Calçada para que te quero
Se me perguntassem o que é que faz mais falta em Portugal eu responderia: calçada portuguesa. Acho que ainda não há suficiente. Para quê uma autoestrada bem alcatroada que depois tem de levar tapete novo de xis em xis anos, quando podemos ter tudo em calhaus. Lisboa-Algarve em pedrinhas que até permitem fazer desenhos mesmo magníficos para entreter os pneus que tantas vezes se aborrecem com alcatrão-alcatrão-alcatrão. Três faixas para cima, três faixas para baixo e ainda se fazia com as pedras que sobrassem um percurso pedonal porreiro para quem quisesse ir a pé. Na autoestrada não há gajas de saltos altos para estraçalhar os sapatos e em princípio a malta das cadeiras de rodas também vai de carro, de maneiras que ficava só beleza e qualidade de produto. Como se não bastasse, o trepidar ainda punha aqueles aceleras a fancos, que isto de fazer trezentos quilómetros em cima duma espécie de martelo pneumático em velocidade baixa, massaja as ossadas e faz com que uma pessoa tenha mais atenção a carregar no pedal direito.
Aqui perto de minha casa, a Câmara, que tem olho para o futuro, já mandou fazer um percurso pedonal de um quilómetro e tal todo em calçada. Ali, mesmo bonita, as pedrinhas todas alinhadas, uma riqueza. É certo que algumas já saltaram do sítio, mas cheira-me que não foi falta de qualidade do trabalho realizado, é por demais evidente que foi um morador que, ao ver uma raposa das arábias na mata em frente, decidiu, e bem, sacar um calhar emprestado para acertar o bicho na mona, já que toda a gente sabe que isso é bicheza que finfa forte nas galinhas c'agente não tem nas cidades.
A colocação da calçada custa um bocado de dinheiros e por isso foi preciso fazer o passeio estreitinho, o que é também é bem esgalhado, porque incita o morador ao minimalismo e a manter um corpo esbelto para lá caber. É muito bonito ver os cidadãos, uns para lá, outros para cá, sem espaço para passar em simultâneo, o que obriga ao entabular de meia dúzia de palavras constrangedoras e desnecessárias para decidir quem passa primeiro. Como se todas estas vantagens não fossem suficientes, também os possuidores de cadeiras de rodas ficam a ganhar, já que desta forma asseguram o treino do condutor habitual da cadeira, evitando que noutras circunstâncias mais relevantes empurrem o portador de deficiência como se este estivesse ébrio. Não queremos isso. Senão como é que ele depois faz o quatro se a policia o mandar encostar? Pois é. Já quem empurra não fica de mãos a abanar, até porque tem de agarrar nas pegas da cadeira e, sempre que se depare com um cadeeiro de rua, pode aproveitar a ocasião para um micro treino de upper body fazendo a cadeira descer e voltar a subir o lancil.
Até as mães têm o que agradecer, uma vez que podem passear os seus bebés nos carrinhos preparando-os para a trepidação da vida. Chega de bebés confortáveis em pisos lisos. Passa uma má mensagem para a geração futura, como a de que se podem fazer as coisas respeitando as necessidades de todos e conferindo comodidade para toda a gente em vez de fazer como sempre se fez apesar de estar mal feito.
A minha proposta é falar com a Úrsula e redefinir a forma como vamos receber a verba da bazuca. Em vez de vir tudo em guito, é assegurar que 75% vem em dinheirinho, 20% vem em calhaus brancos e 5% em calhaus pretos, daqueles que depois permitem fazer apontamentos encantadores no chão. Assim pode ser que se consiga pôr o país exatamente como ele devia estar: sem espaço nas cidades e mesmo a jeito para ficarmos escangalhados.
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