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Exercício de escrita

Laura

Conto

28.01.22

Há pessoas que parecem estar sempre a fazer a coisa certa. Podem decidir levar a cabo o maior dos disparates, uma imbecilidade completa, que, quando nos dizem que estão prestes a perpetrá-la, toda a falta de bom senso parece ser sugada para um universo distante e sim, é evidente que aquela é uma boa ideia.

A Laura era assim. Chegou ao pé de nós e disse: vou candidatar-me a um posto em França, estou farta disto aqui em Portugal, não ata nem desata, uma pessoa precisa de evoluir e aqui não chega a lado nenhum. Preciso de outros ares. Não sei como é que vocês aguentam, eu estou tão saturada. E num ápice aquela vida que tínhamos como certa e tranquila, tão boa ao pé dos que não tinham a mesma hipótese de um trabalho de secretária com saída certa às seis, meia dúzia de regalias e um fim de semana livre, num suspiro aquela vida passou a ser enfadonha. A Laura tinha razão, estávamos a deitar tudo fora. Tínhamos de viver. Ela é que sabia viver. Ela pegava o touro pelos cornos e fazia com que o mundo girasse a seu bel prazer. Já a podíamos imaginar a passear-se nos Champs Elysees, rua acima rua abaixo, a entrar nas lojas caras, a sair de lá com mais uma camisa e mais um vestido e outro casaco. Todos lhe assentavam bem.

E a Laura lá foi. Havia outra candidata, mais competente até, mas por qualquer razão os argumentos da Laura na entrevista convenceram mais. Durante semanas não se falou noutra coisa, todos queriam um pedaço de tempo da Laura e ela não se escusava a conceder essa atenção. O que ia fazer, os restaurantes que lhe haviam recomendado, o francês que andava a treinar para não fazer má figura, as roupas que tinha encomendado porque as mulheres em França isto e as mulheres em França aquilo. Sobre o futuro dizia: não sei, logo vejo, o que será será, já dizia a Doris Day. Nunca gostei muito de planear, sabes? E continuava a fumar o seu cigarro, que parecia um gesto de requinte mais do que um mau hábito.

No último dia de trabalho fez-se um arraial. Balões, fitas, choro. Houve até quem lhe fosse comprar utilidades para que nada lhe faltasse em Paris. As saudades que iam ter da Laura, merecia tudo. A coragem de ir sozinha assim para o desconhecido.

Fez-se um jantar, a despesa foi rachada por todos e, claro está, a Laura não pagou porque não fazia sentido, então agora a pobre Laura tinha de poupar porque a vida lá fora era mais cara.

Nas primeiras semanas o escritório parecia cinzento. Faltavam as histórias da Laura. A sabedoria de vida.

Tenho uma amiga muito viajada que um dia me disse que é uma vergonha ver uma mulher com roupas caras e mãos por arranjar, lá fora as mulheres de classe não fazem isso, disse-me a Laura uma vez, tinha eu ido com as unhas ratadas para o escritório. Desde aí sempre que olho para as minhas mãos vejo a Laura encostada à máquina do café, com os seus olhos curiosos a perscrutar-me, inocentemente explicando porque é que eu não tinha classe. Nunca mais andei de verniz ratado.

As coisas foram voltando ao normal. Da Laura falava-se de vez em quando, como ia por lá, na terra dos avecs. Deviam estar todos encantados com ela.

Até que um dia me cruzei com o Daniel na Rua do Ouro. Eu andava a dar uma volta à hora do almoço, a mexer as pernas e a fazer tempo, ele ia tratar de qualquer coisa que me explicou mas eu não fixei.

O Daniel tinha sido companheiro da Laura. Conheci-o num dos jantares que havíamos feito entre colegas e para os quais, quando as coisas já resvalavam para a amizade, se começavam a convidar os namorados, os maridos, as companheiras e por aí em diante. Era um tipo calado.

Falámos de como vais e como tens andado e a vida assim e a vida assado. Circulámos à volta da Laura umas sete frases até que ele me perguntou: então e a Laura, sabes se tem estado bem?

Disse-me aquilo de uma forma enternecedora, como quem se preocupa por outra pessoa que ficou aleijada depois de um acidente grave. Eu lá lhe expliquei que a Laura, tanto quanto sabíamos, estava ótima. Que compreendia que para ele tivesse sido difícil aquela rotura, mas ela tinha outros sonhos, era preciso seguir em frente.

Ele baixou a cabeça, abanou-a um par de vezes e disse: ai a Laura, a Laura, a Laura a ser a Laura, não há cu que aguente essa puta dessa mulher. Eu chocada. A Laura. A nossa Laura. A Laura que fazia sempre a escolha certa mesmo quando estava errada. A Laura que copiávamos. A Laura que ouvíamos embevecidas.

Lá me contou que a havia deixado. Já não aguentava aquela vida de faz de conta que ela inventava. Viagens, carros caros, restaurantes requintados. Tudo mentira. Moravam num T1 no Fogueteiro. Não havia vida para mais porque ele estivera metade do tempo desempregado e ela gastava tudo em salões de cabeleireira e roupa comprada a prestações. Foi ele que tinha posto um ponto final à relação. Ela, a equilibrada Laura, a Laura decidida que estaria agora a fazer apresentações inteligentes numa sala de reuniões, a Laura tinha atirado com loiça, partido candeeiros, descabelara-se. Como é que ele se atrevia a deixá-la. Atirara-se ao chão. Puxara-lhe as calças. Um cenário deprimente. Na primeira semana ligava-lhe dezenas de vezes por dia. Terminou com a Laura aos gritos à porta da loja dos pais.

Meteu-se a policia ao barulho. Apresentou queixa.

O apartamento era dele, pelo que a Laura se viu enfiada na casa do pai, algures na Cruz de Pau.

Despedimo-nos. Ele apressado para os seus afazeres, eu a olhar para as minhas mãos arranjadas. Não tinham uma lasca.

 

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#3

Três dias, três pequenos contos

16.12.21

Sabia das crianças de lá de onde a mãe trabalhava. Um lugar que lhe parecia encantado onde se tomava conta de quem não tinha ninguém. Sabia que o natal não se passava entre os desaguisados dos tios, as travessas de bacalhau, os sonhos e as fatias douradas. O natal, nesse sítio onde se distribuía amor em porções iguais nas horas ditadas pelo ponto, era passado no amparo dos desamparados. Ouviu a mãe falar da festa singela que iam fazer com a simpatia de quem ajudava. Entrou no quatro e fechou as portas. Remexeu caixas e armários. A mãe de mãos à cabeça. Em poucas horas uma dúzia de embrulhos regados a fita cola. Levas amanhã, mãe. Dizes que foi um pai natal pequenino, sem barbas e sem trenó.

#2

Três dias, três pequenos contos

14.12.21

És um nojo. És uma merda. Peneirenta. Arrogante. As manhãs começavam assim desde que o programa foi para o ar. O azedume de rostos que não conhecia. As palavras amáveis e de força não pesavam da mesma forma, pareciam simpatia, uma espécie de caridade. Ligou para a mãe à procura daquele amor que se diz incondicional. De que é que estavas à espera, tu é que te meteste a jeito com essa mania de aparecer. A voz da mãe a desvanecer. Tens razão, disse. Um beijo. Outro para ti. O corpo dormente, a cabeça baixa. Parecia verdade, era ela a culpada. A mania das grandezas, a incapacidade de viver feliz nas sombras. Fechou os estores e voltou para a cama a rezar baixinho, pedindo para acordar outra pessoa.

Dezembro

Conto

01.12.21

O Bublé, com a sua voz doce e encantadora, cantava I’m dreaming of a white Christmas, as prateleiras do supermercado estavam carregadas de chocolates caros com caixas vermelhas enfeitadas com pintas brancas para imitar a neve e eu estava ali, na fila para as caixas rápidas, que já foram rápidas e agora parecem mais lentas que as outras. No tempo em que as pessoas ainda se preocupavam em roubar o trabalho à senhora da caixa, no tempo em que tinham medo de passar pip-pip a sua própria salada pelo scan, no tempo em que tinham medo de se enganar nas contas ou pena de não ter alguém com quem reclamar o aumento dos preços, nesse tempo as caixas rápidas eram uma brisa. Meia dúzia de corajosos. Agora toda a gente sabe mexer com aquilo. Impacientam-se é certo, mas não mais do que já bufam quando esperam cinco minutos na fila para passar com o carrinho atestado.

Pensei ter visto uma caixa vaga e aproximei-me para confirmar que tinha um papel à frente, Temporariamente indisponível. Porra. Volta aos calcanhares. Espera.

