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Exercício de escrita

As grávidas são uma chatice.

02.06.22

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Vomitam. Enjoam. Metem na cabeça que não comem coisas. Só papam saladinha se tiver sido passada por amukina ou demolhada em água com vinagre. Dizem que é da toxoplasmose ou lá o que é que arranjam para se pôr com esquisitices. Estão sempre enfiadas em consultas e ecografias e análises e o diabo a quatro. Falam em semanas e decoram o catálogo de carrinhos da Chicco para saberem qual das viaturas tem um abs mais adequado para não derrapar na calçada. Queixam-se que a roupa não serve e os pés incham, coisas que se resolvem depressa comprando o número acima. Não gostam do frio, mas passam mal com o calor. Passam à frente nas filas. A pessoa vai comprar dois papo secos, vê a grávida a chegar e pensa logo que está a ser castigada pelo Universo, os olhos arregalam em temor como quem acabou de ver ébola passar. Ficam sempre à espera que alguém lhes ceda a cadeira e ainda têm lugar de estacionamento privilegiado no centro comercial, como se estando elas boas para cirandar de loja em loja, não possam ficar num lugar a duzentos metros da entrada. Demoram a subir escadas. Irritam com aquele respirar ofegante e aquela frase do “deixa-me só recuperar o fôlego”. Ficam com placentas descoladas e com contrações antes de tempo. Têm de ser tratadas como nenúfares e uma pessoa tem de estar sempre com cuidados não vá as meninas ficarem sensíveis e desatarem a chorar ou a sentir-se incompreendidas. Culpam tudo nas hormonas e no momento especial. Deixam trabalho pendurado quando vão dar à luz, ou ainda pior, quando vão mais cedo para casa, coisa que não havia lá no tempo da rica mãezinha que trabalhava ao campo, paria a meio da apanha da fruta e depois de espremer a criança cá para fora ainda enchia duas caixas de Bravo de Esmolfe enquanto tinha a cria agarrada à teta esquerda. Benditas as grávidas de antigamente. Não tinham cá frufrus. Morriam mais, elas e as crianças, mas também era assim que se fazia vingar os mais fortes, a seleção da espécie. As grávidas são uma chatice, mas tirando a parte de incomodarem tanto, até são giras lá longe, com o seu andar de patas, meio metidas a especiais como se fossem a única forma de manter a espécie humana na Terra.

A idade, dizem, é apenas um número

15.07.21

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Dou comigo a caminhar para os quarenta e a pensar o que é feito da vida. Faltam dois anos e, apesar de, para quem já lá chegou lhe parecer muito, para mim, que vejo as semanas a cavalgar, parece que vai ser já amanhã.
A idade, dizem, é apenas um número. E é. Mas comporta as ponderações que faço da vida. O que fiz, o que queria fazer e ficou em espera, o que já sei que nunca farei.
Talvez seja por isso que hoje, quando penso em coisas que ainda quero fazer, me ocorra de imediato que as farei quase com quarenta. Não acrescenta nem subtrai nada ao que possa fazer, mas parece tarde, como quem chega atrasado a um acontecimento importante.
Há uns meses fui com o meu pai a uma consulta. A idade, aquela que dizemos ser só um número que se alcança subtraindo o ano de nascimento à data do dia; a idade tem pesado, fá-lo andar lentamente, raciocinar com menos vigor, olhar demasiado para trás, para o que lá ficou, o que não volta. Vive as lembranças de cada ano, aqueles que são números passados e riscados na caderneta, e lamenta que a vida agora só lhe exista nas memórias, nos objetos que guarda na cómoda do quarto, nos tarecos que resiste em deitar fora. Noto que vê um futuro de uma só porta, que sente que pela frente o caminho está cheio de pedras e que por isso caminha devagar, então, a cada passo olha para trás, para as peripécias em Alcácer, para o que lhe roubaram no Ultramar, para as obrigações de casa-trabalho, para os filhos a nascer, os pais a partir, a mulher a adoecer, o mundo que desmorona devagar. Às vezes, quando a reta final chega já nós estamos mais mortos que vivos, tal não é a soma que nos subtraíram. Já ardeu a maior parte do pavio, resta esperar que o pedaço que resiste queime lentamente.
Olho para o meu pai e vejo-o à procura de explicação para tudo o que ficou por fazer. Pondero a minha vida e receio deixar na sala de espera aquilo que quero levar a cabo.
Então escrevo.