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Exercício de escrita

Quantos anos dura uma vida?

15.05.21

Dez? Vinte?

Erros. A morte para alguém tão jovem devia ser proibida por uma lei divina, universal, uma impossibilidade científica.

Trinta?

Com a vida por viver. Os projetos quase iniciados, agora a ganhar alavancagem, as frases que se sussurram nos funerais: tinha tudo para ser, uma pessoa dedicada, estava a começar a assentar no trabalho, estavam a pensar em filhos.

Quarenta?

Logo ali, no meio da crise, onde não se é velho nem se é novo. Um número que nos deixa indecisos. O número já vai grande, mas ainda falta muito.

Cinquenta?

Quando já aceitámos as dores e os exames de rotina. Esperamos que os filhos saiam de casa e possamos descobrir quem crescemos para ser, agora que a casa seria só nossa outra vez. O que fazer com os quartos vagos? O que fazer ao tempo sem as tarefas em catadupa? Sem os miúdos a gritar onde está isto e aquilo.

Sessenta?

Os netos pequenos. As trapaças que nos parecem tão mais leves, agora que são eles a perpetra-las. Castigávamos os pais por menos. Muito menos. Tínhamos a responsabilidade de criar um ser decente. Agora essa responsabilidade é deles. Nós pouco estaríamos cá para ver. Íamos passear, mas de vez em quando lá ficávamos a tomar conta dos pequenos porque os pais têm de continuar a ser crescidos. Deixávamos o fim de semana fora para depois e, secretamente, nada lamentávamos.

Setenta?

A idade que já não viste. O par de algarismos redondos que começa com o sete da sorte. Os netos já crescidos, capazes de abraços sentidos, os braços que nos envolvem com a destreza que em tempos nós abraçámos os nossos.

Pregaste-me a mais maléfica das partidas, foste sem mim, antes que eu tivesse tempo de fazer as malas e dizer: espera que se te vais eu vou também. Não fico a fazer nada sozinho. Esta é a tua casa, as tuas assoalhadas, os teus cantos, o teu jardim. Eu moro onde tu moras.

Quantos anos dura a vida?

Há quem diga que não se conta em anos. O que pesa para o cálculo são as experiências, as viagens, aquilo em que arriscámos, os saltos para o mar, os mergulhos na água gelada, a insatisfação permanente que engana a morte convencendo-a de que ainda não acabámos o que temos cá para fazer, só mais um bocadinho.

Só mais um bocadinho, era essa a quantidade de tempo que queria ter-te por cá, sentada ao meu lado, para me dizeres que não devia lanchar uma cerveja com tremoços, que me causa inchaço e faço mal a digestão. Passo mal a noite. Só mais uma pitada de tempo, para me relembrares que voltei a deixar a máquina do café ligada, a luz da casa de banho acesa, as meias do avesso na cesta. Só mais uns instantes, que alongaríamos para dias e esticaríamos para semanas que se transformariam em meses. Para descermos a avenida de braço dado. Tínhamos combinado que o faríamos curvados e eu, ainda que velho, mantenho-me direito. Faltaste ao prometido, como diz aquela música do Rui Veloso, aquele miúdo de guitarra e cantigas que te embalavam.

Quantos anos dura uma vida?

Devia estender-se por tantos quantos preciso de ti a meu lado. Sentada a fazer caretas para o programa da televisão sempre que passavas para regar as plantas.

Vou ao jardim e falo com elas. Deitei cada pedaço das tuas cinzas naquele canteiro, perto dos amores perfeitos, dos brincos de princesa, dos malmequeres. Por baixo das buganvílias. Era ali que gostavas de estar. E ali ficas, a cuidar delas, de dentro para fora, cada dia mais bonitas. Aflijo-me quando as vejo secar, são o que resta de ti e destroça-me ver cair cada pétala. Mas a Primavera trá-las de volta e animo-me. Converso. Pouco, como bem sabes. Mas converso. Falo contigo, mas não respondes e se não respondes não és tu, porque tu, minha velha, sempre tiveste argumento para tudo. Dizia-te duas palavras, fazias correr um rio de assunto.

Os miúdos hoje vêm cá a casa. Eles, os netos, a nora e o genro. Filhos também. Vão sair para o jardim, vão trazer mais flores para que me entretenha. Parece-me que as trazem para ti, mas deixam-nas as minhas mãos, aquele que ainda fala contigo. Ligação privilegiada.

Vão comer, vamos rir, vou olhar para onde te sentavas e sentir culpa pelo meu riso. Vou lamentar não ouvir aquela gargalhada estridente. O nosso mais velho tem isso. Faz-me lembrar-te. E isso, depois de me ter custado, passou a ser bom.

Vou fazer de conta que fico bem, para que sigam descansados. Cumprirei sempre o nosso acordo. Nunca seriamos fardos para eles. Vou dizer que não quero que arrumem a cozinha. Vou entreter-me com os pratos e a esfregona. Vou sentar-me lá fora, contar-te como foi em casa, à mesa, se gostaram do cabrito.

O nosso neto vai para o quinto ano. Os pais cheios de medo.

Lembras-te como foi para nós quando o pai dele mudou de escola? Rio-me. Preocupações de quem não sabe.

Volta o silêncio.

Depois penso, quantos anos dura uma vida?

É que a minha acabou com a tua e estou só à espera que me chames.

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