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Exercício de escrita

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21.01.23

Os meus cães são família. Que mais não seja porque nos amam incondicionalmente.

Quer dizer, se calhar a Tulipa não nos ama assim tanto, vai-se a ver e quer mais é mandar-nos para o raio que nos parta. Coitada, velha, com a dermatite que a chateia, surda e de capacete, porque ela não entende bem, mas a gente não pode deixar que ela morder as próprias patas até ao osso. Lá está, em princípio somos nós os racionais, devemos saber o que é que andamos a fazer.

Ter animais de estimação não é sempre uma maravilha. Dão trabalho, despesas, escangalham objetos, roubam comida, fazem xixi fora do sítio, cheiram mal, precisam de banho, enchem a casa de pelos e babam-se depois de beber água. Não há chão que se aguente limpo. Mas depois recebem-nos como se fossemos estrelas de cinema, deitam-se ao pé de nós quando estamos doentes e lembram-nos que, enquanto eles estiverem por perto, nunca estaremos sozinhos.

Podia falar das leis e do quão abjeto é ver-nos a andar para trás, mas em vez disso prefiro falar-vos da Fofinha.

A Fofinha foi a minha primeira cadela, há 31 anos.

Gosto de animais, sempre gostei e, como qualquer criança, queria ter um cão. A minha mãe que não, que era muito trabalho. Mas para atender a um pedido da minha avó – na altura já muito debilitada - os meus pais aceitaram ficar com uma cadelinha abandonada, com poucos meses, que estava abrigada debaixo de uns andaimes nas traseiras da casa da minha tia. Foram precisas 2 horas e uma travessa de carne assada para a tirar do buraco em que estava escondida. Levou 3 banhos e fomos para casa. Eu sentada no lugar do meio do banco traseiro do carro, com a Fofinha sentada ao meu colo.

A Fofinha viveu connosco 13 anos e eu precisaria de um livro para contar a história dela. Mas num resumo muito breve posso contar que me arrastou para dentro de uma vala para se meter na tasca a pedir tremoços, que se sentou à porta do quarto dos meus pais, como uma vela de companhia para a minha mãe nos períodos de quimioterapia. Nunca me deixa sozinha, dizia a minha mãe. E era verdade. Foi por causa dela que eu e as minhas amigas começámos a poder ir para o jardim depois de jantar. Toda a gente sabia que a Fofinha tinha o dente afiado e se alguém se aproximasse só saía dali feito num farrapo. A Fofinha tinha uma dança própria para quando chegávamos a casa, recebia-nos a rodopiar, com saltos de alegria extrema, rodava-rodava-rodava e depois subia para o sofá e continuava a festa empoleirada no braço do sofá. A Fofinha ficava horas à janela a ver as vizinhas passar. Deitava-se ao meu lado, enroscada, ou de barriga para cima para receber festas. Foi a Fofinha que abracei quando entrei em casa e soube que a minha mãe tinha morrido e, em muitos momentos da minha vida, ela pareceu-me a minha melhor amiga.

Aos 13 apareceu um tumor. Depois afinal o tumor era maior e tinha alastrado. Depois afinal era inoperável. Depois afinal nada se podia fazer. Nessa altura eu trabalhava para juntar dinheiro para a faculdade e gastei tudo. Tudo o que tinha para pagar as contas. Mas tudo o que eu tinha não chegou, porque nada mais se podia fazer. Num dia, em mais uma consulta, o dono do hospital veterinário disse que queria falar comigo. Ainda me recordo, ao fundo do corredor, gabinete à esquerda. Disse que era assim, que os animais viviam menos do que nós, que às vezes tínhamos de tomar decisões difíceis. E eu tomei uma decisão difícil. Naquele dia levei a Fofinha para casa. Fiquei acordada com ela. A fazer-lhe festas e a desculpar-me pelo que tinha decidido. Porque se há coisa que ela não merecia era sofrer mais.

Fui de carro sozinha com ela, mas não consegui estar até ao fim, o meu desgoverno era de tal ordem que tiveram de me tirar da sala. Foi a minha prima que a acompanhou.

Fiquei dois dias sem sair de casa. Só a chorar. Doeu-me porque a Fofinha era família.

Tive e tenho mais cães. Talvez por defesa, não sei, nunca lhes senti o mesmo apego. Amo-os tal e qual, mas não são a Fofinha, a minha Fofinha, a mesma que, tal como eu, também tinha o seu tanto de enjeitada.

Até que apareceu o Bob e eu soube que, daqui a uns anos, seguindo a vida o seu ciclo, vou ter um dia de muita dor. Até lá, é aguentar o chão babado e as bufas malcheirosas que ele dá quando está sentado aos meus pés.

Os animais são família e merecem ser tratados como tal. Cuidemos deles, com metade do amor que eles nos entregam e já estamos a dar-lhe uma imensidão, porque metade do que eles amam é muito, já que para eles nós somos tudo.