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Exercício de escrita

Cinco mulheres estavam sentadas...

19.09.21

    Cinco mulheres estavam sentadas numa mesa redonda ao fundo do restaurante. Era sexta-feira e o espaço estava lotado. Apesar disso, porque a mesa ficava num recanto da sala, o burburinho das outras mesas não as incomodava. Quatro das mulheres conversavam entusiasticamente. A quinta mulher estava de costas para uma esquina da sala, numa posição que lhe permitia observar todos os clientes, os funcionários frenéticos para chegar a todas as mesas, a pequena janela da cozinha onde a cozinheira, atarefada, barafustava com duas outras pessoas que não lhe respondiam de volta. A cozinheira seria provavelmente a dona, esposa do chefe de sala, que se mantinha à entrada e estava de olho no moço que preparava as bebidas, o mesmo que bebia um trago de qualquer das garrafas que tinha na mão sempre que o patrão estava ocupado a arranjar mesa para mais um grupo de pessoas. Apesar da vista privilegiada a mulher mantinha os olhos no copo de vinho à sua frente. No rosto um sorriso forçado, daqueles que persistem nos lábios não por vontade, mas por esquecimento. De quando em vez apetecia-lhe chorar e nesses momentos, mais do que em quaisquer outros, forçava mais os cantos da boca, como se, pelo trabalho feito pelos músculos da face, lhe fosse possível transmitir ao cérebro que os olhos estavam proibidos de deitar uma lágrima que fosse. Com o polegar e o dedo indicador a segurar a parte mais baixa do copo de pé alto, rodava o copo e fazia-se atenta às pequenas ondas do liquido.

    As duas mulheres que estavam de costas para o resto da sala aproximaram as cabeças. A que estava sentada mais à direita, de cabelo curto pintado de preto, uma mulher bem vestida que pousara uma mala cara no ombro da cadeira, falava para a que estava sentada à sua esquerda, uma mulher de cabelo castanho claro, longo e ondulado, também ela com uma evidente preocupação pela imagem, mas com um gosto menos requintado. A mulher da esquerda ouviu tudo o que a amiga lhe disse e, depois de beber mais um gole de vinho, lambeu os lábios e acenou afirmativamente com a cabeça enquanto dizia em surdina: é isso, não podia concordar mais. Depois, num ato que se sentiu contínuo, disse para a mulher sentada de costas para o canto: o problema é que te desleixaste, Sara. Nunca tomaste conta de ti e só piorou quando foste mãe.

    Fez-se um silêncio incómodo em que todas beberam um gole de vinho, não por vontade, mas para aproveitarem para avaliar o momento e perceberem para onde aquela conversa ia. A comida ainda não tinha chegado à mesa e até ao momento, enquanto gastavam uma garrafa de vinho como entrada à refeição, era a vida de Sara que estava na boca das restantes quatro, que, apesar de tecerem considerações vazias e comentários que não passavam de chavões e lugares comuns, nenhuma tinha ainda tido coragem de lhe dar a sua opinião sincera. Esta, a mulher de cabelos longos e ondulados, fê-lo por saber que não estava sozinha, que aquela ideia, agora verbalizada, iria ser suportada pelo menos por mais uma.

    Talvez tenhas razão, disse Clara antes de levar o copo à boca para beber o resto do vinho. Depois pegou na garrafa que estava em cima da mesa e voltou a encher o copo até meio.

    Acho que estás a ser injusta, disse a mulher que se sentara ao lado de Clara. A maternidade é uma experiência maravilhosa, mas muito difícil, redefine as nossas prioridades, mas terias de ser mãe para compreender isso, concluiu visivelmente agastada com o tema que todas sabiam não ser novo entre as amigas.

    Não tem nada que ver com filhos ou desleixo, pensou Clara, mas não lhe apeteceu dar justificações da sua vida e deixou que se desenrolasse a conversa. Afinal de contas o que quer que dissesse não mudaria a abordagem das amigas que, por aquela altura já tinham transformado a sua vida num tema delas.

    Ter filhos não é desculpa para tudo e a Clara nunca foi consistente a cuidar de si mesmo antes da miúda nascer, disse a mulher de cabelo longo e ondulado. Para além disso a criança já tem o quê? Cinco anos?, acrescentou olhando para Clara que levantou a mão direita com os dedos afastados em confirmação da idade da filha. Quantos anos são precisos para uma gaja se organizar? Vá lá, Clara, tu sabes que tenho razão. Diz aqui à Luisinha que ter filhos não é desculpa para tudo, rematou, procurando validação na mulher que se sentava ao seu lado direito.

    Clara não disse nada, as amigas tinham as suas próprias quezílias com que se entreter. Clara queria um jantar amistoso, onde não se falasse de temas marcantes, onde os seus lamentos, angústias e culpas diárias não fossem assunto, onde pudessem rir de coisas fúteis e sem significado. Onde não tentassem resolver a sua vida por si tendo por bitola as suas realidades. Mas, se bem conhecia o seu grupo de amigas, já teriam um comboio de e-mails trocados, usando o e-mail do trabalho, parando o que estavam a fazer e tratando da privacidade alheia como um assunto prioritário. No subjet “Nem imaginam” e o incêndio começaria com a frase: eu nem queria acreditar, mas o Miguel e a Clara vão divorciar-se. O segundo e-mail seria a questionar quem tinha deixado quem e o terceiro o porquê da separação. Depois vinha a avaliação.

    Ao perceber que tinha o copo novamente vazio, Clara chamou o empregado, pediu que trouxesse mais uma garrafa igual e aproveitou para perguntar porque razão as refeições estavam a demorar tanto. Estamos com menos uma pessoa na cozinha, lamentamos a demora, esclareceu o empregado, diligente e provavelmente desgastado de plantar a mesma frase em todas as mesas.

    Enquanto rodava o copo vazio, mantendo o exercício em que se aplicara todo o tempo em que ali estivera sentada, Clara, ouvindo as opiniões das amigas, deu consigo a pensar nas bases daquela amizade. Como é que, vinte anos depois de se conhecerem, ainda dava consigo ali, rodeada pelas miúdas agora mulheres, que sempre ditaram frases começadas por devias fazer isto e devias era fazer aquilo.

     Imaginou se seria assim caso a notícia comunicasse a sua morte. Se também nessa ocasião se sentariam juntas num qualquer sítio, regadas a vinho, a encontrar todas as formas de culpa que lhe podiam imputar. O peso a mais, as escolhas menos saudáveis, a melancolia, terminando com um: estava-se mesmo a ver que acabaria por acontecer mais cedo ou mais tarde.

    O jantar acabou e à porta do restaurante, depois de fumarem um cigarro, despediram-se como se tivessem estado a debater a vida de alguém que não iria para casa com toda aquela informação a martelar a sua já imensa culpa. Culpa por tudo o que sabia que podia ter feito melhor e culpa por não saber de que mais sentir culpa.

     O silêncio da casa parecia mais pesado que o batucar de um tambor. Descalçou-se à entrada para não ouvir o som dos seus próprios passos. Entrou na cozinha. Abriu a gaveta dos talheres e tirou uma colher. Foi ao congelador e tirou uma caixa de gelado. Encostou-se à bancada, fitando a parede, enquanto comia colherada atrás de colherada sem dar valor ao prazer da iguaria que se derretia na boca. Tinha passado o jantar a atirar pedaços de comida de um lado para o outro, não estava capaz de comer à frente delas. Elas, que a achavam desleixada, com peso a mais. Elas que tinham soluções. Elas que diriam depois de entrar no seu carro coisas como: viste como é que ela comeu, enfartou-se de pão, não deixou uma migalha do prato.