Luísa
Parte 9 - Conto
O Eduardo chegou para passar uns dias connosco e vinha acompanhado do Daniel. Estávamos na quinta há quase quinze dias e ele ligou-me a dizer que tinha metido férias e que gostaria de as passar com as miúdas. Pelo que as pequenas lhe contavam havia quartos suficientes para que, se eu assim entendesse, ele fosse gerido como um familiar afastado, pudesse estar com elas e não fosse um incómodo.
Percebi que ainda havia ressentimento, mas o tom era mais leve. Mais conciliatório. A distância, dizem, por vezes opera milagres.
Chegaram já passava da hora de almoço, estava um calor terrível, dos dias mais quentes desse verão. A minha mãe mantinha-se à sombra, no alpendre, sentada num cadeirão que trouxemos da sala. Abanava-se com um leque, bebia água fresca e refrescos carregados de gelo. Ria-se a ver as miúdas e, de quando em vez, lá se aventurava a molhar os pés na berma da piscina.
- Não morro sem ir nadar nua. Tenho é que esperar que as miúdas estejam deitadas, não as quero assustar com a inevitabilidade da gravidade no futuro.
Rimos. A mãe, que sempre fez pouco da sua vida, porventura a única forma que conhecia para imprimir algum afastamento da realidade que persistia em magoa-la, reaprendeu a fazer pouco da sua condição. Sempre que passava por ela e a olhava, eu condoída, eu pesarosa, forçando-me a pendurar um quadro daquele momento na minha mente, ela olhava-me de soslaio, como se tivesse uma lista de piadas negras prontas a ser disparadas a cada gesto piedoso ou melancólico.
Quando viu o Daniel sair do carro não se coibiu:
- Ora cá está o rameloso. – disse-lhe enquanto ele subia os degraus para a cumprimentar.
- Pelo menos agora já não escondes o que achas mesmo de mim.
- Não tenho tempo para tretas. Literalmente.
Riram-se os dois.
O Daniel sempre gostou da minha mãe e ela, apesar de lhe custar o que sabia que acontecia entre nós, tinha um carinho especial por ele. Pelo Eduardo também. Tratava-os como se fossem filhos, como se, por serem envolvidos nas asas dela, fosse mais uma razão para que não deixassem o ninho.
- Onde é que anda a tua filha mais velha? Está lá para dentro?
- Estou aqui – respondi da janela por cima do lava loiça – já aí vou, estou só a acabar de lavar a loiça. As miúdas estão na piscina, podes ir lá vê-las.
Estavam divertidos na água. A Carina deve tê-los encaminhado para uma das casas e trocaram de roupa. Vestiram os calções de praia e estavam a lançar as miúdas num concurso de piruetas. Devo ter demorado demasiado tempo a esfregar copos que se sujaram depois de bebermos água. Perdi-me em pensamentos. Detive-me com o que iria achar da minha aparência. Senti-me a mesma mulher ridícula de sempre, aquela que quer que os outros gostem dela antes de gostar de si.
- Então, gostaste do espaço? – perguntei-lhe quando acabara de lançar a pequena e olhava com dificuldade em direção ao sol, o rosto confiante de um pai que não pode transparecer que não sabe o que está a fazer, misturado com o medo de um homem que não sabe se terá aplicado força demais no lançamento de maneira a que a pequena acabasse do lado de lá da piscina aos gritos e a dizer que o pai era um bruto.
- Gostei. – disse-me com as mãos em pala, as sobrancelhas franzidas.
Saiu da piscina para me cumprimentar. Afastei-me. Não me queria molhar. Não queria que pensasse que estava tudo de volta ao normal só porque tinha aparecido. Porque sorria e brincava com as filhas.
- Estás bonita – disse-me – o cabelo curto fica-te bem. E as roupas com cores também. Estás….
- …mais leve.
- Sim.
- É a vida do campo.
- Deve ser.
As miúdas chamavam por ele. Não estavam dispostas e dividir o pai com mais ninguém, já bastava ter de parti-lo ao meio, uma metade para cada uma. Uma metade que mediam constantemente. Veio-me à ideia a pergunta: será que teria sido assim com o nosso pai, se eu e a Carina o tivéssemos tido na nossa vida como as miúdas têm o Daniel?
- Volta para a água, as pequenas estão cheias de saudades, querem a tua atenção.
Ele voltou para a piscina. Eu voltei costas e fui sentar-me ao lado da minha mãe. Ele guardava cuidadosamente as imagens que a vida lhe dava. É um lugar comum, tão comum que persistimos em não compreendê-lo, mas é preciso que o fim se aproxime para que queiramos ver o que está à nossa frente. Peguei no meu livro e fingi que lia a mesma página por mais de uma hora. Por cima das primeiras linhas espreitava o meu marido, que, apesar de infiel, era o homem que amava e perguntava-me se eu seria capaz de esquecer. Porque para continuar é preciso mais do que perdoar, é preciso começar um novo princípio e deixar enterrado o que ficou para trás. Olhava para a minha mãe. Fazia o mesmo que os fotógrafos fazem quando fotografam quem está a fotografar. Queria arquivar na minha memória aquela imagem, que me traria o descanso de saber que os últimos meses lhe deram mais do que alguns anos.
As miúdas foram para a cama cedo. Exaustas.
A minha mãe, depois de tomar os medicamentos para as dores. Não aguentou muito acordada.
A Carina e o Eduardo foram dar uma volta com a pequena, matar as saudades de estarem só os três.
Ficámos nós: eu e o Daniel. Ele encostado de um lado da portada que dava para o alpendre. Cigarro na mão. Eu encostada no outro lado. Copo de vinho na mão.
- A vida aqui é uma coisa diferente. – disse-me.
- É. – confirmei.
- E isto é mesmo do vosso pai.
- Sim. Estás a fazer contas?
- Estou. Mas não são as contas que estás a pensar?
- Então que contas são essas?
Olhou à volta. Inspirou profundamente. Parecia que estava a testar o ar. Apagou o cigarro.
- Este espaço podia ser um negócio.
- Explica melhor.
- Um turismo rural. Há tantos agora. Há procura. Imagina. Há uma casa para a tua irmã. Há uma casa para ti. Há uma casa grande com quartos para alugar. Há espaço. Há piscina. As miúdas podiam ir à escola aqui perto. Conhecer uma vida mais calma, mais simples.
- É uma ideia. A Carina falou nisso no outro dia.
- E tu o que é que achaste da ideia?
- Boa. Mas o pai das minhas filhas mora a mais de duzentos quilómetros de distância e eu não vou afastar as miúdas dele.
- E se o pai das miúdas viesse também? Vida nova. Casa nova. Pessoas (quase-e-com-muitos-defeitos-na-mesma) novas.
Olhámo-nos durante demasiado tempo. Como se estivéssemos a falar por telepatia. Até que ele acrescentou:
- Não a vejo desde que me disseste que nos íamos afastar. Acho que precisava de saber o que era ver-te sair para perceber.