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Exercício de escrita

A vida e os apontamentos sobre ela

#11

29.03.22

O mundo está a tornar-se num sitio estranho para viver. Às vezes pergunto-me se os meus pais, com a minha idade e quatro filhos também sentiam medo daquilo que os filhos iam apanhar. Lembro-me que se arrepiavam com as drogas, que queriam que tivéssemos saúde e sorte no trabalho, que nos calhasse uma vida com menos agruras. Os meus pais, que chegaram à idade adulta numa ditadura. Os meus pais que nem em casa se sentiam seguros para dizer o que pensavam porque as paredes tinham ouvidos e nunca se sabia quando a pessoa que parecia certa era afinal errada e chamava alguém. Lembro-me da minha professora primária, a Maria Helena, também ela mulher adulta em tempo de ditadura que nos dizia orgulhosa: vocês vão crescer em liberdade, e isso é tão bonito. Lembro-me do dia em que a Maria Helena nos disse que três alunos iam tocar o hino à alegria para o Mário Soares no moinho de maré de Corroios. Lembro-me de treinar como uma louca para conseguir tocar para o presidente. Lembro-me da Maria Helena perguntar se alguém sabia como ele se chamava e de um colega ter dito: então, é o bochechas. Ela riu-se, não o repreendeu e disse: o nome dele é Mário Soares, mas ele não se importa e até acha graça que o chamem de bochechas, porque é assim quando vivemos em liberdade.

Eu só conheci a vida assim. E é essa que eu quero para os meus filhos.

O mundo está a tornar-se num sitio estranho. Há pessoas que não aguentam palavras, há pessoas que estacionam em segunda fila e reclamam quando alguém lhes pede que desviem o carro, há pessoas que andam no meio da estrada porque lhes apetece, há pessoas que reclamam com quem as atende porque as pensam suas serventes, há pessoas que não sabem aceitar um pedido de desculpa porque só conhecem o conflito, há pessoas que acreditam que o mundo pode prosseguir moldado, estéril, inócuo, à sua medida.

Começam a ser muitas pessoas assim. Ou se calhar fazem mais barulho que as outras e por isso avultam a mais.

O mundo está a tornar-se num sitio estranho. Logo agora, que podíamos ter tudo para viver naquilo a que os nossos avós chamariam de paraíso.

 

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