Madalena - parte 5
Acordei mais cedo e fiz panquecas para os miúdos. Estranharam. Durante a semana o hábito era cingirmo-nos ao que fosse mais eficiente, pão torrado, iogurtes, fruta. Aquilo que podia ter em casa, que não fosse enchê-los de açúcar pela manhã. Mas estava para lá de animada, sentia-me como aquelas pessoas que partilham frases feitas. A princípio achei-me imbecil, naquela nuvem adolescente, mas deixei-me ir, há tanto tempo que não sentia os tais arrepios na espinha e uma vontade genuína de fazer alguma coisa com prazer. Estava demasiado presa a cumprir tarefas, a ser a chata que faz o que faz porque tem de ser assim, porque está num regulamento que ninguém encontra.
Os miúdos surpreenderam-se com a mesa posta. Pratos, talheres, sumo de laranja fresco e as panquecas acabadas de fazer. Entreolharam-se, mas não disseram nada. Devem ter concluído que o melhor era aproveitar a onda.
Pensei em pedir-lhes que comêssemos sem tecnologia à mesa, mas sabia que isso iria levantar insatisfações e que a minha boa disposição acabaria amarfanhada como um pedaço gasto de papel, pelo que me limitei a sorrir e a encher de mel as panquecas que comi acompanhadas de mirtilos. Até a comida parecia ter mais sabor.
Trocara mais meia dúzia de mensagens com o Francisco. O suficiente para sabermos que trabalhávamos relativamente perto um do outro e que seria fácil que, a meio da semana, ele aparecesse para bebermos um café. Seria uma hora de almoço mais longa, algo que facilmente se justificaria no trabalho. Dar-me-ia uma apitadela assim que surgisse uma aberta. Pus um lembrete no telemóvel para que logo no início da semana bloqueasse períodos longos de hora de almoço, queria estar disponível - e sem pressas - quando ele me ligasse. Ocorreu-me que estaria a agir como uma mulher demasiado disponível, que, se calhar, o melhor era dizer-lhe que não ia dar no dia em que me contactasse, mesmo que desse, só mesmo para passar a ideia de que não estava ansiosa por voltar a vê-lo. Talvez fosse melhor passar a impressão que a sua presença me era indiferente e que a minha vida tinha outros compromissos muito mais relevantes. Não iria contornar os meus afazeres em torno da disponibilidade dele. O pensamento durou frações de segundo. Acabei por me borrifar para essa condição social, queria vê-lo e não ia estar a jogar a cartada da mulher difícil.
Deixei que os miúdos vestissem o que queriam. Normalmente fazia uma vistoria antes de saírem de casa, só mesmo para garantir que não levavam peúgas desirmanadas ou partes de cima que não combinavam com as partes de baixo. Nesse dia não sei sequer se levavam ténis do mesmo par. Precisava de tempo para estar em frente ao roupeiro e escolher a roupa que me assentava melhor. Precisava de tempo para me maquilhar, para estar embonecada. Imaginava-o boquiaberto ao ver-me entrar no café perto do trabalho, impressionado com o requinte com que ia para mais um simples dia no escritório. Olhei-lhe de roupa interior ao espelho, estupidamente achei que as corridas já estavam a fazer efeito.
Passei uma boa parte do dia a consultar o telemóvel, tantas que a Laura, sempre eficiente no acompanhamento da vida alheia, percebeu rapidamente que eu estava à espera de uma mensagem de alguém. Fez as suas gracinhas, que de início ignorei e que foram gradualmente sabendo a algo mais amargo com o passar das horas.
Fui esmorecendo ao longo do dia. Infantilmente acreditei que ele estaria tão eufórico por me reencontrar quanto eu. Discuti sozinha comigo no carro. Como uma mulher a perder o tino. Cheguei a casa com os pés doridos. Custava-me mais tolerar aquela dor porque não me doía só onde os sapatos apertavam, doía onde não se via, no orgulho que ficara em ferida.
Na segunda não me disse nada.
Na terça também não.
Na quarta senti-me tentada a mandar-lhe uma mensagem, mas contive-me.