De regresso ao início da fila dei com dois amigos/amantes/colegas/namorados/ou qualquer coisa que não me interessava. Estavam cheios de pressa, tanta que viam o mundo por cima dos meus ombros, como se eu não estivesse ali. Miragem de salada em mãos. Moviam-se de um lado para o outro, numa agitação entre os pagamentos em cartões e os pagamentos em numerário. Ponderei, engalfinho-me com os petulantes que se fazem de míopes, ou encolho os ombros e deixo passar porque o pior que se pode arranjar é uma discussão com um estúpido que tem a mania que é esperto. Espera, não tinham aberto umas caixas novas, ocorreu-me de repente. Espreitei, duas livres. Arranquei com a velocidade de uma chita. Quando pousei as compras e cliquei em iniciar olhei vitoriosa por cima da máquina, procurei os amigos/amantes/colegas/namorados ou qualquer coisa que não me interessava para lhes mostrar que era mais esperta e ia ganhar aquela corrida. Para meu lamento, assim que virei costas uma lesma acabou de pagar e abrira uma vaga. Pus-me atenta, ia ganhar aquela competição. Pip-pip, não encalhes, não digas para aguardar pelo assistente que te arreio uma mocada, vá lê o cartão depressa. Já está. Obrigada e volte sempre. Pego no saco e confirmo. Acabei primeiro.

Passei pelos dois de peito feito, vencedora, medalha de ouro dos jogos olímpicos das caixas de supermercado.

O Bublé já se calara e agora Chris Rea preenchia as ondas sonoras com o seu Driving home for Christmas.

Faço isto. Às vezes. Pequenas conquistas de merda que ninguém dá conta. Campeonatos organizados, geridos, jurados, alimentados pela minha cabeça na pequenez desta imbecil existência.

Na última caixa uma velha gritava com a rapariga que lhe tinha feito a conta, Ladra, gritava-lhe, Queres ficar-me com o dinheiro. Aparentemente a moça passou um brinquedo do neto duas vezes. A velha, em vinha de espírito de Natal, ofendia-a, como se o erro não pudesse ser corrigido, como se quem serve aos outros nascesse ensinado, como se nunca, em nenhuma das rugas que lhe marcavam o rosto, tivesse cometido a mais pequena gralha. É assim, quando os erros dos outros, por mais pueris que sejam, se lhes aparecem à flor da pele, todos somos santos, cheios de dedos indicadores, moralistas de bancada.

Puta da velha, quem lhe arreasse com um tarolo no alto da mona era pouco, pensei para comigo. Imaginei a velha a tombar depois de um pedaço de madeira vindo de lado nenhum lhe rachar o crânio. Imaginei-a com um fio de sangue a escolher pela têmpora direita, o cabelo pejado de laca manchado do vermelho do interior daquele saco amarfanhado feito gente e ela, ai Jesus, ai Jesus, e eu a rir satisfeita pelo castigo divino.

Passada a porta do centro comercial, paz sonora. Encarquilhamento dos nervos. Um frio de rachar. Acelero o passo. Não se está bem em lado nenhum. Da janela o sol mentia, dizia que estava simpático para um passeio, mas quando chegávamos à rua era como uma partida, o frio apanhava-nos pelas costas e deixava-nos o nariz gelado e a pingar.

Mais uma porta. Cartão. Elevadores.

Detesto elevadores, não só porque podem cair de pisos altos e desfazer-se em papa, não só porque em caso de encravanço me podem deixar ali, suspensa entre o nono e o décimo à espera que alguém desaparafuse aquilo e me apanhe lá de dentro, mas porque a espera me esgota. A conversa de circunstância de que ninguém gosta mas toda a gente faz, como se o silêncio espetasse fartas nos olhos, como se o balançar de pernas e o consultar das redes sociais fazendo-nos ocupados não fosse bastante para consumir aquela meia dúzia de minutos terríveis.

Boa tarde, diz-me a voz do corpo que se aproxima. Com a sorte que uma pessoa tem só podia ser este, ocorreu-me. O tagarela de serviço, o sabe tudo, o acha-coisas, o homem das soluções que só arranja trabalho aos outros, o não-me-contestem-que-amuo, o zero-capacidade-de-síntese que fala mais de meia hora e não se aproveita um caralho do conteúdo.

Boa tarde, como está, perguntei, idiota e sabida de que uma pergunta retórica não cairia naquele goto para escorrer na medida certa.

Bem obrigada a preparar o Natal tudo enfeitado muito bonito não é a preparar o ano novo para o ano vamos ter muitas coisas novas e otimizações e melhorias. A voz monocórdica sem pausas ou oscilações, como se debitasse palavras coladas umas às outras. A boca a mexer e a minha cabeça abanar como aqueles cães de brincar no tablier dos carros. O prédio a parecer o Empire State Building. Deviam mandar pôr umas músicas de Natal no elevador, discorria animador, não achas, perguntou-me quando saímos. Ora aí está uma ideia a explorar, não lhe escapa nada, disse-lhe já a voltar costas. Nada não me escapa migalha. E lá foi, mão direita no bolso, braço esquerdo a dar a dar, desengonçado sobre as ossadas. Nem se apercebia que os lábios se lhe mexiam para verbalizar pescadinhas de rabo na boca.

A tarde passou entre meia dúzia de chamadas e três tarefas que espreitei e adiei por mais uns dias. À minha volta sonhos e filhoses trazidos por este e por aquela, boas festas, fica aqui, amanhã estou de férias, vou sair um pouco mais cedo, depois compenso. Quem é que quer trabalhar no vinte e três? Quem é que quer trabalhar no vinte e quatro? Quem é que quer trabalhar? Ninguém. Menos ainda quando cheira a mesa posta e iguarias da avó feitas pela tia que foi a única filha que deitou mão à receita.

Saí agora. A fila não está pior. Devo chegar daqui por uma hora. Disse ao Whatsapp. Dois vistos. Lida.

As vantagens das tecnologias. Nem precisamos de um chip no cachaço, somos nós que queremos que os outros saibam onde estamos a cada instante. Assim avança-se o jantar, vai-se pondo a mesa, a miúda vai tratando dos trabalhos. Ele chega mais cedo, trabalha a minutos a pé de casa.

Os vinte quilómetros para casa nem os vi. Vieram-me à ideia os pingarelhos natalícios que ia comprar e não comprei. A sala pouco vermelha. A toalha de mesa. Não comprei outra por isso ia usar aquela branca com folhas de Poinsétia, que as pessoas conhecem como Estrela do Natal, mas eu, desde que me entreguei ao mundo das plantas, conheço o nome de registo.

Sempre compraste salada, perguntou o Whatsapp.

Sim. Comprei salada. E comprei bifes, daqueles cuja pele é feita de embalagem porque assim não parecem pertencer a bicho nenhum. Ganhei uma medalha nas caixas rápidas e deixei para trás dois petulantes que nem deram por mim. Sou uma vencedora.

Assim que o trinco desprendeu a porta ouvi o meu nome, Mãe. Estava na sala debruçada sobre os cadernos. De joelhos na cadeira. Um sapato atirado para casa lado. A mãe já vai.

Passei na cozinha, deixei a salada, pousei os bifes, entreguei um beijo rápido a quem fazia o jantar e arrumava a loiça lavada que salta da máquina para as prateleiras mais aquela que nunca se chega a guardar porque está sempre a servir. Olá, disse, está a fazer os trabalhos, perguntei. Sim, está empenhada e quer que vejas.

Olá filhota, como foi o teu dia, perguntei com a frase alongada pelo abraço. A Luísa escreveu na minha borracha e a Sara não me deixou brincar à apanhada no recreio. Lamento, respondi-lhe sem ser capaz de lhe dizer como resolver de forma inteligente aqueles desaguisados infantis que hoje lhe parecem do tamanho do mundo e amanhã continuarão a parecer. Sei disso porque ainda me lembrava da Natália, que fazia pouco dos meus ténis da Guimarães quando ela usava Converse verdadeiros. Ainda me lembrava e ainda naquele momento, trinta e tantos anos depois, a dia e meio do Natal, desejava que alguém lhe tivesse enfiado uma sapatilha no cu. Não me ocorreu nada que não envolvesse segurar a cabeça da pequena facínora pelos cabelos e arrear-lhe com a cara na carteira da escola meia dúzia de vezes. Por isso repeti, Lamento, e desconversei para um, O pai diz que estás muito dedicada a fazer os teus trabalhos, posso ver?

Os às pareciam ós e os pês pareciam quês e eu não lhe pude dizer que por mim apagava tudo e fazia como devia ser, porque a aprendizagem hoje é positiva e devemos elogiar as conquistas por mais pequenas que sejam.

Está ótimo, filha. Vejo que estás a melhorar a olhos vistos.

