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Exercício de escrita

Vinte e oito

06.12.22

Era lenta a correr, nunca ganhava a jogar à apanhada. Jogava mal à bola, tropeçava nos meus próprios pés e perdia a esfera em menos de nada. Era uma imbecil a jogar ao mata, porque uma pessoa meter-se a jeito para sofrer com uma bolada era coisa de parvos. Esfolava os joelhos a saltar ao elástico e chegava a casa a parecer que tinha descido com eles uma ribanceira. Era baixa para o basquete. Era gorda. Tinha cabelo encaracolado numa altura em que ninguém queria ter tal ninho de pássaros em cima da cabeça.

Passava as tardes a ver a pequena sereia, o cocktail, o dirty dancing e o Alice no país das maravilhas. Lia os mesmos livros vezes sem conta, inventava histórias sozinha e fazia peças de teatro só com uma atriz e um público sempre atento de três bonecos. Olhava para a praceta vazia e tinha pena de não ter nascido no lugar do meu irmão mais velho, porque no tempo dele a praceta era um parque cheio de crianças em vez de carros.

Na escola aprendi depressa que me safava melhor a fazer de Esteves (Herman) do que a jogar ao beijo ou estalo. Qd chegou a adolescência e os cadernos com as capas riscadas, com desenhos e dedicatórias das amigas, aprendi que tinha jeito para fazer as outras rir com as palavras. Escrevia para uma textos estapafúrdios misturando graças, palavras inusitavas e acontecimentos dos quais elas já nem se lembravam. Tens de me fazer uma também, diziam-me quando acabavam de rir da que tinha acabado de escrever. Sentia-me especial, sempre havia alguma coisa que fazia mais ou menos bem. Eu, quando estava para aí virada, escrevia.
Nessa altura nem me passava pela cabeça escrever mais do que aquelas baboseiras, até porque tinha escrito uma história, anos antes, num caderno de capa preta, e a Vânia (única leitora) tinha só dito que estava fixe com um encolher de ombros. Miséria. Tinha eu andado a ler um livro do meu irmão às escondidas para saber como é que se escrevia um livro de adultos, para uma crítica daquelas.

Mas a história dessa história fica para outras núpcias, que isto aqui no Instagram* tem caracteres contados e eu se calhar ainda faço disto uma espécie de crónica para a newsletter.

 

 

*estes textos são originalmente escritos para publicação nesta rede social 

Madalena - parte 2

Será que ele liga...

21.06.21

(Primeira parte aqui)

Queria aquele fim romântico.

Mas nada.

Passei o resto do dia a “ver as horas” no telemóvel, mesmo quando tenho relógio na parede da cozinha. Qualquer som que viesse do 

elemóvel me fazia saltar para o apanhar e ver se tinha chegado finalmente a mensagem desejada. Um desgosto a cada som. Percebi nesse final de dia que tenho demasiadas coisas subscritas, que dou o meu contacto para tudo e mais um par de botas. Notificações de jornais, de sites que não me lembro de ter consultado, mensagens de desconto do supermercado, da perfumaria, da farmácia e até de uma loja de cremes online onde comprei um produto que detestei e nunca mais encomendei nada.

Jantei distraída e não sei dizer se os miúdos comeram toda a refeição. Tenho a ideia que os deixei pousar os talheres sem lhes olhar para o prato e os deixei ir buscar um gelado ao congelador.

Depois de deitar os miúdos fui tomar um banho. Fiquei demasiado tempo debaixo do chuveiro. Fechei os olhos e imaginei que depois do tal jantar o convidava a vir cá a casa porque era um fim de semana em que estava com a casa só 

para mim. Imaginei que de manhã, depois de termos passado a noite juntos, depois de lhe ter pedido de apagássemos a luz, depois de acordar e sentir a vergonha de uma menina inexperiente; que ia tomar um banho sem conseguir tirar o sorriso do rosto. Imaginei que ele abria a porta da casa de banho sem eu dar conta, que se aproximava da banheira e eu me surpreendia com ele a olhar para mim sem saber há quanto tempo lá estaria. Imaginei que pedia para entrar e eu, consciente do meu corpo, me tentava tapar. Imaginei que me dizia coisas bonitas, que eu era linda de qualquer forma, que me pedia para não me esconder.

Entretanto a porta da casa de banho abriu-se.

- Ainda estás a tomar banho, mãe? – era o mais novo, andava à minha procura.

- Sim, estou quase a sair. Precisas de alguma coisa? Pensava que já estavas a dormir.

Disse-me que acordou com um daqueles sonhos em que achava 

que ia cair e depois sentiu muita vontade de fazer chichi. Com o som do meu filho mais novo a urinar ao meu lado a imaginação esmoreceu, quis que se despachasse, quis sair da banheira, enfiar-me no pijama velho, coçado e infantil e ir para a minha cama.

