achasse ridículo e se risse de mim. Guardei na minha cabeça as palavras que gostava de escrever e fiquei ali, a fazer festas à máquina, pensando que um dia talvez viesse a ter uma minha, onde iria escrever as histórias que quisesse, porque depois guardaria as folhas bem escondidas e estaria a salvo da humilhação causada pela opinião dos outros.
Este dia foi há qualquer coisa como trinta anos. Se fechar os olhos ainda me lembro perfeitamente de como me senti ali. Em paz como em poucos sítios.
Hoje o ridículo não me assusta. Não me apoquenta o que pensam de mim. Talvez tenha sido por isso que fui perdendo o medo de partilhar o que escrevo.
Só ainda não tenho uma máquina de escrever, mas um dia destes ainda compro uma, nem que seja para me sentar em frente a ela nos dias em que a vontade me foge ou que as palavras parecem não se conjugar da forma que as gosto de ver.
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