Arrumados os cadernos na mochila. Posta a mesa com os individuais manchados. Tocou a campainha. Espreitei. Era a chanfrada do segundo frente, a dos gatos. Todos a conhecemos como a-dos-gatos, ainda que ela também tenha um cão.

Não sabemos nada dela. Se é boa ou má pessoa. Sabemos que tem seis ou sete gatos e isso chega para que o resultado matemático entre o que eu faria e o que tu achas que deve ser feito dê igual a lunática.

Abri a porta desconfiada. Ocorreu-me que me viesse tentar impingir um felino apelando à candura da época. Despontou-se-me como de um pop-up se tratasse o pedido da miúda, que se desfazia em argumentos para ter um gatinho cor de laranja como o da Maria lá da escola, que se chama cenourinha e gosta muito de brincar com as bonecas, tanto que lhe deixou duas Barbies descabeçadas.

Boa noite vizinha, está tudo bem, perguntei numa solicitude matreira de quem não quer oferecer ajuda.

Boa noite, está tudo bem obrigada, espero que convosco também. Lamento vir incomodar à hora de jantar, mas já se sabe que é a esta hora que as pessoas estão em casa.

Temos muitos vizinhos reformados, esses devem estar em casa mais cedo. Disse, rindo-me em excesso da minha própria tirada.

Sim, com esses não é preciso falar, aliás é mesmo por causa deles a minha visita. Como sabe o prédio é antigo e uma parte dos inquilinos são idosos. Alguns não têm filhos e outros têm, mas estão longe e não vêm passar o Natal. As viagens de avião ficam sempre pela hora da morte por esta altura.

Lá isso é verdade, confirmei. Não me digam que a gaja quer que eu fique com um ou dois velhos na noite de vinte e quatro. Não. Mas é que não mesmo.

Pensei em fazer alguma coisa bonita, continuou. Podíamos organizar uma troca de prendas e fazer uns postais uns para os outros com mensagens animadoras. Acho que os ia deixar felizes.

Detesto almas boas, pensei. Especialmente porque me fazem parecer uma víbora insensível. Já me tinha lembrado dos vizinhos, do Natal, dos rostos à janela na noite de vinte e quatro, fortes contra o frio, a perscrutar cada janela, quem sabe para rever ali, na caixa que cada nova família ocupava o que já se havia passado na casa que agora era feita de paredes e vazio, com meia dúzia de luzes postas por hábito ligadas à ficha para piscar só para um par de olhos cansados. Mas nunca me ocorreu fazer nada porque a vida nos dá desculpas para tudo. Porque há correria, porque há trabalhos, porque há a lida, porque não apetece e vejo o tempo a galgar em direção ao dia em que serei eu à janela, com uma casa desabitada de afazeres, à espera de sentir no que pulsa em lar alheio o que um dia já se passou no meu.

Podemos-mãe-podemos, perguntou logo a pequena saída do esconderijo com uma solicitude que deixei de ter quando a inocência se foi esvaindo de mim.

Podemos, respondi num suspiro.

No vinte e quatro arrumei a mala mais cedo. Feliz Natal, vou saindo, depois compenso.

Fizemos sonhos com a receita ditada pela minha tia ao telefone. Tentei estender filhoses, mas não quero falar delas. Recortámos cartões de Natal e a pequena escreveu a frase principal. Lá dentro mensagens que eu não sabia que tinha para escrever.

Às sete, quando os meus pais, a minha irmã e os meus sogros começavam a subir as escadas, deram connosco porta a porta, com um pratinho de iguarias forradas a açúcar e canela e um monte de postais feitos em casa por quarenta e sei anos de mãos. Quarenta meus, seis de quem ainda desenha as letras com o encanto de cada curva.

Novembro

Conto

17.11.21

Avisei os miúdos de que precisava de ir à casa de banho, não valia a pena chamarem por mim, estava com uma valente dor de barriga e por mais que esperneassem só ia sair quando estivesse mais aliviada. Pousei o telemóvel no armário onde guardamos os produtos de higiene e notei que o barulho feito pelos miúdos ficava muito mais tolerável quando abafado pela porta fechada. Suspirei, e com os polegares enfiados nos elásticos empurrei até aos joelhos as calças e as cuecas. Sentei-me na sanita e pousei a testa nas mãos. Ouvi meia dúzia de vértebras estalar. Que bem que me sabia. Senti uma comichão na barriga da perna esquerda e percebi que a renda das cuecas estava a desfiar, sem pensar muito nisso puxei a linha e fiz um buraco onde cabiam, à vontade, três dedos. Merda!, disse para comigo, já lixei estas também. Nem uma semana têm. Tinha comprado um pacote de seis no supermercado, daqueles conjuntos em promoção que têm sempre metade das peças em tecido de uma só cor e outra metade num padrão desenhado por uma pessoa vendada. Nunca percebi a razão pela qual se davam ao trabalho de fazer aqueles tecidos detestáveis, era óbvio que ninguém gostava, aliás, era por isso mesmo que as vendiam mais baratas.

Enquanto erguia o tronco para me recostar contra o autoclismo reparei que o rolo de papel tinha acabado. Outra vez! Será tão difícil aprenderem isto? Estava cansada de explicar aos miúdos que quando o rolo acabava tinham de colocar um novo. Olhem, a mãe pôs aqui no armário de baixo para ficarem mais acessíveis, expliquei-lhes. Mesmo assim quando acabava o papel deixavam o rolo de cartão a pendular e nunca se queixavam.

Peguei no telemóvel, não tinha cólica nenhuma, a menos que considerássemos a fartura das pedinchices dos filhos uma tipologia concreta de quase cólica cerebral. Abri o Facebook e comecei a fazer scroll com o polegar. Nada como um pedaço de vida alheia para que nos consigamos alienar da nossa. A minha cunhada havia feito um bolo mármore no fim de semana. Vi que só duas pessoas tinham gostado da publicação e já a imaginava desgostosa pela falta de atenção. Quem não vai ver quantos polegares içados e corações é que ganhou que atire a primeira pedra. Por isso cliquei em Gosto. A Rafaela da contabilidade acabara um treino aparentemente dificílimo. Gosto. Vais chegar ao verão uma brasa, comentei. Uma marca de lingerie com as irmãs Kardashian todas enroladas numa cama alegava conforto e sensualidade, tudo numa só peça. Se calhar devia mandar vir umas destas, em vez de gastar mijinhas de dinheiro com trapos que se descosem em menos de uma semana, pensei. A filha da Rute do Arquivo fazia dezasseis anos, gira a miúda. Gosto. Parabéns à princesa e à mãe. Um dia muito feliz para todos, comentei. Parabenizar os filhos dos outros garantia que quando chegasse o dia dos meus todos se sentiriam compelidos por deixar os seus votos de um dia feliz. Cortesia digital. Mãe, ainda vais demorar?, ouviu-se do lado de fora da porta. Mais uns minutos, de que é que precisas?, perguntei. Tenho fome, posso ir buscar alguma coisa à cozinha?

Podes.

Se eu estivesse ao lado dele ia direto à cozinha e aparecia ao pé de mim a comer o que lhe apetecesse sem sentir a necessidade de aprovação, mas como eu estava ausente no país longínquo do WC, era crucial a gentileza de questionar.

Fartei-me do mural e voltei ao topo da aplicação. Talvez conheças estas pessoas, sugeria. Engraçada esta coisa de ter eletrodomésticos a dar palpites sobre o que comer, o que ver, com quem me dar. No tempo da minha mãe ela carregava no botão da iogurteira e tinha de ir vendo quando estavam prontos os iogurtes, nunca o aparelho lhe disse: olha que acho que já estão, Ofélia. Ainda assim a melhor coisa destas aplicações é que me perguntam coisas simples e agradáveis que eu respondo com a facilidade de um clique. Não me perguntam o que é o jantar, mostram-me ideias para o jantar.

Decidi gastar ali algum tempo a perceber que pessoas é que o algoritmo me propunha como eventuais conhecidos ou amigos. O Jaime, primo da Natália: nem pensar. A Luísa, cunhada da minha cunhada, até já me tinha mandado um pedido de amizade, mas eliminei. Ocorreu-me que na festa de anos do meu sobrinho me abordou para me perguntar porque é que não aceitava o pedido de amizade dela. Mandaste-me um pedido? Não devo ter visto, não me aparece lá nada. Agora não me dá jeito, mas deixa que quando chegar a casa já vejo, fintei. É claro que podia ter consultado logo o telemóvel, mas não estava para isso. Laura Veiga, eu conhecia aquela cara. Conhecia bem demais. Já não nos víamos há mais de dez anos e tanto quanto sabia não tínhamos conhecidos em comum, porque raio é que me aparecia ali agora? Por baixo do nome dizia que tínhamos um amigo em comum, fui ver. O Olavo, marido da minha prima Sara. Era daquelas pessoas com mais de mil amigos nas redes sociais, conhecia as pessoas mesmo que fosse de passagem e, ligação direta, tornavam-se amigos ali também. Aparentemente havia-se cruzado com a Laura.

