Margarida senta-se no sofá e pousa o livro no...
no colo. Haviam sido as amigas a recomendar-lho. Podes aproveitar para pôr a leitura em dia, para relaxares e fazeres alguma coisa por ti, disseram-lhe da última vez que se tinham reunido numa daquelas salas virtuais que vão abaixo em menos de uma hora se não pagamos consumo.
Era verdade, habitualmente fazia pouco por si. Ultimamente ainda menos vontade tinha. Não tinha filhos, não tinha marido, não tinha uma relação estável há mais de dois anos. Os pais eram totalmente independentes e dava consigo a lamentar que nenhum deles precisasse do seu socorro. Queria sentar-se cansada no sofá, ter alguma coisa para contar; que fossem queixumes, daqueles que maldizemos quando os temos e que quando as paredes são a única coisa a fazer companhia tanta falta fazem.
Quando a pandemia chegou foi para casa, ficaria em layoff e depois, logo que se pudesse voltar ao ativo, a empresa regressaria em força. Nessa altura fez pão, pintou as paredes de casa em tons de casquinha de ovo. Uma cor que a enjoa agora que olha para cada esquina, provavelmente um trauma recalcado de quem associa a cor ao desalento da solidão. As videochamadas eram uma graça entre as amigas, tiravam prints dos momentos em que a imagem estagnava e depois aproveitavam para fazer memes com a cara de cada uma. Faziam-nos circular no grupo de Whatsapp que tinham criado para fazer conversa de treta e justificar mais uns intervalos no trabalho daquelas que o conseguiam fazer em casa.
Até os pais aprenderam a lidar com a internet e lhe ligavam para saber como estava. Videochamadas irreprimíveis, com os velhos a aparecer impecavelmente no ecrã, nada daquilo que era retratado nas piadolas que ia encontrando internet afora. Mais uma vez desejava uns pais mais acabrunhados, menos desenrascados, daqueles em que apenas aparecia a testa, dos que procuravam os filhos no ecrã. Uma risada para contar.
Arrumava a casa todos os dias, reorganizou armários numa eficiência tal que sabia de cor onde tinha posto todos os tupperwares e as respetivas tampas. Podia escrever um livro mais eficiente que o da Marie Kondo. Tinha quatro panelas e dois tachos. Deitou fora a torradeira velha avariada que havia pespegado na última prateleira da despensa e nunca mais se lembrara de deitar fora.
Arrumada a casa não havia lixo para tanta disponibilidade para limpeza. Não havia um cão para passear, um gato para cruzar o olhar; não havia pessoas na rua que justificassem tardes à janela para conjeturar para onde iam e de onde vinham. As que traziam sacos tinham ido comprar bens essenciais. As que tinham crianças e cães andavam no passeio higiénico, as restantes facilmente percebia que andavam a trabalho. Viu as séries todas da Netflix, pensou em subscrever a HBO, mas desistiu porque o medo de mais um custo com a redução de vencimento a fez apertar os cordões à bolsa. De manhã acompanhava a secção criminal de um dos programas da manhã, rodava entre os canais, comparava os comentadores.
Comia biscoitos que lhe tiravam a fome para o almoço.
Organizou a agenda para ter o que fazer: ia ler um livro por semana; ia fazer uma hora de exercício em casa; ia fazer receitas saudáveis, daquelas que demoram tempo a preparar.
Não fez nada disso. Pairou pela casa, deixou a impaciência crescer. Não se conseguia concentrar nos livros. Não tinha ânimo para o exercício, deixava os treinos a meio e dava por si a alongar com palitos salgados. Sempre que procurava uma receita saudável, encontrava uma mais rápida e mais prazerosa. Seguia pela última. Dizia a si mesma que começava no dia seguinte.
Quando o chefe marcou uma reunião por videochamada, arranjou-se. Já não vestia umas calças de ganga há mais de um mês. Tinham sido completamente substituídas por calças de fato de treino ou leggins.
Rapidamente se arrependeu.
- Vamos ter de fechar. Terás direito a fundo de desemprego e acredito que vais conseguir encontrar alguma coisa rapidamente.
Margarida não respondeu. Ficou apática. A culpa não era de César. Não era dela. Não era de ninguém. As coisas tinham acontecido assim e era preciso dar a volta. Perseverar, ouvia-se.
Mas era difícil desconstruir ideias quando só as paredes estavam disponíveis.
Com o tempo, a habituação e a repetição, as chamadas com as amigas começaram a ser mais rápidas. Tinham os filhos para atender, estavam fartas do ecrã. Desejavam estar no lugar de Margarida, sem filhos a aparecer não anunciados em reuniões. A ter de garantir que aprendiam a lição enquanto preparavam mais um relatório. Margarida tinha sorte. Não discutia com o marido que também já estava farto de estar em casa. Acabando isto deixo-o, já não o posso ver à frente, havia-lhe dito Lídia da última vez que falaram, logo depois de o marido chamar por ela porque o filho estava a aparecer numa reunião de trabalho importante e ele precisava que Lídia o controlasse.
Margarida passou o polegar pelo livro e fez correr as folhas. Sentiu o vento frio daquele leque. Tinham-lhe dito que era bom, mas não tinha vontade de o ler. Nem aquele nem nenhum.
Ligou a televisão e deixou que a cabeça fosse sugada para um programa de televendas. Jóias.
Alegadamente eram feitas de dezenas de cristais que vinham de sítios que Margarida nunca tinha ouvido falar. Ligue já, ligue agora, já temos poucas peças, dizia a mulher que segurava o anel. Manicura impecável. O anel fez-lhe lembrar uma peça antiga que o pai ofereceu à mãe e que esta detestou. Riu-se. A mãe era tramada. O pai tinha ficado de cara à banda naquele dia.
Repreendeu-se por estar ali há demasiado tempo, sugada num programa que só serve para engolir o dinheiro dos incautos. Voltou a olhar para o livro, ocorreu-lhe que um café poderia desencadear uma ponta de vontade.
Quando voltou com a chávena passou mais uns canais, deu com uma temporada antiga das Kardashians, impressionou-se que hoje, mais velhas, estivessem mais bonitas que na altura.
Deixou-se ficar a ver.