Novembro
Conto
Avisei os miúdos de que precisava de ir à casa de banho, não valia a pena chamarem por mim, estava com uma valente dor de barriga e por mais que esperneassem só ia sair quando estivesse mais aliviada. Pousei o telemóvel no armário onde guardamos os produtos de higiene e notei que o barulho feito pelos miúdos ficava muito mais tolerável quando abafado pela porta fechada. Suspirei, e com os polegares enfiados nos elásticos empurrei até aos joelhos as calças e as cuecas. Sentei-me na sanita e pousei a testa nas mãos. Ouvi meia dúzia de vértebras estalar. Que bem que me sabia. Senti uma comichão na barriga da perna esquerda e percebi que a renda das cuecas estava a desfiar, sem pensar muito nisso puxei a linha e fiz um buraco onde cabiam, à vontade, três dedos. Merda!, disse para comigo, já lixei estas também. Nem uma semana têm. Tinha comprado um pacote de seis no supermercado, daqueles conjuntos em promoção que têm sempre metade das peças em tecido de uma só cor e outra metade num padrão desenhado por uma pessoa vendada. Nunca percebi a razão pela qual se davam ao trabalho de fazer aqueles tecidos detestáveis, era óbvio que ninguém gostava, aliás, era por isso mesmo que as vendiam mais baratas.
Enquanto erguia o tronco para me recostar contra o autoclismo reparei que o rolo de papel tinha acabado. Outra vez! Será tão difícil aprenderem isto? Estava cansada de explicar aos miúdos que quando o rolo acabava tinham de colocar um novo. Olhem, a mãe pôs aqui no armário de baixo para ficarem mais acessíveis, expliquei-lhes. Mesmo assim quando acabava o papel deixavam o rolo de cartão a pendular e nunca se queixavam.
Peguei no telemóvel, não tinha cólica nenhuma, a menos que considerássemos a fartura das pedinchices dos filhos uma tipologia concreta de quase cólica cerebral. Abri o Facebook e comecei a fazer scroll com o polegar. Nada como um pedaço de vida alheia para que nos consigamos alienar da nossa. A minha cunhada havia feito um bolo mármore no fim de semana. Vi que só duas pessoas tinham gostado da publicação e já a imaginava desgostosa pela falta de atenção. Quem não vai ver quantos polegares içados e corações é que ganhou que atire a primeira pedra. Por isso cliquei em Gosto. A Rafaela da contabilidade acabara um treino aparentemente dificílimo. Gosto. Vais chegar ao verão uma brasa, comentei. Uma marca de lingerie com as irmãs Kardashian todas enroladas numa cama alegava conforto e sensualidade, tudo numa só peça. Se calhar devia mandar vir umas destas, em vez de gastar mijinhas de dinheiro com trapos que se descosem em menos de uma semana, pensei. A filha da Rute do Arquivo fazia dezasseis anos, gira a miúda. Gosto. Parabéns à princesa e à mãe. Um dia muito feliz para todos, comentei. Parabenizar os filhos dos outros garantia que quando chegasse o dia dos meus todos se sentiriam compelidos por deixar os seus votos de um dia feliz. Cortesia digital. Mãe, ainda vais demorar?, ouviu-se do lado de fora da porta. Mais uns minutos, de que é que precisas?, perguntei. Tenho fome, posso ir buscar alguma coisa à cozinha?
Podes.
Se eu estivesse ao lado dele ia direto à cozinha e aparecia ao pé de mim a comer o que lhe apetecesse sem sentir a necessidade de aprovação, mas como eu estava ausente no país longínquo do WC, era crucial a gentileza de questionar.
Fartei-me do mural e voltei ao topo da aplicação. Talvez conheças estas pessoas, sugeria. Engraçada esta coisa de ter eletrodomésticos a dar palpites sobre o que comer, o que ver, com quem me dar. No tempo da minha mãe ela carregava no botão da iogurteira e tinha de ir vendo quando estavam prontos os iogurtes, nunca o aparelho lhe disse: olha que acho que já estão, Ofélia. Ainda assim a melhor coisa destas aplicações é que me perguntam coisas simples e agradáveis que eu respondo com a facilidade de um clique. Não me perguntam o que é o jantar, mostram-me ideias para o jantar.