Entrei no perfil para ver se estava público, a possibilidade de bisbilhotar sem consequências fez-me sentir formigueiro na palma das mãos.  

Eu e a Laura fôramos grandes amigas. Quase todo o tempo da faculdade. Não era espalha brasas, mas roubava as atenções. Não se podia dizer que tinha características exóticas ou aqueles olhos cor do mar; havia pura e simplesmente alguma coisa nela, uma qualquer energia que cativava, como se, quando aparecia, gravitássemos em torno dela. Podia não ter nada de interessante para dizer, mas ainda assim todos queriam ouvir o que lhe saía da boca. Sempre impecavelmente maquilhada, com bom gosto na roupa. Não era particularmente inteligente, mas gozava daquele tipo de esperteza que a deixava perceber como devia ajustar o seu comportamento e argumentos em função do interlocutor. Para quem não a conhecia tão bem, parecia sempre tremendamente assertiva, com ideais claros e dificilmente refutáveis. Mas eu, que a escutava a esgrimir razões com este e aquele, percebia as incompatibilidades entre as opiniões que proclamava. A princípio deixava-me embevecida, mas depois, quando me apercebia de que se aproveitava de palavras e raciocínios meus, desejava que se engasgasse, que alguém percebesse o mesmo que eu, que lhe fizessem perguntas para as quais ela não tinha resposta pronta. Mesmo assim, quando esses momentos chegavam, desconversava com o charme habitual ou simplesmente dizia: bom, pareces não estar a entender o meu ponto de vista e eu estou cansada deste tema, falamos de outra coisa?

O perfil estava privado. Que pena! Olhei para o botão deixando que o polegar direito lhe pairasse por cima.

Enviava um pedido de amizade e arriscava-me a que me ignorasse ou que me mandasse uma mensagem daquelas para as quais nunca temos uma resposta adequada? O mais provável era que ignorasse ou que demorasse uma semana a responder mesmo que o visse no momento. Jamais daria a entender que estava com disponibilidade. Metade da importância de quem finge viver num patamar acima é compassar a sua atenção aos outros, porque as suas prioridades são prementes demais para que percam tempo com coisas mundanas, muito menos vontades ou pedidos.

Não enviava e roía-me de curiosidade? Podia ver pela fotografia que continuava muito bonita e cuidada. A fotografia de topo mostrava uma ilha paradisíaca, quem sabe nas Maldivas ou na Polinésia Francesa. Parecia estar bem na vida, Ou tremendamente endividada, pensei de imediato, com um desejo claro de que esta hipótese fosse a verdadeira, dessa forma a minha vida não parecia sem sabor e igual à de todos os que andam em carreiro, seria apenas o espelho do esforço de quem opta por não viver com uma gravata de nó demasiado apertado.

Baixei o telemóvel e olhei para o meu reflexo: sentada na sanita com as calças de fato de treino coçadas enroladas nas cuecas de algodão que agora tinham um buraco, a sweatshirt que tinha sido do Telmo e que agora servia para qualquer um de nós andar por casa, o cabelo por pentear, a cara insuflada por calorias em excesso, as manchas do sol. Com a mão esquerda puxei a pele da cara para trás e confirmei que se conseguisse pôr uma mola de cada lado ficaria com uma aparência muito mais jovem. Só era preciso que as molas ficassem quietas. O arrependimento chegou com a rapidez de um raio. Castiguei-me porque a minha pele estava assim por desleixo, pelo persistente deixa andar, por não ser capaz de perseverar nas pequenas coisas que me propunha a fazer, especialmente quando eram só para mim. Lembrei-me que na maioria dos dias me esquecia de pôr os cremes como a dermatologista recomendara. No plano que pendurara na porta do frigorifico, preso com um íman de Paris, tudo parecia mais rápido e exequível. Tal como o plano nutricional que cumprira nas primeiras três semanas, até me convencer de que um dia por semana para comer batatas fritas era manifestamente insuficiente para a minha vida de desgaste. Não ia ser modelo nem capa de revista, que mal fazia um pouco mais de cobertura em torno do abdómen.

Os miúdos chamaram por mim outra vez. Vi pelo relógio no canto superior do telemóvel que estava ali sentada há mais de meia hora. Cliquei para pedir amizade. Desliguei o telemóvel e quando me levantei percebi que tinha as pernas dormentes e as nádegas marcadas pelo tampo da sanita.

Voltei a consultar a página de Facebook mais três vezes antes de sair da casa de banho, depois de puxar as calças, antes de lavar as mãos e antes de rodar a maçaneta para abrir a porta. O resto do serão revestir-se-ia de expectativa.

Recebi a notificação de que aceitara o meu pedido de amizade já passava das onze da noite. Estava a acabar de ver um programa que tinha gravado quando ouvi o telemóvel apitar múltiplas vezes. Não só tinha aceitado o pedido, como me tinha mandado mensagens. Como se uma corrente elétrica tivesse passado pelo meu corpo, senti-me despertar. Queria abrir a mensagem ao mesmo tempo que sentia um desejo profundo de andar para trás no tempo e evitar a estupidez daquele pedido. De certeza que ela também já tinha visto o meu perfil e porque se acharia melhor não me mandou um pedido a mim, fui eu que dei parte fraca. Sentei-me na cama e fui espreitar a conta dela antes de ler o que tinha escrito.

Publicava com alguma regularidade. Citações. Excertos de textos de autores que eu não conhecia. Fotografias onde aparecia sempre irreprimível, que pareciam ter sido tiradas por um profissional numa sessão para a capa de uma revista.

Encontrei publicações onde defendia as suas convicções politicas, coisa que não tinha quando a conheci, mal sabia distinguir de forma clara a direita da esquerda. Ocorreu-me que alguém lhe tivesse escrito aquelas linhas ou que, tal como sempre fizera, se tivesse apropriado dos ideais de alguém e depois, embelezando as palavras como era seu apanágio, tivesse construído um conjunto de frases que, proferidas por si, para aqueles que se embeiçavam com a sua existência, teriam a doçura do mel. Todas as publicações tinham centenas de gostos e de corações. Como é que pode haver pessoas que amam uma reação politica?, pensei. Pessoas que esperam a aprovação da Laura, claro!

Vivia numa moradia com um terreno imenso e aparentemente não tinha filhos porque a única criança com quem aparecia era a sobrinha.

Depois de ver quase dois anos de histórico ocorreu-me que também Laura poderia estar a fazer o mesmo e que a minha vida nada tinha de glamoroso. Não pude evitar o sentimento de vergonha das fotografias de aniversário do Vasco, tiradas na nossa sala pequena, decorada sem itens de lojas de renome. As nossas férias, sempre no Algarve ou na casa que os meus pais compraram na Amareleja depois da reforma. Os pais da Laura nem devem saber onde fica a Amareleja. A minha vida era pequena e em tons terra, era vista por uma lente pouco lisonjeadora, com má iluminação. Na vida de Laura o sol parecia estar sempre na posição certa para a iluminar no seu melhor lado.

Abri a mensagem:

Laura: Há quanto tempo!

Laura: Espero que esteja tudo bem contigo.

Laura: Vejo que tens dois miúdos giros.

Laura: Eu ainda não tenho filhos.

Laura: Muitos projetos, a maternidade foi ficando adiada.

Laura: Mas estou desejosa.

Laura: Por ter uma menina, uma princesa. Os rapazes são muito estouvados.

Laura: Quero uma cópia minha.

Laura: Devíamos combinar um café um dia destes para pormos a conversa em dia.

Eu: Claro! Parece-me uma ideia fantástica!

O café ficou marcado para hoje.

Usei o cartão de crédito para comprar roupa nova numa loja inacessível para aquilo que recebo mensalmente. Estou à frente do espelho há mais de quarenta minutos a pensar se devo mentir e inventar uma indisposição ou apanhar transportes públicos alegando razões ambientais, para que Laura não veja que o meu carro tem quase dez anos.

Quando o despertador tocou o sol ainda não tinha nascido.

Conto

20.10.21

Uma mulher de cabelo curto e escuro acendeu a luz do candeeiro da mesa de cabeceira, pegou no telemóvel e, com um toque leve do dedo polegar, arrastou uma bola piscante para a direita. O aparelho calou-se. Em cima da mesa de cabeceira estava uma pilha com cinco livros, pela posição dos marcadores estavam a ser lidos a espaços. Todos os livros ofereciam promessas. Atinja os seus objetivos em cinco passos, Como ser mais produtivo, O livro que não vai querer perder para organizar a sua vida, Bons hábitos Pessoas Felizes e A Felicidade está ao seu alcance.

