Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Exercício de escrita

Quando eu era pequenina

13.05.22

Quando eu era pequenina a minha mãe comprava-me colares de rebuçado no mercado. Quando íamos à praia a senhora passava com bolas de Berlim, línguas da sogra e batatas fritas. Comprávamos sempre as línguas da sogra porque um pacote dava para todos. À saída da praia, a caminho do autocarro, passávamos na banca que vendia chupas de um caramelo que já não encontra agora. Uns pirolitos em formato de cone, uns com papel para proteger a iguaria da areia soprada pelo vento, outros com cobertura de baunilha. Durava até chegar a casa e ao fim do dia ainda tinha caramelo nos dentes. Quando eu era pequenina não sentia o frio do mar nem me fazia impressão a areia na toalha. O protetor não tinha fatores 20, 30 ou 50 e era sempre uma lata de metal de Nívea que se barrava quando, numa avaliação de engenharia doméstica, se concluía que o sol, se calhar, estava mais intenso. Quando eu era pequenina comíamos papo secos comprados no minimercado da frente e quando ficavam duros iam para torradas barradas em Planta que fazíamos numa torradeira com uma porta à frente e outra atrás, com uma patilha preta de lado que ficava quente demais, uma torradeira que não avisava quando o pão estava pronto, que não o tostava dos dois lados ao mesmo tempo e que faria dele um naco de carvão se não estivéssemos a tomar conta do nosso pão. Quando eu era pequenina havia dois e depois quatro canais. O desenhos animados eram poucos então viam-se as novelas brasileiras. Havia a Rua Sésamo ao final da tarde na RTP2, mas eu preferia os filmes da Disney gravados em cassetes que tinham a fita toda carcomida por ter sido mastigada tantas vezes pelo vídeo que, de quando em vez, tinha um amoque. Quando eu era pequenina inventava brincadeiras com as bonecas que tinha recebido no Natal ou no aniversário, tinham de chegar para o ano inteiro. Quando eu era pequenina passeava na avenida de mão dada com a minha mãe, ela falava-me do trabalho dela, das clientes e de flores. Conversava sem condescendência para com a idade que nos separava. Cumprimentavam-se as vizinhas pelo caminho e respondia-se a jeito a todas as intromissões. Quando eu era pequenina comia bollycao e carcaças com Tulicreme. As estrelitas e o chocapic tinham todo o açúcar que mereciam e o Nestum comia-se a seco, com um copo de leite ao lado. Assim mesmo só o farelo. Quando eu era pequenina tínhamos uma agenda verde na mesa do corredor, uma agenda que condizia com o telefone de discar. O mesmo que só dava para levar até à entrada da sala ou de um quarto porque o fio era curto. Imagino o meu filho hoje, a marcar nove números tendo de esperar que a roda voltasse ao início para inserir o digito seguinte. Lembro-me ainda hoje, de cor e salteado, do número lá de casa. Quando eu era pequenina ia brincar para a praceta e voltava quando a minha mãe ia à janela chamar por mim. Quando eu era pequenina gostava de ir passear com a minha mãe à Baixa, de apanhar o cacilheiro, de esperar que saíssem aqueles que estavam apressados para ir para os empregos, de apanhar o autocarro quando tínhamos de ir ao Largo do Rato para uma consulta. Sentia que cirandava pelo estrangeiro. Quando eu era pequenina usava saias de balão e vestidos às bolinhas, totós com elásticos que tinham caranguejos na ponta. Quando eu era pequenina a vida tinha menos logística, havia tempo para pensar, tempo de tédio, tempo para inventar, tempo para não sentir que, quando estou num sítio já faço falta noutro. Quando eu era pequenina passava grandes pedaços de tempo à janela só a ver a vida acontecer, a imaginar de onde vinham os vizinhos ao final da tarde, se os amigos iam aparecer, para onde iriam todos aqueles carros que desciam a rua principal. Quando eu era pequenina a minha mãe não combinava horas para eu brincar com outras crianças, ia para a praceta e esperava que alguém aparecesse. Quando eu era pequenina via a estranheza do mundo, mas não tinha medo dele, porque ia crescer, tudo se ia resolver, eu ia comprar uma casa e até já tinha escolhido os móveis num panfleto que tínhamos lá por casa.

 

Instagram aqui.

Goodreads aqui.

Newsletter aqui.

Podcast aqui.