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Exercício de escrita

Quando o despertador tocou o sol ainda não tinha nascido.

Conto

20.10.21

Uma mulher de cabelo curto e escuro acendeu a luz do candeeiro da mesa de cabeceira, pegou no telemóvel e, com um toque leve do dedo polegar, arrastou uma bola piscante para a direita. O aparelho calou-se. Em cima da mesa de cabeceira estava uma pilha com cinco livros, pela posição dos marcadores estavam a ser lidos a espaços. Todos os livros ofereciam promessas. Atinja os seus objetivos em cinco passos, Como ser mais produtivo, O livro que não vai querer perder para organizar a sua vida, Bons hábitos Pessoas Felizes e A Felicidade está ao seu alcance.

A mulher esfregou a cara com as duas mãos e pegou num dos livros. Passou os dedos pelas folhas, fazendo com que estas soprassem uma brisa na sua direção.

Bom, vamos a isto, disse para consigo e levantou-se da cama.

A sala tinha meia dúzia de móveis, uma televisão, um sofá e um gato deitado lá em cima. O gato semicerrou os olhos, ofendido com a dona que ligou a luz sem qualquer cuidado, encandeando o felino. A mulher pegou no comando e ligou a televisão. Por defeito estava sempre selecionado num canal de notícias, mas naquele momento não lhe apetecia saber como ia o mundo. Queria lixo televisivo.

Ainda de pijama subiu para cima da elíptica, escolheu um programa e começou a pedalar. Olhava para a televisão, mas não via o que estava a passar, a sua cabeça estava noutros sítios, nas suas escolhas, nos seus atos. Naquele momento revivia pela enésima vez a discussão que tivera com uma das pessoas da sua equipa, a frieza com que lhe tinha falado, a inflexibilidade para aceitar uma proposta. Ouvia, como se as palavras estivessem a ser ditas naquele momento, a conversa na sala de café.

Terminado o exercício, foi para a casa de banho. Um duche rápido, os cremes contra o tempo, a roupa escolhida no dia anterior. A imagem de método que tentava impor a si e mostrar aos outros.

Antes de sair passou pela cozinha, ligou a máquina de café, deu de comer ao gato, escreveu um recado que deixou em cima da mesa para que a empregada lesse, tirou um café e bebeu-o encostada à bancada da cozinha. Da janela do décimo andar via Lisboa a acordar, um ou outro carro na estrada, uma ou outra luz acesa nos prédios altos.

No hall de entrada estava uma mesa onde a mulher pousava a mala e as chaves, ao lado uma fotografia onde aparecia com cabelos longos e lisos, muito escuros. Com ela um homem que considerava medianamente bonito e uma criança que ria com vontade de qualquer coisa que o homem lhe dizia ao ouvido. A mulher parou e olhou para a fotografia, passou o dedo indicador pelo rosto da criança, depois limpou a garganta, pegou na mala e nas chaves e saiu.

Quando entrou no escritório ainda não estava ninguém. Era assim que gostava de trabalhar: num escritório fantasma. Sem que entrassem e saíssem do seu gabinete para fazer perguntas, sem que ouvisse os queixumes de quem, na sua opinião, não se esforçava o suficiente.

Em cima da secretária estavam documentos, um computador portátil e um cubo com canetas e lápis. Era a única mesa onde não se encontrava nenhum bem pessoal, que dissesse alguma coisa da pessoa que ocupava aquele espaço. Não havia fotografias de família, nem prémios de lojas baratas dizendo que era a melhor isto ou melhor aquilo, não havia desenhos de crianças, nem o cachecol do seu clube.

As chamadas pessoais eram tidas de porta fechada, sempre com os phones nos ouvidos, sentada na sua cadeira, de cotovelos em cima da mesa, a cabeça baixa e os olhos fechados. Como se quisesse concentrar todos os seus sentidos naquele som.

O telefone tocou e a mulher olhou para o visor. Artur.

Levantou-se calmamente, fechou a porta e atendeu a chamada.

Preciso de saber se vens à festa do Jaime ou não, disse de imediato o homem do outro lado da linha.

Olá, respondeu a mulher.

Letícia, o miúdo faz dez anos e quer a mãe na festa dele, disse Artur num tom impaciente. Caramba, será que não percebes o quanto o magoas quando fazes isto.

A mulher tinha os antebraços pousados na mesa e os punhos, cerrados com força, faziam com que o interior da pele estivesse branca.

É assim tão difícil que consigas mostrar algum amor pelo teu filho, continuou Artur.

Eu amo o meu filho, isso nunca foi uma questão, é ele que não me quer perto e sou eu que não sei ser o que ele quer de mim, respondeu Letícia     numa voz que forçava para ser calma. Apetecia-lhe gritar, varrer com os braços todas as folhas que estavam na secretária, atirar com a cadeira contra as paredes de vidro do escritório, arrancar os próprios cabelos.

O facto de o nosso filho ter preferido viver comigo não faz de ti má mãe. São estes atos que fazem de ti má pessoa, acrescentou Artur. Devias procurar ajuda, falar com alguém, mas tu não aceitas, achas que resolves tudo.

Numa voz quase sumida Letícia disse: os filhos ficam com as mães e visitam os pais um dia por semana e fim de semana sim, fim de semana não.

Essa conversa outra vez, disse Artur numa voz mais baixa, cansada. Os filhos ficam com quem tem mais tempo e disponibilidade, Letícia. Está na altura de aceitares isso. O miúdo precisa de alguém que tenha tempo para ele, de não ser sempre o último a sair da escola porque a mãe ainda acabou mais uma coisinha no trabalho, sabes bem que eu sempre quis mais isto do que tu. Tu sempre foste distante e ele sente isso.

Já sabia que ias começar com essa conversa, disse Letícia suspirando e levantando a cabeça para ver que nas secretárias lá fora estavam a olhar para si e fingiram não estar atentos quando cruzaram o olhar com o seu. Eu queria…, começou por dizer e não conseguiu terminar.

Tu querias sentir-te como as outras mães, ter o instinto maternal que vem nos livros, mas não tens e é importante que aceites isso para teu bem e para bem do Jaime. O miúdo está a contar contigo, faz isto por ele. Já chega que arranjes desculpas para não o ires buscar durante a semana.

Ele não gosta do Jonas, respondeu Letícia justificando a sua escolha.

Ele não gosta do gato, então tu não vais buscar o teu filho. Lindo. E aos fins de semana – poucos - em que ele fica em tua casa e mal lhe dás atenção?

Eu às vezes convido-o para ir a sítios, ele não quer. Comprei-lhe uma Nintendo, achei que ele gostava.

E gosta, Letícia, claro que gosta, disse Artur regressando ao seu estado exasperado, mas ele vai passar os dias contigo e não com o aparelho de jogos. És tu que tens de te chegar a ele. É um miúdo, caramba. É teu filho.

Silêncio.

OK, disse finalmente Letícia.

OK, o quê?

Eu vou.

Do outro lado da linha apenas se ouviu um suspiro e, depois de alguns segundos de vazio, Artur acrescentou: ele vai ficar contente por te ver. E desligou.

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