A mulher esfregou a cara com as duas mãos e pegou num dos livros. Passou os dedos pelas folhas, fazendo com que estas soprassem uma brisa na sua direção.

Bom, vamos a isto, disse para consigo e levantou-se da cama.

A sala tinha meia dúzia de móveis, uma televisão, um sofá e um gato deitado lá em cima. O gato semicerrou os olhos, ofendido com a dona que ligou a luz sem qualquer cuidado, encandeando o felino. A mulher pegou no comando e ligou a televisão. Por defeito estava sempre selecionado num canal de notícias, mas naquele momento não lhe apetecia saber como ia o mundo. Queria lixo televisivo.

Ainda de pijama subiu para cima da elíptica, escolheu um programa e começou a pedalar. Olhava para a televisão, mas não via o que estava a passar, a sua cabeça estava noutros sítios, nas suas escolhas, nos seus atos. Naquele momento revivia pela enésima vez a discussão que tivera com uma das pessoas da sua equipa, a frieza com que lhe tinha falado, a inflexibilidade para aceitar uma proposta. Ouvia, como se as palavras estivessem a ser ditas naquele momento, a conversa na sala de café.

Terminado o exercício, foi para a casa de banho. Um duche rápido, os cremes contra o tempo, a roupa escolhida no dia anterior. A imagem de método que tentava impor a si e mostrar aos outros.

Antes de sair passou pela cozinha, ligou a máquina de café, deu de comer ao gato, escreveu um recado que deixou em cima da mesa para que a empregada lesse, tirou um café e bebeu-o encostada à bancada da cozinha. Da janela do décimo andar via Lisboa a acordar, um ou outro carro na estrada, uma ou outra luz acesa nos prédios altos.

No hall de entrada estava uma mesa onde a mulher pousava a mala e as chaves, ao lado uma fotografia onde aparecia com cabelos longos e lisos, muito escuros. Com ela um homem que considerava medianamente bonito e uma criança que ria com vontade de qualquer coisa que o homem lhe dizia ao ouvido. A mulher parou e olhou para a fotografia, passou o dedo indicador pelo rosto da criança, depois limpou a garganta, pegou na mala e nas chaves e saiu.

Quando entrou no escritório ainda não estava ninguém. Era assim que gostava de trabalhar: num escritório fantasma. Sem que entrassem e saíssem do seu gabinete para fazer perguntas, sem que ouvisse os queixumes de quem, na sua opinião, não se esforçava o suficiente.

Em cima da secretária estavam documentos, um computador portátil e um cubo com canetas e lápis. Era a única mesa onde não se encontrava nenhum bem pessoal, que dissesse alguma coisa da pessoa que ocupava aquele espaço. Não havia fotografias de família, nem prémios de lojas baratas dizendo que era a melhor isto ou melhor aquilo, não havia desenhos de crianças, nem o cachecol do seu clube.

As chamadas pessoais eram tidas de porta fechada, sempre com os phones nos ouvidos, sentada na sua cadeira, de cotovelos em cima da mesa, a cabeça baixa e os olhos fechados. Como se quisesse concentrar todos os seus sentidos naquele som.

O telefone tocou e a mulher olhou para o visor. Artur.

Levantou-se calmamente, fechou a porta e atendeu a chamada.

Preciso de saber se vens à festa do Jaime ou não, disse de imediato o homem do outro lado da linha.

Olá, respondeu a mulher.

Letícia, o miúdo faz dez anos e quer a mãe na festa dele, disse Artur num tom impaciente. Caramba, será que não percebes o quanto o magoas quando fazes isto.

A mulher tinha os antebraços pousados na mesa e os punhos, cerrados com força, faziam com que o interior da pele estivesse branca.

É assim tão difícil que consigas mostrar algum amor pelo teu filho, continuou Artur.

Eu amo o meu filho, isso nunca foi uma questão, é ele que não me quer perto e sou eu que não sei ser o que ele quer de mim, respondeu Letícia     numa voz que forçava para ser calma. Apetecia-lhe gritar, varrer com os braços todas as folhas que estavam na secretária, atirar com a cadeira contra as paredes de vidro do escritório, arrancar os próprios cabelos.

O facto de o nosso filho ter preferido viver comigo não faz de ti má mãe. São estes atos que fazem de ti má pessoa, acrescentou Artur. Devias procurar ajuda, falar com alguém, mas tu não aceitas, achas que resolves tudo.

Numa voz quase sumida Letícia disse: os filhos ficam com as mães e visitam os pais um dia por semana e fim de semana sim, fim de semana não.

Essa conversa outra vez, disse Artur numa voz mais baixa, cansada. Os filhos ficam com quem tem mais tempo e disponibilidade, Letícia. Está na altura de aceitares isso. O miúdo precisa de alguém que tenha tempo para ele, de não ser sempre o último a sair da escola porque a mãe ainda acabou mais uma coisinha no trabalho, sabes bem que eu sempre quis mais isto do que tu. Tu sempre foste distante e ele sente isso.

Já sabia que ias começar com essa conversa, disse Letícia suspirando e levantando a cabeça para ver que nas secretárias lá fora estavam a olhar para si e fingiram não estar atentos quando cruzaram o olhar com o seu. Eu queria…, começou por dizer e não conseguiu terminar.

Tu querias sentir-te como as outras mães, ter o instinto maternal que vem nos livros, mas não tens e é importante que aceites isso para teu bem e para bem do Jaime. O miúdo está a contar contigo, faz isto por ele. Já chega que arranjes desculpas para não o ires buscar durante a semana.

Ele não gosta do Jonas, respondeu Letícia justificando a sua escolha.

Ele não gosta do gato, então tu não vais buscar o teu filho. Lindo. E aos fins de semana – poucos - em que ele fica em tua casa e mal lhe dás atenção?

Eu às vezes convido-o para ir a sítios, ele não quer. Comprei-lhe uma Nintendo, achei que ele gostava.

E gosta, Letícia, claro que gosta, disse Artur regressando ao seu estado exasperado, mas ele vai passar os dias contigo e não com o aparelho de jogos. És tu que tens de te chegar a ele. É um miúdo, caramba. É teu filho.

Silêncio.

OK, disse finalmente Letícia.

OK, o quê?

Eu vou.

Do outro lado da linha apenas se ouviu um suspiro e, depois de alguns segundos de vazio, Artur acrescentou: ele vai ficar contente por te ver. E desligou.

Uma mãe puxava uma criança birrenta pelo braço.

03.10.21

O menino queria fugir-lhe, voltar na direção do escorrega. A mãe dizia-lhe: temos de ir, tenho coisas para tratar em casa. Já tinha negociado, já tinha ralhado, agora levava-o quase de arrasto.

Outra mãe andava freneticamente atrás do filho que não teria mais de quatro anos. Seguia-o com o olhar de uma águia, acompanhava-o de uma ponta à outra, os pés enterrados na areia fofa do chão. Elogiava a mais pequena das conquistas e desconfiava de todas as outras crianças, como quem vê a sua cria rodeada de lobos.

Sentada num banco estava uma mulher de cabelo louro escuro, aparentemente natural, com os olhos cobertos por óculos escuros com lentes quadradas que lhe ocupavam boa parte do rosto, pensava que se os filhos fossem seus teria tempo, porque tudo o resto seria secundário, que lhes daria liberdade e falaria de forma meiga para as outras crianças, para que gostassem dos seus filhos e fossem todos amigos.

Bem fazes tu que não tens nenhum, disse uma mulher de cabelo castanho escuro atado num rabo de cavalo mal amanhado. A roupa era simples e provavelmente comprada em packs de duas e três camisolas iguais. Trazia ao ombro uma mochila de criança meio aberta, lá dentro, numa salganhada de objetos, poderíamos encontrar toalhitas, embalagens de fruta batida, pás de praia, carrinhos e no fundo de tudo um pacote de bolachas partidas que por ali estavam esquecidas há mais de seis meses. Tinha estado a dar um sermão aos filhos que, não satisfeitos com qualquer coisa sem importância, se haviam pegado um com o outro no meio do parque. A mulher de cabelo mal amanhado falava para a mulher dos óculos grandes, deixando o corpo cair sobre o banco de jardim, soltando um suspiro que era um misto de alívio e cansaço, lançando aquele desabafo pouco verdadeiro, daquelas coisas que as mães dizem quando os filhos lhes dão água pela barba e elas já não sabem o que fazer. Daquelas coisas que se dizem quando se tem vergonha dos comportamentos dos petizes que se trouxe ao mundo e se tenta pedir desculpa de um mal que não se fez. Mas já se sabe que o mal que os filhos fazem se propaga sempre para as mães. Porque elas o absorvem como seu. Porque os outros lhe conferem tal responsabilidade, já que se a criança fez pior, foi porque a mãe não ensinou melhor.