O pequeno voltou a deitar-se e eu fui para o meu quarto. Não conseguia ler, não me apetecia ver televisão.

Peguei no telemóvel e fui à internet. Entrei no Facebook e procurei por ele. Tinha tentado resistir a comportar-me como uma mulher deprimente que anda a pesquisar a vida de outras pessoas nas redes sociais. Mas não consegui. Era mais forte que eu. Encontrei-o. Tentei bisbilhotar o que era possível da conta que estava como privada. Nem os amigos conseguia consultar. Não percebia se era casado, se tinha filhos. Tinha uma fotografia tirada a jogar golf e mais nada.

Fiquei tentada a enviar um pedido de amizade. Pensei que poderia dar esse passo. Mas o receio de que fosse casado, de 

que tivesse uma família feliz, com dois ou três filhos e uma mulher glamorosa fez-me sentir ainda mais patética. A tipa que anda atrás de uma paixoneta antiga. Achei-me degradante. Desliguei o telemóvel.

Abri a gaveta da mesa de cabeceira e tirei de lá um maço de tabaco. Não se pode dizer que sou fumadora, mas nos dias em que a pressão aperta e o sono custa a chegar, encosto-me à janela do quarto e fumo um cigarro. Sinto um verdadeiro prazer nisso. Penso nas minhas escolhas e em como dei comigo ali, num quarto onde só tenho a minha companhia, numa casa precariamente arrumada, com dois miúdos que amo acima de tudo, mas que juntos formam um tornado que deixa a minha vida de pantanas.

Nos dias que se seguiram dei comigo, na pausa para um café, a voltar ao Facebook dele. Sentia que me comportava de forma obsessiva, mas não conseguia evitar.

O fim de semana chegou e os miúdos foram para o pai. Eu, que 

habitualmente ficava a cirandar por casa, sem me pentear ou vestir roupa decente, decidi ir à praia. Depilei-me com mais atenção, pus perfume, vesti um biquíni com a parte de baixo subida. Vi-me ao espelho de todos os ângulos, deitei-me no chão para ter perceção da minha figura deitada na toalha.

Fiz o mesmo percurso nos dois dias, sábado e domingo. Procurava à minha volta tentando dar a impressão de que não estava a ver se encontrava alguém. Um esforço muito mal desempenhado. Sempre fui uma péssima atriz. Estendi a toalha e fiz-me interessada num livro, mas não li mais de duas páginas com atenção. Lia um parágrafo e olhava para o mar, lia outro e olhava para o bar.

No sábado voltei para casa cabisbaixa. Passei pelo supermercado e comprei uma torta. Comi metade de uma assentada. Até ficar enjoada.

No domingo, depois de duas horas de toalha e a sentir que acabaria por desmaiar com uma quebra de tensão, decidi ir ao 

mar. Tentei fazer o mesmo percurso do fim de semana anterior.

Quando estava de saída passei pelo bar para comprar água fresca, reclamando comigo entredentes, sabendo que ia pagar uma exorbitância por uma garrafa de água que poderia comprar por meia dúzia de cêntimos no supermercado.

Estava na fila quando ouvi:

- Outra vez? Que coincidência.

Voltei-me e, sem mais, pus-lhe a mão no ombro e cumprimentei-o com dois beijos no rosto. A pele dele sabia-me tão bem como há quase vinte anos.

Percebi que se espantou com a espontaneidade daquele gesto. Percebi que ele deu conta que, até eu, fiquei surpresa com o meu à vontade.

- É verdade, é a minha praia de eleição. Tem sempre menos confusão. Comecei a vir para cá com os miúdos e agora venho na mesma quando não estão comigo. 

Levei a mão à barriga, tinha o pareo atado à volta da cintura, estava alto e deixava ver apenas a pele que me fazia uma cintura mais esguia. Refreei-me de ajeitar o soutien, ocorreu-me que as mamas - que agora não são rijas como as das miúdas que se saracoteiam pelo areal, - estariam desajeitadas, uma a querer sair da copa e a outra mais caída. Ambas a mostrar que estavam numa fase em precisavam sempre de suporte.

A fila não andava e eu não sabia mais o que dizer, até que uma mão de unhas bem arranjadas surgiu por detrás dele, passou por baixo do arco que o braço fazia com a mão enfiada no bolso dos calções e perguntou, sedutora, se ainda demorava muito.

Respondeu-lhe que não e aproveitou para apresentar uma antiga colega de faculdade.

Tive vontade de lhe dar um pontapé, de lhe pregar um chuto no meio das pernas, de o ver a ganir como um rafeiro, encostado 

a uma daquelas cadeiras, com as mãos entre as pernas a perguntar: para que raio foi isso?

Uma antiga colega.

Cumprimentei a esposa, espreitei por cima do ombro dela para a mesa onde estavam dois miúdos de cabelos claros à espera dos gelados que o pai tinha ido buscar.

