Luísa
Parte 1 - Conto
A paragem de autocarro estava cheia, é sempre assim ao final da tarde. Estava um calor abrasador e não havia lugar à sombra, por isso não tive outra solução senão esperar ali, debaixo do sol, para não perder o lugar na fila. Quando o autocarro passa já vem mais de meio e se ficasse para trás ainda me arriscava a perdê-lo e o seguinte ia fazer-me chegar atrasada ao ATL das miúdas. Mais uma multa de atraso, mais uma reprimenda a mãe tem de tentar chegar mais cedo como se eu tivesse a idade das minhas filhas, mais um sapo a engolir porque não me arrisco a responder torto a quem está com elas o dia todo. Quando acontece, peço desculpa, culpo o autocarro. Abanam com a cabeça, dizem pois, sei que entendem, mas também elas têm filhos para cuidar e o jantar para tratar. São as minhas necessidades que batem de frente com as delas. Nesses dias saímos de fininho e descemos a rua, pergunto-lhes como foi o dia e vou pensando em formas para não me atrasar novamente. É sempre mais fácil quando o Daniel está a fazer o turno da manhã ou da noite, porque de uma forma ou de outra consegue estar ali a horas, mas em semanas como aquela não havia outra hipótese, ele ia sair depois das onze e tinha de ser eu a ir buscar as miúdas.
Senti uma tontura e lembrei-me que ainda não tinha comido nada nessa tarde, estava fraca, com a tensão baixa, o sol a torrar-me a cabeça. A ansiedade começou a subir, sentia-me mole por fora e agitada por dentro, era urgente que o autocarro aparecesse, sentia que a qualquer momento ia cair para o lado. Já podia imaginar o espalhafato, uma mulher caída no chão, as senhoras mais velhas a comentar que era a mania das dietas e depois dava naquilo, querem ser as rainhas da praia e depois andam à fome. Revirei a mala à procura de qualquer coisa doce para levar à boca, às vezes as miúdas pediam guloseimas e não as acabavam, essas iam parar invariavelmente ao fundo da minha mala. Encontrei metade de um pacote pequeno de gomas, daquelas que vêm em embalagens grandes. Haviam sido ursinhos coloridos, com um aspeto fofo e apetitoso, agora, depois de aberto o pacote, depois de prensado pela carteira, pelo telemóvel, pelas garrafas de água, era uma mistura de cores coladas, um borrão colorido. Encolhi os ombros e levei-o à boca. De uma forma ou de outra era açúcar.
Sentadas nos únicos lugares disponíveis estavam duas mulheres que deveriam estar na casa do cinquenta e tal, sessenta anos, uma queixava-se do calor, outra das maleitas que lhe iam aparecendo e de como os médicos a desconsideravam. A determinada altura começaram a arremessar amigavelmente as suas desgraças uma à outra, naquilo que parecia uma competição para ver qual delas era a mais sofrida. Dei comigo a pensar se iria acontecer-me o mesmo, se daí a vinte anos eu estaria na mesma paragem à mesma hora, sem o sufoco da escola das miúdas que por essa altura seriam adultas, mas presa na choradeira de uma vida passada à procura de vencer em alguma coisa, mesmo que fosse a jogar ao bingo do mal-estar.
O telemóvel vibrou. Uma mensagem. Era a minha irmã a pedir-me que lhe ligasse. Era urgente.
A saúde da nossa mãe diminuía a cada dia. Mantinha-se maioritariamente lúcida, mas estava fisicamente incapaz de cuidar de si. Quando o tumor foi identificado insistiu que ficaria em casa e que estava capaz de se cuidar. Passou algum tempo em minha casa depois da cirurgia e voltou para a dela, mas com os tratamentos era impossível que a deixássemos por sua conta. Por isso agora passava um mês comigo e outro com a minha irmã. Tinha sido assim no último ano. Com altos e baixos, a entrar e sair de tratamentos. Os médicos diziam que o prognóstico era reservado, uma vez que o corpo não estava a reagir positivamente aos tratamentos. A evolução era pouca ou nenhuma.
- Olá, disseste que era urgente. Passa-se alguma coisa com a mãe?
- Tive de ir buscar a Matilde à escola, estava a escaldar de febre, estamos agora nas urgências. É provável que tenha de ficar pelo menos até amanhã. O problema é que tive de deixar a mãe sozinha por umas horas e quando o Eduardo chegou a casa deu com ela caída no chão. Chamou uma ambulância e seguiram para o Garcia de Orta. Não sei de mais nada até agora. Podes ir para lá?
O meu coração disparou. Presa no autocarro, não podia gritar que acelerasse em cima da ponte, que me deixasse em qualquer lado para que desatasse a correr Pragal acima. E as miúdas? Alguém tinha de ir buscar as miúdas. Alguém tinha de ficar com elas.
Esfreguei os olhos com a mão que tinha livre, estava tão cansada que naquele momento me faltou o medo pelo que podia acontecer. Só mais tarde percebi isso. Reagia como um animal, em modo resolução o tempo inteiro, faz isto, faz aquilo, não há tempo para emoções.
- Vou tentar falar com o Daniel. Na pausa ele vai ver a minha mensagem e vai ligar-me. Pode ser que consiga sair antes e ficar com as miúdas para que eu não tenha de as levar comigo ou de as deixar com a vizinha outra vez.
Era final de sexta-feira. E este fim de semana estávamos a contar descansar. Tínhamos passado o último mês a cuidar da minha mãe.
A mãe acordava durante a noite, desconfortável. Conseguia ouvi-la no quarto à procura de uma posição para estar. O meu sono, que em miúda era de pedra, passou a ser mais leve que o de um pintassilgo. Numa das muitas consultas, o médico que a acompanhava pediu que ela esperasse na sala para que pudesse falar comigo, julguei que era nesse dia que me ia dizer o pior, que o tempo estava contado e que tínhamos de aproveitar o que restava. Não foi isso.
- É notório que a Luísa não está bem. O cansaço transparece no seu rosto. A sua mãe diz-me que tem três netas, são todas suas filhas.
- Não. Só duas. – remexi-me desconfortável na cadeira.
- Tem dormido bem?
- Às vezes. – baixei a cabeça e esfreguei a nuca com a mão direita.
- Vou passar-lhe aqui uma coisa para tomar antes de deitar. A Luísa tem de descansar.
Nessa noite dormi como uma pedra. Quando acordei dei com o Daniel a preparar o pequeno almoço. Estava a pé desde as três da manhã, porque as miúdas acordaram com os gemidos da avó e tinham ido lá ter. Ele, quando foi espreitar o quarto da sogra, encontrou as miúdas sentadas em cima da cama a conversar com a avó.
Nunca mais tomei nenhum comprimido.
Quando o autocarro chegou ao meu destino olhei para as horas e vi que ia chegar a tempo por uma nesga. Menos uma multa, pensei.
Saí do transporte apressada, dei a volta e lancei-me à passadeira. Ouvi uma travagem. Num carro branco, alto, moderno, cuja marca não me recordo, seguia um casal bonito. Ele lançara o pé ao travão para não me atropelar, ela olhava atónita para mim, como se estivesse a ver um animal selvagem na cidade. Ele abriu o vidro e barafustou. Sei que me chamou de estúpida do caralho, que perguntou se não via por onde andava, que não me podia mandar à estrada assim. Sei que o disse porque o ouvia ao longe. Tinha só dois minutos.
As miúdas abraçaram-me. Fiz-me contente. Elas desceram a rua aos pulos. Eu mandei uma mensagem ao Daniel e, só nesse momento de interregno, me ocorreu que podia ficar sem a minha mãe nesse dia.