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Exercício de escrita

A vida e os apontamentos sobre ela

#9

21.03.22

Gravidez não é doença, dizem. Ou diziam na velha guarda para que a mulher cansada e menos disponível não se pusesse com queixumes e lamentos. É um momento especial, tens de ter mais cuidado. Acrescentam hoje, apesar de tantas vezes os comportamentos contrastarem com tais cuidados. Isto porque esse zelo é fundamental e bonito, mas melhor ainda se não incomodar os outros que nada têm que ver com as escolhas dela. Da grávida. A gravidez é um momento especial quando à frente de muitos se quer parecer compreensivo, condoído com a vida de quem está mais frágil. Não é doença quando alguém tem de se levantar para dar o lugar nos transportes, quando perde a vez na fila, quando tem de fazer mais no lugar do outro.

Gente eternamente apiedada desde que não incomodada.

A gravidez descreve um período na vida de uma mulher em que está mais vulnerável, o sistema imunitário mais enfraquecido, em que dorme menos quando precisa de dormir mais, em que o corpo se divide entre responsabilidades e a construção de um ser que ocupa espaço e precisa de tudo o que o corpo tem para dar.

A gravidez, tal como uma impressão digital, varia de mulher para mulher e cada uma conta uma história diferente. A sua. Para umas é uma brisa. Para outras um tormento.

Entristece-me a atitude de alguns homens, de uma condescendência que irrita primeiro e depois vai crescendo, um olhar para a mulher como que dizendo: até parece que as mulheres não têm feito isso desde o principio dos tempos. Fazem-me cerrar os punhos mulheres que nunca estiveram grávidas e acham que sabem muito sobre aquilo que só viram nas revistas, sempre com soluções fáceis, como se a fragilidade fosse uma escolha. Mas são as que já trouxeram vida ao mundo e que se fazem juízas impiedosas que me fazem revolver as entranhas. As que tiveram a sorte de nascer com uma biologia mais simpática e acham que a outras são aproveitadoras. As que passaram mal e que por não terem tido acesso a melhor desejam o mesmo a quem vem a seguir.

Vão havendo melhorias, sustentadas por regras e leis, mas é no tecido social, na forma como se respeita a condição do outro sem imposições, que tantas vezes se vê que as mentalidades ainda têm um longo caminho a percorrer.

Quando penso nestas coisas lembro-me sempre de um episódio que vivi quando estive grávida pela primeira vez. Ainda havia apenas uma ou duas caixas específicas para prioritários nos supermercados. Tinha uma pança imensa e fui comprar meia dúzia de mercearias. Cesto pronto dirigi-me à caixa prioritária. Uma mulher mais ou menos da minha idade viu-me chegar e disse para o marido: depressa, pega no miúdo ao colo. E o tipo, depois de me ver, pegou ao colo uma criança que teria qualquer coisa como seis anos. Poderia ter-lhes explicado que criança de colo não é o mesmo que criança ao colo, mas a estupidez era tanta que não valia o desgaste.

A funcionária olhou para mim, eu fiz-lhe sinal para deixar estar e ri-me. Com aqueles dois energúmenos à frente era mais rápido deixá-los pensar que seguiam vitoriosos e espertos que só eles.

 

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