Decidi gastar ali algum tempo a perceber que pessoas é que o algoritmo me propunha como eventuais conhecidos ou amigos. O Jaime, primo da Natália: nem pensar. A Luísa, cunhada da minha cunhada, até já me tinha mandado um pedido de amizade, mas eliminei. Ocorreu-me que na festa de anos do meu sobrinho me abordou para me perguntar porque é que não aceitava o pedido de amizade dela. Mandaste-me um pedido? Não devo ter visto, não me aparece lá nada. Agora não me dá jeito, mas deixa que quando chegar a casa já vejo, fintei. É claro que podia ter consultado logo o telemóvel, mas não estava para isso. Laura Veiga, eu conhecia aquela cara. Conhecia bem demais. Já não nos víamos há mais de dez anos e tanto quanto sabia não tínhamos conhecidos em comum, porque raio é que me aparecia ali agora? Por baixo do nome dizia que tínhamos um amigo em comum, fui ver. O Olavo, marido da minha prima Sara. Era daquelas pessoas com mais de mil amigos nas redes sociais, conhecia as pessoas mesmo que fosse de passagem e, ligação direta, tornavam-se amigos ali também. Aparentemente havia-se cruzado com a Laura.
Entrei no perfil para ver se estava público, a possibilidade de bisbilhotar sem consequências fez-me sentir formigueiro na palma das mãos.
Eu e a Laura fôramos grandes amigas. Quase todo o tempo da faculdade. Não era espalha brasas, mas roubava as atenções. Não se podia dizer que tinha características exóticas ou aqueles olhos cor do mar; havia pura e simplesmente alguma coisa nela, uma qualquer energia que cativava, como se, quando aparecia, gravitássemos em torno dela. Podia não ter nada de interessante para dizer, mas ainda assim todos queriam ouvir o que lhe saía da boca. Sempre impecavelmente maquilhada, com bom gosto na roupa. Não era particularmente inteligente, mas gozava daquele tipo de esperteza que a deixava perceber como devia ajustar o seu comportamento e argumentos em função do interlocutor. Para quem não a conhecia tão bem, parecia sempre tremendamente assertiva, com ideais claros e dificilmente refutáveis. Mas eu, que a escutava a esgrimir razões com este e aquele, percebia as incompatibilidades entre as opiniões que proclamava. A princípio deixava-me embevecida, mas depois, quando me apercebia de que se aproveitava de palavras e raciocínios meus, desejava que se engasgasse, que alguém percebesse o mesmo que eu, que lhe fizessem perguntas para as quais ela não tinha resposta pronta. Mesmo assim, quando esses momentos chegavam, desconversava com o charme habitual ou simplesmente dizia: bom, pareces não estar a entender o meu ponto de vista e eu estou cansada deste tema, falamos de outra coisa?
O perfil estava privado. Que pena! Olhei para o botão deixando que o polegar direito lhe pairasse por cima.
Enviava um pedido de amizade e arriscava-me a que me ignorasse ou que me mandasse uma mensagem daquelas para as quais nunca temos uma resposta adequada? O mais provável era que ignorasse ou que demorasse uma semana a responder mesmo que o visse no momento. Jamais daria a entender que estava com disponibilidade. Metade da importância de quem finge viver num patamar acima é compassar a sua atenção aos outros, porque as suas prioridades são prementes demais para que percam tempo com coisas mundanas, muito menos vontades ou pedidos.
Não enviava e roía-me de curiosidade? Podia ver pela fotografia que continuava muito bonita e cuidada. A fotografia de topo mostrava uma ilha paradisíaca, quem sabe nas Maldivas ou na Polinésia Francesa. Parecia estar bem na vida, Ou tremendamente endividada, pensei de imediato, com um desejo claro de que esta hipótese fosse a verdadeira, dessa forma a minha vida não parecia sem sabor e igual à de todos os que andam em carreiro, seria apenas o espelho do esforço de quem opta por não viver com uma gravata de nó demasiado apertado.
Baixei o telemóvel e olhei para o meu reflexo: sentada na sanita com as calças de fato de treino coçadas enroladas nas cuecas de algodão que agora tinham um buraco, a sweatshirt que tinha sido do Telmo e que agora servia para qualquer um de nós andar por casa, o cabelo por pentear, a cara insuflada por calorias em excesso, as manchas do sol. Com a mão esquerda puxei a pele da cara para trás e confirmei que se conseguisse pôr uma mola de cada lado ficaria com uma aparência muito mais jovem. Só era preciso que as molas ficassem quietas. O arrependimento chegou com a rapidez de um raio. Castiguei-me porque a minha pele estava assim por desleixo, pelo persistente deixa andar, por não ser capaz de perseverar nas pequenas coisas que me propunha a fazer, especialmente quando eram só para mim. Lembrei-me que na maioria dos dias me esquecia de pôr os cremes como a dermatologista recomendara. No plano que pendurara na porta do frigorifico, preso com um íman de Paris, tudo parecia mais rápido e exequível. Tal como o plano nutricional que cumprira nas primeiras três semanas, até me convencer de que um dia por semana para comer batatas fritas era manifestamente insuficiente para a minha vida de desgaste. Não ia ser modelo nem capa de revista, que mal fazia um pouco mais de cobertura em torno do abdómen.
