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Exercício de escrita

Desafio dos pássaros 3.0 - Tema 3

04.06.21

Cinderela estava em frente ao roupeiro, irritada. Agitava-se. Contorcia as mãos. Bufava como se estivesse a tentar apagar uma fogueira. Pegou num vestido que comprou em segunda mão. Um tecido leve, num azul claro que condizia com os seus olhos.

- Não aguento mais contigo! – afirmou, enquanto o atirava para longe.

- Sabes que a culpa não é do vestido, não sabes? – questionou a Branca de neve que lhe dava assistência à escolha da indumentaria, enquanto fumava o seu cigarro à janela do quarto – És muito picuinhas. Para uma reunião de ajuste de detalhes por causa do divórcio havias de vestir uma merda qualquer em vez de estares para aí agastada, mulher!

Cinderela sabia que estava a exagerar, mas queria que Joaquim – conhecido como Príncipe encantado da história da Cinderela pela maioria das pessoas – reparasse nela e sentisse pena pela barriga de cerveja que ganhou.

- Tu devias era arranjar outro gajo, tipo um ginecologista. – alvitrou a Branca de Neve a propósito de nada.

Cinderela voltou-se e cerrou os olhos, interrogativa. Não entendia o porquê daquela conversa.

- Porque raio havia de querer um ginecologista? Ou outro homem, sequer?

- Aí mulher que és lenta para car… - foi interrompida na sua ideia por Cinderela de mão levantada. Sabia ter os filhos sempre à escuta, especialmente quando a tia Branca ia lá a casa e largava bojardas de alhos e bugalhos a torto e a direito – dizia eu, antes de ver o meu raciocínio atropelado pela pudica de serviço: és lenta e devias arranjar um gajo que perceba mais da maquinaria do que tu. Para além disso, com o tempo que ele passa a olhar para centralinas – uma a seguir à outra a seguir a outra - a última coisa que um tipo daqueles deve querer é sair do trabalho para ir afagar chicha que não paga consulta e não faz o jantar. – Branca piscou o olho a Cinderela que por esta altura abanava a cabeça em negação para o disparate que saíra da boca da amiga.

- Só dizes baboseiras, é o que é. O que eu preciso é de estar sozinha, de aprender a viver comigo, de ser uma self made woman.

- Leste isso panfleto?

- Não. – respondeu Cinderela indignada – vi no programa da manhã, aquele com o Baião e a Diana Chaves, que aliás trazia um vestido que ia ficar-me mesmo bem hoje.

Tocaram à campainha. Era a Bela. A tipa divorciada e sabida que vinha aconselhar Cinderela. Prepara-la psicologicamente para aquilo que os bárbaros dos advogados dos príncipes fazem quando elas pedem divórcio.

Entrou no quarto, viu o dilema e disse:

- A Branca tem razão, veste uma merda qualquer que te faça parecer pobre e cansada. Queremos que percebam o que te está a custar.

- Como é que sabes que a Branca… - Bela levantou a mão.

- Poupa-me, este quadro diz tudo. Agora, quanto é que queremos sacar àquele corno?

Desafio dos pássaros 3.0 - Tema 2

21.05.21

A reunião PEE ia ser na casa da Branca de Neve. Ariel foi a primeira a chegar, situação que desagradou a anfitriã, já que a princesa dos mares fazia corta mato pelo Tejo e chegava à Moita encharcada. Os cabelos ainda pingavam bastante e deixavam poças de água por onde passava, coisa que ensandecia a dona da casa, que ainda estava a pagar o empréstimo para obras que usou para comprar aquele chão flutuante de qualidade mediana.

- Ariel, põe-te na alheta para o quintal, serve-te de um conhaque e mete a mona ao sol. A ver se secas essa trunfa farta que até me mete nojo! – Branca de Neve não sabia o que a arreliava mais, se o facto de aquela cabra aquática ter uma vida aparentemente livre de stress e por isso não apresentar qualquer queda de cabelo, se a inocência em vinha de alhos de burrice, que acalentava aquela falta de noção absoluta. Enquanto as outras princesas apareciam com os filhos agarrados as saias, Ariel tinha as irmãs que lhes ficavam com os miúdos. Parou a olhar para Ariel, que estava que cheirava as buganvílias e imaginou-se a acender o carvão e a grelhar-lhe a cauda.

O toque da campainha arrancou-a desse quase sonho. Chegavam Pocahontas e Cinderela, ambas com as crianças agarradas às pernas.

- Meninos, a tia Branca preparou guloseimas e colocou tudo numa mesa no quintal. – a criançada ficou histérica saiu a correr, quais animais selvagens.

- Mãezinhas, conhaque ou Whiskey? – perguntou Branca erguendo as duas garrafas.