O que a mulher de cabelo mal amanhado não sabia era que a mulher de óculos grandes, a sua grande amiga, tentava engravidar há mais de três anos. Não sabia que aquele sorriso que lhe foi devolvido, num gesto de carinho e compreensão, num deixa lá que os miúdos são mesmo assim, camuflava a dor de mais um aborto espontâneo. Recente. Não sabia que os abraços e as palavras já não a consolavam. Não sabia que chorava à noite e sentia raiva de um corpo que para os outros era tão bonito e para si tão incapaz.

O período tinha falhado como falhara tantas vezes. Esperou. Esperou que não fosse falso alarme até comprar o teste. Esperou porque o coração já não aguenta tantas falsas partidas. Porque a cabeça se vai convencendo de que a vida pode ter outros sonhos e porque ser mãe não é parir. Andavam a falar na hipótese de adotar. As pazes iam sendo feitas com a vida devagar, era preciso avançar, duas pessoas que se amavam tanto, que tinham uma vida boa para dar. As reportagens na televisão, crianças perdidas, maltratadas, violentadas, deixadas ao acaso e ela ali, com tudo para dar e um ventre que não carregava o que ela mais queria. Foi então que chegou o resultado positivo. Mais uma hipótese. A alegria contida de quem tem medo do que pode acontecer a seguir. Do que já tinha acontecido seis vezes antes. A primeira consulta, o primeiro bater de coração. As lágrimas a correr pelo rosto. A esperança, os sonhos, o quarto, a mãe que ia ser. Mas a segunda consulta chegou e com ela a ecografia de rotina. Sem som. O barulho do vazio que ecoou mais alto que qualquer tambor.

Lamento, disse a médica.

Não lhe saíram palavras da boca.

Foram feitos os procedimentos necessários.

Não verteu uma lágrima.

Queres que te traga um chá, disse-lhe o marido ao início da noite quando se sentou na beira da cama e lhe acariciou a perna.

Não.

Ele saiu. Ele sabia que só o tempo a faria voltar a si.

Soube ele. Soube ela. Soube a médica.

Para os outros seria apenas falatório. Olhares de lamento. Frases forçadas porque as pessoas não sabem que o silêncio por vezes dá mais apoio que as palavras de quem não conhece a dor, de quem, por dentro pensa: ainda bem que não foi comigo.

A mulher dos óculos grandes também queria pensar isso: ainda bem que não foi comigo. Que o mal de ventre fosse de outra e não seu.

Aquilo a semana passada é que foi, disse a mulher de cabelo mal amanhado, a Júlia esticou-se um bocado, não achaste?, continuou.

Pois, não devíamos falar do que não sabemos, respondeu a mulher de óculos grandes, mostrando falta de interesse no assunto da vida alheia.

É tu, Verónica?, perguntou a mulher de cabelo mal amanhado.

Verónica olhou para a amiga e perguntou: eu o quê?

Andas cabisbaixa, a semana passada mal falaste. Limitaste-te a ouvir o que dizíamos e sorrias aqui e ali. Tá tudo bem contigo e com o Zé?, perguntou.

Está tudo bem connosco. Não falei muito porque ando um bocado cansada daqueles jantares, respondeu. Cansada dos jantares e dos e-mails nas costas umas das outras, sempre a fazer julgamentos sobre as escolhas desta e as escolhas daquela. Sabes que também se trocaram e-mails sobre ti. Quando ficaste grávida do Martim, a louca que foi ao terceiro como se já não estivesse assoberbada com dois.

Eu sei, respondeu a mulher de cabelo mal amanhado, enquanto levava a mão ao carrinho e acariciava um bebé que dormia tão serenamente que, não fosse o espaço ocupado do carrinho, mal se dava conta que estava ali.

Eu sei que tudo é tema. A Marta acha que também é muito esperta, mas também falamos dela.

Claro que falamos. Falamos de todas nas costas umas das outras e depois como sabemos o que fazemos, todas nos vamos escondendo. No fim, nenhuma de nós conhece a pessoa com quem diz ser amiga, confessou Verónica.

Tens razão. É por isso que tu estás sempre bem mesmo quando é notório que não estás, disse a mulher de cabelo mal amanhado, perscrutando o parque para garantir que os filhos mais velhos estavam no seu ângulo de visão.

E é por isso que continuarei a estar bem. E é também por isso que tu, apesar de desgastada, de notoriamente capaz de quebrar num pranto por não saberes para onde te virares, vais sempre dizer que a tua vida está excelente e os miúdos são o melhor da vida.

O bebé acordou.

A mulher de cabelo mal amanhado pegou-lhe ao colo e ajeitou a roupa para lhe dar de mamar. Verónica assistiu, num misto de encanto e inveja. Reprimindo a pergunta: porque é que ela tem três e eu não consigo ter nenhum?

O filho mais velho empurrou o irmão e este desatou a chorar.

Deixa que eu vou lá, disse Verónica, sempre solícita.

Agachou-se para ficar ao nível dos miúdos. Tirou os óculos grandes para os poder olhar nos olhos. Disse-lhes coisas que a mãe deles não ouviu.

Os miúdos voltaram a brincar sem reclamar.

Enquanto Verónica caminhava de regresso ao banco de jardim, a mulher de cabelo mal amanhado pensava: tem tanto jeito com crianças, é uma pena que não queira ser mãe.

Cinco mulheres estavam sentadas...

19.09.21

    Cinco mulheres estavam sentadas numa mesa redonda ao fundo do restaurante. Era sexta-feira e o espaço estava lotado. Apesar disso, porque a mesa ficava num recanto da sala, o burburinho das outras mesas não as incomodava. Quatro das mulheres conversavam entusiasticamente. A quinta mulher estava de costas para uma esquina da sala, numa posição que lhe permitia observar todos os clientes, os funcionários frenéticos para chegar a todas as mesas, a pequena janela da cozinha onde a cozinheira, atarefada, barafustava com duas outras pessoas que não lhe respondiam de volta. A cozinheira seria provavelmente a dona, esposa do chefe de sala, que se mantinha à entrada e estava de olho no moço que preparava as bebidas, o mesmo que bebia um trago de qualquer das garrafas que tinha na mão sempre que o patrão estava ocupado a arranjar mesa para mais um grupo de pessoas. Apesar da vista privilegiada a mulher mantinha os olhos no copo de vinho à sua frente. No rosto um sorriso forçado, daqueles que persistem nos lábios não por vontade, mas por esquecimento. De quando em vez apetecia-lhe chorar e nesses momentos, mais do que em quaisquer outros, forçava mais os cantos da boca, como se, pelo trabalho feito pelos músculos da face, lhe fosse possível transmitir ao cérebro que os olhos estavam proibidos de deitar uma lágrima que fosse. Com o polegar e o dedo indicador a segurar a parte mais baixa do copo de pé alto, rodava o copo e fazia-se atenta às pequenas ondas do liquido.

    As duas mulheres que estavam de costas para o resto da sala aproximaram as cabeças. A que estava sentada mais à direita, de cabelo curto pintado de preto, uma mulher bem vestida que pousara uma mala cara no ombro da cadeira, falava para a que estava sentada à sua esquerda, uma mulher de cabelo castanho claro, longo e ondulado, também ela com uma evidente preocupação pela imagem, mas com um gosto menos requintado. A mulher da esquerda ouviu tudo o que a amiga lhe disse e, depois de beber mais um gole de vinho, lambeu os lábios e acenou afirmativamente com a cabeça enquanto dizia em surdina: é isso, não podia concordar mais. Depois, num ato que se sentiu contínuo, disse para a mulher sentada de costas para o canto: o problema é que te desleixaste, Sara. Nunca tomaste conta de ti e só piorou quando foste mãe.

    Fez-se um silêncio incómodo em que todas beberam um gole de vinho, não por vontade, mas para aproveitarem para avaliar o momento e perceberem para onde aquela conversa ia. A comida ainda não tinha chegado à mesa e até ao momento, enquanto gastavam uma garrafa de vinho como entrada à refeição, era a vida de Sara que estava na boca das restantes quatro, que, apesar de tecerem considerações vazias e comentários que não passavam de chavões e lugares comuns, nenhuma tinha ainda tido coragem de lhe dar a sua opinião sincera. Esta, a mulher de cabelos longos e ondulados, fê-lo por saber que não estava sozinha, que aquela ideia, agora verbalizada, iria ser suportada pelo menos por mais uma.

    Talvez tenhas razão, disse Clara antes de levar o copo à boca para beber o resto do vinho. Depois pegou na garrafa que estava em cima da mesa e voltou a encher o copo até meio.