Os miúdos chamaram por mim outra vez. Vi pelo relógio no canto superior do telemóvel que estava ali sentada há mais de meia hora. Cliquei para pedir amizade. Desliguei o telemóvel e quando me levantei percebi que tinha as pernas dormentes e as nádegas marcadas pelo tampo da sanita.
Voltei a consultar a página de Facebook mais três vezes antes de sair da casa de banho, depois de puxar as calças, antes de lavar as mãos e antes de rodar a maçaneta para abrir a porta. O resto do serão revestir-se-ia de expectativa.
Recebi a notificação de que aceitara o meu pedido de amizade já passava das onze da noite. Estava a acabar de ver um programa que tinha gravado quando ouvi o telemóvel apitar múltiplas vezes. Não só tinha aceitado o pedido, como me tinha mandado mensagens. Como se uma corrente elétrica tivesse passado pelo meu corpo, senti-me despertar. Queria abrir a mensagem ao mesmo tempo que sentia um desejo profundo de andar para trás no tempo e evitar a estupidez daquele pedido. De certeza que ela também já tinha visto o meu perfil e porque se acharia melhor não me mandou um pedido a mim, fui eu que dei parte fraca. Sentei-me na cama e fui espreitar a conta dela antes de ler o que tinha escrito.
Publicava com alguma regularidade. Citações. Excertos de textos de autores que eu não conhecia. Fotografias onde aparecia sempre irreprimível, que pareciam ter sido tiradas por um profissional numa sessão para a capa de uma revista.
Encontrei publicações onde defendia as suas convicções politicas, coisa que não tinha quando a conheci, mal sabia distinguir de forma clara a direita da esquerda. Ocorreu-me que alguém lhe tivesse escrito aquelas linhas ou que, tal como sempre fizera, se tivesse apropriado dos ideais de alguém e depois, embelezando as palavras como era seu apanágio, tivesse construído um conjunto de frases que, proferidas por si, para aqueles que se embeiçavam com a sua existência, teriam a doçura do mel. Todas as publicações tinham centenas de gostos e de corações. Como é que pode haver pessoas que amam uma reação politica?, pensei. Pessoas que esperam a aprovação da Laura, claro!
Vivia numa moradia com um terreno imenso e aparentemente não tinha filhos porque a única criança com quem aparecia era a sobrinha.
Depois de ver quase dois anos de histórico ocorreu-me que também Laura poderia estar a fazer o mesmo e que a minha vida nada tinha de glamoroso. Não pude evitar o sentimento de vergonha das fotografias de aniversário do Vasco, tiradas na nossa sala pequena, decorada sem itens de lojas de renome. As nossas férias, sempre no Algarve ou na casa que os meus pais compraram na Amareleja depois da reforma. Os pais da Laura nem devem saber onde fica a Amareleja. A minha vida era pequena e em tons terra, era vista por uma lente pouco lisonjeadora, com má iluminação. Na vida de Laura o sol parecia estar sempre na posição certa para a iluminar no seu melhor lado.
Abri a mensagem:
Laura: Há quanto tempo!
Laura: Espero que esteja tudo bem contigo.
Laura: Vejo que tens dois miúdos giros.
Laura: Eu ainda não tenho filhos.
Laura: Muitos projetos, a maternidade foi ficando adiada.
Laura: Mas estou desejosa.
Laura: Por ter uma menina, uma princesa. Os rapazes são muito estouvados.
Laura: Quero uma cópia minha.
Laura: Devíamos combinar um café um dia destes para pormos a conversa em dia.
Eu: Claro! Parece-me uma ideia fantástica!
O café ficou marcado para hoje.
Usei o cartão de crédito para comprar roupa nova numa loja inacessível para aquilo que recebo mensalmente. Estou à frente do espelho há mais de quarenta minutos a pensar se devo mentir e inventar uma indisposição ou apanhar transportes públicos alegando razões ambientais, para que Laura não veja que o meu carro tem quase dez anos.