- Um de cada. – respondeu Cinderela, sendo que Pocahontas acenou em confirmação de que o seu pedido era igual.

O grupo PEE representava as “Princesas em Estrume”. Mulheres que um dia haviam feito parte do imaginário encantado de muitas gerações e que hoje, depois do pífio “felizes para sempre” viviam enredadas na vida desgastante e comezinha de sempre.

Os príncipes, depois do beijo do verdadeiro amor, queriam ver a bola, evitavam trocar fraldas e achavam que as fases das mulheres duravam muito tempo.

Criaram o grupo depois do divórcio da Bela com o Monstro. Coisa que rolou água já que nas partilhas o tipo não queria rachar 50/50 os bens adquiridos depois do matrimónio.

Ouviu-se algo a apitar.

- Merda, são as bolachas que tenho no forno. Fiz normais para os miúdos e para nós com ervas aromáticas. – piscou o olho. Todas sabiam o que eram aquelas ervas.

Ariel estava a entrar na sala quando sentiu o cheiro e viu Branca passar com uma bandeja de bolachas.

- Meninos, bolachinhas acabadas de fazer.

Ariel esbugalhou olhos.

- Branca, chamon para as crianças!?

Branca nem se deu ao trabalho de responder. Não lhe faltava vontade de os sossegar, mas não era choné para isso. Até porque se um dos miúdos respondesse mal à aromatização, depois como é que se explicava aquilo em contexto judicial?

Foi quando Ariel a viu abrir uma segunda porta de forno que se apercebeu. Muito se cozinhava naquela casa para haver eletrodomésticos em duplicado.

Desafio dos pássaros 3.0 - Tema 1

07.05.21

- Artur Etelvino da Fonseca Matos, desce já dessa estante antes que eu te espete com uma lamparina nas ventas. – gritou Cinderela da cozinha enquanto se esforçava por conter a água fervente que vertia uma espécie de gosma, como se um vulcão em tons de branco sujo se esforçasse por escagaçar o fogão todo. Cinderela, antes donzela bem-parecida, agora mãe cansada a tempo inteiro, estava a tirar do nariz do filho mais novo um berlinde, tendo-se esquecido completamente de que tinha um tacho ao lume.

Artur desceu da estante sem partir nada, mantendo inclusivamente os ossos e dentes intactos, o que, parecendo um exagero da narradora, demonstrou ser uma verdadeira proeza para o petiz que, no espectro da sua fofice, era um exímio profissional do desembestamento.

Cinderela olhou para a casa e ocorreu-lhe apenas a simples frase: um dia passo-me dos cornos.

Brinquedos fora do lugar. O cesto da roupa que aparentava vomitar calças de fato de treino e peúgas com desenhos amarelecidos dos dedos que as tinham calçado. Os miúdos que corriam e batiam contra os móveis. Praticamente selvagens que nem as regras da natureza respeitavam. Cinderela recordava-se de ter visto um documentário sobre hienas onde as crias copiavam os comportamentos da progenitora, respeitando a sua posição. Mas aquelas, as suas, só podiam sair ao pateta do pai.  

Olhou-se ao espelho, a beleza ainda lá estava, mesmo que mais baça, adornada de olheiras fundas e cabelos que não viam escova.

A campainha tocou e apareceu o sapo Jacinto. Tinha ido à cidade para entregar uns documentos nas finanças com vista a pedir uma extensão de prazo no pagamento do IVA, aquele episódio com moscas moleironas afastou muitos clientes do restaurante e as contas andavam pela hora da morte. Quando passou à porta da casa de Cinderela achou que poderia dar um olá à amiga, beber um café e tirar mais alguns nabos da púcara. Afinal de contas, quando um anfíbio se põe à coca numa fila, pode chegar à sua senha com muitas pontas soltas.

- Então Cindy como é que vai isso? Andava pelas redondezas e vim fazer-te uma visita e matar saudades das nossas conversas e dos teus anjos. É sempre um gosto estar convosco. – Jacinto ia falando enquanto entrava e pousava o chapéu no bengaleiro. Falava devagar e olhava à volta, num misto de espanto e susto. A casa estava de pernas para o ar, dois dos miúdos corriam desenfreados pela casa e o terceiro estava ao colo da mãe, que trazia um cigarro por acender no canto do lábio.

- Põe-te à vontade, vou pousar este no parque e fazer um café. MENINOS, VENHAR DAR UM BEIJINHO AO VOSSO TIO JACINTO! – virou costas, tirou o tacho do lume e ligou a máquina de café.

Jacinto esperou que Cinderela se sentasse, acedesse o cigarro e desse a tão necessária passa.

- Sabes com quem estive à conversa esta manhã? Vê bem que encontrei a cunhada da irmã do Válter. Como é que ele anda?