    Acho que estás a ser injusta, disse a mulher que se sentara ao lado de Clara. A maternidade é uma experiência maravilhosa, mas muito difícil, redefine as nossas prioridades, mas terias de ser mãe para compreender isso, concluiu visivelmente agastada com o tema que todas sabiam não ser novo entre as amigas.

    Não tem nada que ver com filhos ou desleixo, pensou Clara, mas não lhe apeteceu dar justificações da sua vida e deixou que se desenrolasse a conversa. Afinal de contas o que quer que dissesse não mudaria a abordagem das amigas que, por aquela altura já tinham transformado a sua vida num tema delas.

    Ter filhos não é desculpa para tudo e a Clara nunca foi consistente a cuidar de si mesmo antes da miúda nascer, disse a mulher de cabelo longo e ondulado. Para além disso a criança já tem o quê? Cinco anos?, acrescentou olhando para Clara que levantou a mão direita com os dedos afastados em confirmação da idade da filha. Quantos anos são precisos para uma gaja se organizar? Vá lá, Clara, tu sabes que tenho razão. Diz aqui à Luisinha que ter filhos não é desculpa para tudo, rematou, procurando validação na mulher que se sentava ao seu lado direito.

    Clara não disse nada, as amigas tinham as suas próprias quezílias com que se entreter. Clara queria um jantar amistoso, onde não se falasse de temas marcantes, onde os seus lamentos, angústias e culpas diárias não fossem assunto, onde pudessem rir de coisas fúteis e sem significado. Onde não tentassem resolver a sua vida por si tendo por bitola as suas realidades. Mas, se bem conhecia o seu grupo de amigas, já teriam um comboio de e-mails trocados, usando o e-mail do trabalho, parando o que estavam a fazer e tratando da privacidade alheia como um assunto prioritário. No subjet “Nem imaginam” e o incêndio começaria com a frase: eu nem queria acreditar, mas o Miguel e a Clara vão divorciar-se. O segundo e-mail seria a questionar quem tinha deixado quem e o terceiro o porquê da separação. Depois vinha a avaliação.

    Ao perceber que tinha o copo novamente vazio, Clara chamou o empregado, pediu que trouxesse mais uma garrafa igual e aproveitou para perguntar porque razão as refeições estavam a demorar tanto. Estamos com menos uma pessoa na cozinha, lamentamos a demora, esclareceu o empregado, diligente e provavelmente desgastado de plantar a mesma frase em todas as mesas.

    Enquanto rodava o copo vazio, mantendo o exercício em que se aplicara todo o tempo em que ali estivera sentada, Clara, ouvindo as opiniões das amigas, deu consigo a pensar nas bases daquela amizade. Como é que, vinte anos depois de se conhecerem, ainda dava consigo ali, rodeada pelas miúdas agora mulheres, que sempre ditaram frases começadas por devias fazer isto e devias era fazer aquilo.

     Imaginou se seria assim caso a notícia comunicasse a sua morte. Se também nessa ocasião se sentariam juntas num qualquer sítio, regadas a vinho, a encontrar todas as formas de culpa que lhe podiam imputar. O peso a mais, as escolhas menos saudáveis, a melancolia, terminando com um: estava-se mesmo a ver que acabaria por acontecer mais cedo ou mais tarde.

    O jantar acabou e à porta do restaurante, depois de fumarem um cigarro, despediram-se como se tivessem estado a debater a vida de alguém que não iria para casa com toda aquela informação a martelar a sua já imensa culpa. Culpa por tudo o que sabia que podia ter feito melhor e culpa por não saber de que mais sentir culpa.

     O silêncio da casa parecia mais pesado que o batucar de um tambor. Descalçou-se à entrada para não ouvir o som dos seus próprios passos. Entrou na cozinha. Abriu a gaveta dos talheres e tirou uma colher. Foi ao congelador e tirou uma caixa de gelado. Encostou-se à bancada, fitando a parede, enquanto comia colherada atrás de colherada sem dar valor ao prazer da iguaria que se derretia na boca. Tinha passado o jantar a atirar pedaços de comida de um lado para o outro, não estava capaz de comer à frente delas. Elas, que a achavam desleixada, com peso a mais. Elas que tinham soluções. Elas que diriam depois de entrar no seu carro coisas como: viste como é que ela comeu, enfartou-se de pão, não deixou uma migalha do prato.

Luísa

Parte 10 - Conto

01.09.21

Quando cruzei o meu olhar com o da bebé, podia jurar que eram os olhos da minha mãe que me fitavam. Foi uma gravidez calma, sem dores ou idas urgentes ao hospital por pequenos sustos. Não engordei demasiado porque comia em excesso em resultado do stress, como aconteceu na primeira gravidez. Não fiquei um palito com barriga como aconteceu da segunda. Uma mãe demasiado cansada a fazer outro bebé.

Passou um ano desde que a carrinha conduzida pelo senhor Américo parou à porta da casa grande da quinta. Voltei à minha casa meia dúzia de vezes. Para mudar o processo escolar das miúdas para aqui. Para levar a minha mãe a consultas de acompanhamento, ainda que contra a sua vontade. Para tirar todas as minhas coisas daquele que foi o meu lar por mais de dez anos. A casa que as minhas filhas conheceram como sua. Quando tirei o último saco chorei, olhei em volta e chorei pelas saudades que já sentia dos recantos daquele meu espaço. O melhor e o pior da minha vida aconteceram ali.

Não vendemos a casa. Optámos por alugá-la. Assim ficaria como um investimento. A casa pagar-se-ia a si própria. Conseguimos uma inquilina excelente que não nos dá arrelias.

A Carina, menos apegada a tudo, vendeu a casa dela e só manifestou alívio por nunca mais ter de passar aquela porta. Por se ver livre do crédito habitação.

Quando propusemos ao nosso pai transformar o lugar num turismo rural o homem mostrou-se tão radiante que julguei que se ficava ali de excitação. Concordou com tudo o que quiséssemos fazer. Não quis valor de renda. Ofereceu-se para investir em melhorias se fosse necessário. Só pedia que, de vez em quando, uma vez por mês, quem sabe, o aceitássemos como cliente não pago.

Nem a Carina foi difícil de convencer.

As últimas semanas da mãe foram passadas num permanente abraço de família. Estávamos todos, sempre, a minutos dela. Exatamente porque sabíamos que a qualquer momento, podíamos chegar e ela já não estar connosco.

Até o nosso pai quis passar esse período connosco. Mantinha-se afastado. Fazia caminhadas longas para não se notar, mas, de quando em vez, lá dava com ele, encostado à cabeceira da cama dela, a falar-lhe em surdina de qualquer coisa que a fazia sorrir.

Estava um dia bastante agradável para dia de inverno. Ainda faltavam algumas semanas para o natal, mas tínhamos o espaço todo arranjado. Luzes, fitas, vermelho por todo o lado, brilhantes, bolas que imitavam neve. Chamou-me. Apetecia-lhe ir lá para fora. Queria apanhar ar, estava farta do quarto. Estava frio, mas bonito. O Daniel ajudou-me a sentá-la na cadeira de rodas, a aconchegá-la em mantas. Sentámo-nos no alpendre a fazer-lhe companhia.

Chegou-se a Carina, o Eduardo que agora trabalhava por conta própria e geria o seu horário, o meu pai, com a distância necessária. As miúdas brincavam ao longe. Riam na nossa direção, ocupavam-se da pequena que se encantava com tudo o que elas faziam.

- Vou ter saudades das miúdas. Especialmente delas. De vocês também. Pode ser que seja verdade, que as consiga ver lá de cima. Digam-lhes para que, de vez em quanto, acenem para o céu. Só para o caso de eu estar atenta. Assim sei que ainda se lembram de mim.

Pus-lhe a mão no ombro. A Carina, sentada no chão, deitou a cabeça no colo dela, como fazia quando era miúda e as coisas não corriam de feição na escola. E ela, dividindo o que tinha entre as filhas, como sempre fizera, segurava a minha mão por cima do ombro. Afagava o cabelo da Carina, devagar, como quem amansa um bichinho com medo.

Já não me lembro quanto tempo ali ficámos, em silêncio, ao som das gargalhadas das miúdas, até que nos disse que queria voltar para dentro. Ajudámo-la a deitar-se. Demos-lhe um beijo antes de sairmos para outros afazeres na casa. Era assim naqueles dias, despedidas muitas, despedidas que não se diziam por despedidas.

Partiu leve e pacífica. A dormir.

Nas semanas seguintes senti-me mal. Vomitava sistematicamente. Estava fraca. Achei que era tristeza, que era ansiedade, que era dor da perda, que era normal. Passaria quando o corpo e a cabeça se habituassem àquele vazio. Foi a Carina que insistiu que eu fosse ao médico.

