O amola-tesouras
Ouço lá fora a melodia inconfundível do amola-tesouras. Coisas de morar na aldeia. Volto imediatamente aos meus sete, oito anos, é verão, estou na marquise lá de casa, os antebraços debruçados sobre os caixilhos das janelas cinzentas que deixarão a minha pele cheia de vincos. Tenho o queixo pousado nas mãos e vejo carros a passar, as vizinhas na azáfama das compras, atarefadas para fazer o almoço com as mercearias que compraram no mercado da vila. Nos sacos saem pelas asas as folhas dos molhos de grelos e das alfaces. Não tenho memória de alho francês ou courgette. Devem ser legumes mais modernos.
O amola vinha numa bicicleta pasteleira muito velha. Tinha sempre a barba grande. Tocava a melodia ininterruptamente. Entrava na nossa praceta, parava no meio da estrada e tocava enquanto esperava que as senhoras descessem com as tesouras para amolar. Naquele tempo, a meio da manhã ou da tarde, havia sempre gente em casa. Não havia praceta dormitório. A minha mãe deitava mão às tesouras de costura e fazia contas à carteira. Levava as que estavam piores, as que já mordiam os tecidos.
Faz sinal ao senhor que espere que eu já estou a descer, dizia-me a minha mãe.
Mas como é que faço sinal ao senhor se ele não olha para aqui?
E lá vinha a minha mãe por trás de mim. Quando ela aparecia ele olhava para a nossa janela e acenava com a cabeça que havia de esperar. Ela descia, lesta, não se fazia esperar quem trabalha. E eu ficava em casa, da janela, a ver como aquilo se dava. Como é que o posto de trabalho de alguém era numa bicicleta.
Nesse tempo os dias eram iguais uns atrás dos outros e os acontecimentos eram se fraca relevância. Por isso, quando aparecia o amola-tesouras com a sua musiqueta era um dia que acontecia alguma coisa. As mães não tinham tablets nem telemóveis para entreter os mais novos e debruçavam-se no maravilhoso método do desemerda-te com a tua imaginação e não partas nada senão levas nas ventas.
E nós inventávamos e às vezes levávamos nas ventas.
Entretanto o amolador já foi à vida dele e eu tenho de me fazer à minha, mas estava bem agora era na varanda lá de casa, a apanhar sol nas trombas sem ter preocupação nenhuma.