Na quinta arranjei-me na mesma, mas prometi-me que, se não dissesse nada, no dia seguinte me ia marimbar para aqueles cuidados todos.
Ao fim do dia sentei-me na cama, ao som da gritaria que vinha do quarto dos miúdos - era sempre o mesmo festival antes de jantar –, tinha subido as escadas descalça com os sapatos na mão, atirei-os para o canto do quarto e agora estava ali, com pena da mulher refletida no espelho. Patética. Dependente. Incapaz de fazer alguma coisa por si sem que a vontade de agradar a outro a impulsionasse. Era por isso que nunca seguia em frente. Criava-me diferente. Caminhava em direção ao que queriam de mim. Queria ser a pessoa que os outros gostavam. Depois cansava-me, porque não conseguia ser o que não sou por tanto tempo. Era nessa altura que a aversão começava, que me rebelava contra quem dizia amar-me, insurgia-me contra as expectativas que eu própria lhes tinha criado. Não me deixava ver porque não queria ser vista, as pessoas que os outros queriam que eu fosse pareciam-me sempre melhores do que aquilo que eu tinha para dar.
Vesti umas roupas velhas e fiz o jantar. Nesse dia, sem fome, enquanto brincava com a comida no prato, entretive-me a ouvir a conversa dos miúdos. Acho que não o fazia com tanta nitidez há muito tempo.
Os miúdos deitaram-se eu, em vez de me encostar à janela com um cigarro na mão, mandei uma mensagem à minha irmã. Perguntei-lhe se lhe podia ligar. Lamentei a hora.
Falámos quase até à meia noite. Ou melhor, eu falei, ela escutou. No fim, sem nunca me pressionar para que desligássemos o telefone, disse-me, sempre sábia e paciente:
- Primeiro tens de saber viver contigo, até lá, será sempre difícil, para ti e para quem quer que seja.
Na sexta, como seria de esperar no mais banal dos lugares-comuns, logo no dia em que fui trabalhar de calças de ganga e cara lavada, recebi uma mensagem. Perguntava-me se conseguiria sair um bocado mais cedo do trabalho, assim teríamos mais tempo para conversar, sem a pressão de regressar para as reuniões e afazeres dos nossos empregos.
Inventei uma dor de cabeça forte e saí antes das quatro.
Por momentos esqueci-me da noite mal dormida. Das reflexões maduras que se apoderaram de mim. Da conversa que tivera com a minha irmã. De repente, voltei ao modo adolescente. Imaginei que acabaríamos nos braços um do outro. Pensei em desculpas verosímeis para ligar ao Miguel e pedir-lhe que ficasse com os miúdos só naquela noite. Assim podíamos ir para minha casa. Consegui ver-me sentada na cama, o corpo coberto apenas pelo lençol, a dizer-lhe que compreendia que tivesse de ir embora. Era complicado.
Combinámos encontrar-nos na Brasileira do Chiado. Completamente fora de mão, mas com uma razão que julguei compreender. Tinha sido ali que nos tínhamos despedido um do outro, fazia quase vinte anos.
Quando o vi sentado numa mesa que estava no preciso sítio onde nos havíamos deixado, tive a sensação de que alguém teria carregado no botão play e o nosso filme continuaria a partir dali.
Levantou-se para me cumprimentar. Dois beijos desajeitados no rosto. Estávamos ambos claramente constrangidos. Parecíamos aquilo que podia apenas imaginar ser duas pessoas que se conheceram através de um site de encontros.
Entabulámos uma conversa de circunstância que serviu apenas para desanuviar. Falámos do trânsito para chegar ali, de como o Lisboa estava sempre carregada de turistas, do preço do café da última vez que lá fui, de como detestava ter de deixar o carro no menos quatro do parque, do preço de assalto por menos de uma hora de estacionamento apertado.
Depois de cumprida a lista de assuntos de supermercado, chegou um silêncio que tinha de ser preenchido. Foi ele que o quebrou:
- Talvez seja importante dizer-te que a Carolina, a minha mulher, sabe que vim beber este café contigo. Aliás, foi ela que insistiu para que nos reencontrássemos e conversássemos um pouco.
Fiquei sem palavras.