Feitas as análises confirmou-se a suspeita do médico. Ri-me quando colocou a hipótese de eu estar grávida. Estava.

As miúdas ficaram radiantes. A minha irmã primeiro torceu o nariz. Depois achou fantástico que a filha tivesse uma prima ou primo de idade mais próxima.

- Vida nova. Pessoas novas. – disse o Daniel, mais eufórico do que eu podia imaginar.

Da minha parte não sabia o que sentir. Passei a gravidez assim, sem saber o que sentir. Tinha uma perda para sarar, uma mudança de vida para me habituar, um ritmo que se entranhava cada vez mais e agora, com esta idade, tudo de novo. Fraldas, choro, chupetas, noites interrompidas, primeiras gracinhas, primeiras palavras. Desta vez não tinha a minha mãe a quem ligar, por isso, na maioria dos dias, quando lavava a loiça e tinha a janela aberta, olhava para cima e pedia-lhe que me desse uma ajuda. Que fosse tomando conta daquilo a que eu não chegava. E a bebé mexia, pontapeava.

Quando chegámos a casa, eu cansada do parto e das primeiras noites. O Daniel fresco e a empurrar o carrinho. As miúdas pediram para mostrar o que era importante à irmã.

Pedimos-lhes cuidado.

Elas guiavam à vez. Num trabalho distribuído. Apresentavam uma casa, outra casa, o avô tardio que se sentava no alpendre da casa grande e era avô e hospede grátis. Um casal que estava a passar uns dias connosco ria com a desenvoltura das miúdas. A casa pequena da tia, a casa pequena onde ela ia viver. A piscina, o espaço para brincar, o escorrega, o caminho para as bicicletas. E o céu, onde morava a outra avó, aquela que só viam brilhar à noite, antes de irem dormir, para que nunca tivessem medo do escuro.

Luísa

Parte 9 - Conto

31.08.21

O Eduardo chegou para passar uns dias connosco e vinha acompanhado do Daniel. Estávamos na quinta há quase quinze dias e ele ligou-me a dizer que tinha metido férias e que gostaria de as passar com as miúdas. Pelo que as pequenas lhe contavam havia quartos suficientes para que, se eu assim entendesse, ele fosse gerido como um familiar afastado, pudesse estar com elas e não fosse um incómodo.

Percebi que ainda havia ressentimento, mas o tom era mais leve. Mais conciliatório. A distância, dizem, por vezes opera milagres.

Chegaram já passava da hora de almoço, estava um calor terrível, dos dias mais quentes desse verão. A minha mãe mantinha-se à sombra, no alpendre, sentada num cadeirão que trouxemos da sala. Abanava-se com um leque, bebia água fresca e refrescos carregados de gelo. Ria-se a ver as miúdas e, de quando em vez, lá se aventurava a molhar os pés na berma da piscina.

- Não morro sem ir nadar nua. Tenho é que esperar que as miúdas estejam deitadas, não as quero assustar com a inevitabilidade da gravidade no futuro.

Rimos. A mãe, que sempre fez pouco da sua vida, porventura a única forma que conhecia para imprimir algum afastamento da realidade que persistia em magoa-la, reaprendeu a fazer pouco da sua condição. Sempre que passava por ela e a olhava, eu condoída, eu pesarosa, forçando-me a pendurar um quadro daquele momento na minha mente, ela olhava-me de soslaio, como se tivesse uma lista de piadas negras prontas a ser disparadas a cada gesto piedoso ou melancólico.

Quando viu o Daniel sair do carro não se coibiu:

- Ora cá está o rameloso. – disse-lhe enquanto ele subia os degraus para a cumprimentar.

- Pelo menos agora já não escondes o que achas mesmo de mim.

- Não tenho tempo para tretas. Literalmente.

Riram-se os dois.

O Daniel sempre gostou da minha mãe e ela, apesar de lhe custar o que sabia que acontecia entre nós, tinha um carinho especial por ele. Pelo Eduardo também. Tratava-os como se fossem filhos, como se, por serem envolvidos nas asas dela, fosse mais uma razão para que não deixassem o ninho.

- Onde é que anda a tua filha mais velha? Está lá para dentro?

- Estou aqui – respondi da janela por cima do lava loiça – já aí vou, estou só a acabar de lavar a loiça. As miúdas estão na piscina, podes ir lá vê-las.

Estavam divertidos na água. A Carina deve tê-los encaminhado para uma das casas e trocaram de roupa. Vestiram os calções de praia e estavam a lançar as miúdas num concurso de piruetas. Devo ter demorado demasiado tempo a esfregar copos que se sujaram depois de bebermos água. Perdi-me em pensamentos. Detive-me com o que iria achar da minha aparência. Senti-me a mesma mulher ridícula de sempre, aquela que quer que os outros gostem dela antes de gostar de si.

- Então, gostaste do espaço? – perguntei-lhe quando acabara de lançar a pequena e olhava com dificuldade em direção ao sol, o rosto confiante de um pai que não pode transparecer que não sabe o que está a fazer, misturado com o medo de um homem que não sabe se terá aplicado força demais no lançamento de maneira a que a pequena acabasse do lado de lá da piscina aos gritos e a dizer que o pai era um bruto.

- Gostei. – disse-me com as mãos em pala, as sobrancelhas franzidas.

Saiu da piscina para me cumprimentar. Afastei-me. Não me queria molhar. Não queria que pensasse que estava tudo de volta ao normal só porque tinha aparecido. Porque sorria e brincava com as filhas.

- Estás bonita – disse-me – o cabelo curto fica-te bem. E as roupas com cores também. Estás….

- …mais leve.

- Sim.

- É a vida do campo.

- Deve ser.

As miúdas chamavam por ele. Não estavam dispostas e dividir o pai com mais ninguém, já bastava ter de parti-lo ao meio, uma metade para cada uma. Uma metade que mediam constantemente. Veio-me à ideia a pergunta: será que teria sido assim com o nosso pai, se eu e a Carina o tivéssemos tido na nossa vida como as miúdas têm o Daniel?

- Volta para a água, as pequenas estão cheias de saudades, querem a tua atenção.

Ele voltou para a piscina. Eu voltei costas e fui sentar-me ao lado da minha mãe. Ele guardava cuidadosamente as imagens que a vida lhe dava. É um lugar comum, tão comum que persistimos em não compreendê-lo, mas é preciso que o fim se aproxime para que queiramos ver o que está à nossa frente. Peguei no meu livro e fingi que lia a mesma página por mais de uma hora. Por cima das primeiras linhas espreitava o meu marido, que, apesar de infiel, era o homem que amava e perguntava-me se eu seria capaz de esquecer. Porque para continuar é preciso mais do que perdoar, é preciso começar um novo princípio e deixar enterrado o que ficou para trás. Olhava para a minha mãe. Fazia o mesmo que os fotógrafos fazem quando fotografam quem está a fotografar. Queria arquivar na minha memória aquela imagem, que me traria o descanso de saber que os últimos meses lhe deram mais do que alguns anos.

As miúdas foram para a cama cedo. Exaustas.

A minha mãe, depois de tomar os medicamentos para as dores. Não aguentou muito acordada.

A Carina e o Eduardo foram dar uma volta com a pequena, matar as saudades de estarem só os três.

Ficámos nós: eu e o Daniel. Ele encostado de um lado da portada que dava para o alpendre. Cigarro na mão. Eu encostada no outro lado. Copo de vinho na mão.

- A vida aqui é uma coisa diferente. – disse-me.

- É. – confirmei.

- E isto é mesmo do vosso pai.

- Sim. Estás a fazer contas?

- Estou. Mas não são as contas que estás a pensar?

- Então que contas são essas?

Olhou à volta. Inspirou profundamente. Parecia que estava a testar o ar. Apagou o cigarro.

- Este espaço podia ser um negócio.

- Explica melhor.

- Um turismo rural. Há tantos agora. Há procura. Imagina. Há uma casa para a tua irmã. Há uma casa para ti. Há uma casa grande com quartos para alugar. Há espaço. Há piscina. As miúdas podiam ir à escola aqui perto. Conhecer uma vida mais calma, mais simples.

- É uma ideia. A Carina falou nisso no outro dia.

- E tu o que é que achaste da ideia?

- Boa. Mas o pai das minhas filhas mora a mais de duzentos quilómetros de distância e eu não vou afastar as miúdas dele.

- E se o pai das miúdas viesse também? Vida nova. Casa nova. Pessoas (quase-e-com-muitos-defeitos-na-mesma) novas.

Olhámo-nos durante demasiado tempo. Como se estivéssemos a falar por telepatia. Até que ele acrescentou:

- Não a vejo desde que me disseste que nos íamos afastar. Acho que precisava de saber o que era ver-te sair para perceber.