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Exercício de escrita

Dezoito

25.11.22

Não sei que estratagemas as outras pessoas usam para lidar com a aspereza da vida, para continuarem a andar apesar do que lhes acontece e daquilo a que assistem no mundo. A pobreza, a fome, os miúdos sem família, os sem abrigo aos cantos da capital, os velhos sozinhos em camas de hospital, as maleitas várias, as crianças doentes, os que ficam sem casa, os que este natal vão dizer aos filhos que só têm amor para dar, as guerras, a maldade pura.

Eu gozo com o que me mete medo, gozo para o amiudar, porque sou fraca e choro quando vejo aquilo que jamais devia acontecer mandasse eu no universo, no cosmos e no que mais para aí há. Apresentasse eu um daqueles programas da tarde e já estava atafulhada de medicação para a tola.

Quando não estou a fazer pouco, estou a negociar. Negoceio muito com o nada. Ofereço a minha privação disto e daquilo em troca de que nada falte aos miúdos, em troca de que a vida vá continuando pelo menos como está. Digo: se eu ficar aqui 5 horas sem telefone, televisão, livros ou qualquer outra coisa que me dê prazer, a olhar para o nada, piscando o mínimo possível, a miúda não tem febre. OK? Ninguém responde e eu: Ok, então. Porque toda a gente sabe que quem cala consente. Depois a miúda não faz febre e eu assumo que funcionou, o negócio correu bem. É para repetir.

Faz-me falta um carro novo, uma casa com jardim. Mas depois vem o medo de que com isso chegue um dissabor para puxar o tapete e eu digo para o nada: quero a casa e o carro, mas o resto tem de ficar como está, com os miúdos suficientemente bem para darem cabo de mim exclusivamente pela via de serem chatos.

Sinto que me falta sempre qualquer coisa e essa sensação de insatisfação descansa-me em vez de me arreliar, porque tenho medo que venha o dia em que está tudo perfeito. A sorte não parece gostar de coisas perfeitas, quando as vê puxa o pano e deixa-nos de coração ao léu.

Não sei como é que as outras pessoas fazem para lidar com as agruras da vida, mas eu vou dizendo para o nada: olha que esta merda podia estar melhor. Tenho a ideia que os clientes eternamente insatisfeitos levam sempre o melhor prato, que mais não seja porque quem os atende já está farto de os aturar.

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