A fila começou a andar surpreendentemente depressa depois disso. Paguei a minha água e fui-me embora, embaraçada, não por alguma coisa que tivesse dito, mas por ter passado uma semana em pensamentos adolescentes. Por ter ido ali, como uma mulher desesperada ou uma miúda imatura, à espera de encontrar quem não me procurou.

Cheguei a casa, larguei as tralhas logo à entrada sabendo que nas próximas horas ninguém tropeçaria nelas.

Entrei na cozinha, olhei para o resto da torta que ainda estava em cima da mesa. Deitei-a fora.

Vesti uma roupa velha de desporto que tinha lá para casa, calcei os ténis coçados que usava para ir despejar o livro ou dar um salto ao supermercado.

Fui correr.

Corri seiscentos metros e prometi que no dia seguinte repetiria.

Madalena - parte 1

Quando o passado destabiliza o presente

14.06.21

Tivemos de furar para encontrar um espaço para pousar as toalhas e todos os sacos de tralha que os miúdos obrigam para meia dúzia de horas à beira mar. A mochila com os documentos e o livro que não vou ler, mas que insisto em trazer. A mala térmica com sumos frescos e fruta. As toalhas que vou estender na areia e mal vão ser usadas. O saco dos brinquedos, com baldes, pás, ancinhos e carros que vão ser enterrados algures e terei de passar a última meia hora a descobrir. Isto quando não ficam esquecidos, resultando em birras, choro e lamentos profundos porque aquele era sempre o carro favorito.

Pergunto-me se o pai chegará à praia tão cansado como eu. Provavelmente não. O mais certo é que alugue um toldo, que os convença a jogar à bola, que vá com eles para o mar e que lá estejam o tempo quase todo. Posso jurar que quando dizem ter fome se sentam para comer no bar da praia. A acompanhá-los vai a namorada, desejosa de agradar, que ajuda a cuidar da garotada. Com o pai cada um leva a sua toalha, comigo o tecido torna-se demasiado pesado. Carrego eu que, não tendo aptidão para concursos de mergulho nem dinheiro para sumos de fruta fresca e tudo o que quiserem pedir no bar, os obrigo às sandes feitas em casa e às caixinhas de fruta descascada e cortada em quatro antes de sair de casa.

- Não quero essa fruta, está meio amarela.

Posso explicar mil vezes que a fruta está em excelentes condições. Que fica oxidada por estar descascada e em contacto com o ar. Mas não surte efeito. Comem as sandes. Pedem batatas fritas que levo, em pacotes pequenos. Por vezes, entregando todos os pontos, compro bolas de Berlim para os três. Nesses dias consigo ser uma mãe fixe.

Tento convencê-los a ficar pelas poças de água quando a maré está baixa. Conseguem divertir-se perfeitamente e eu posso divagar, fazendo-me interessada nas suas brincadeiras. Posso distrair-me a olhar à minha volta sem receio de que avancem demais no mar e acabe por precisar de chamar o nadador salvador. Podia entrar, sei nadar bem, mas não posso deixar um em terra desamparado e ir atrás do outro. A neurótica que tenho em mim precisa de mais controlo.

Já não vão na cantiga de ficar naquelas a que chamo piscinas do mar. Com sete e oito anos, ambos bons nadadores, habituados a horas de mar com o pai não aceitam ficar ali. Acordamos ir para a rebentação. Sabem que comigo não podem avançar muito. Têm de ficar onde têm pé, melhor, a água deve dar-lhes, no máximo, pela cintura. Suspiram. A mãe chata. Desmancha prazeres. Por mais que lhes explique da corrente e da rebentação. Não querem saber.

O pai é um bom pai. Cuida deles. É divertido. Fazem coisas engraçadas. Gostam de estar com ele. Há mais de um ano que namora com a mesma mulher, pelo que sei já vivem juntos. Entendem-se. Sou eu que lido mal com tudo aquilo. Com a descontração com que o pai vive. Com a minha incapacidade de dar a volta à minha vida. Com a minha entrega. Olho para baixo e vejo as minhas pernas flácidas, num tom esbranquiçado, como se tivessem sido lavadas com lixivia depois de muito encardidas. Vejo o fato de banho liso com um adorno no meio para disfarçar a prega que tenho na barriga. Não me sinto confortável de biquíni e sabendo que vou andar atrás dos miúdos, fazendo tarefas de mãe, muito menos. Não me apetece sugar os órgãos para diminuir o abdómen centímetro e meio.

Na praia para que vamos não há muitos jovens de corpos em forma, a esfregar a minha cara nas suas barrigas lisas e nas mamas que se seguram sozinhas. Aqui há mães, grávidas certas de que vão fazer melhor, pais babados porque ainda não sabem que, mais cedo ou mais tarde, vão querer uma mulher mais descontraída e não aquela que agora, mais do que mulher, é mãe. Por aqui há avós e famílias que se juntam a outras famílias para que os miúdos se possam entreter uns com os outros e os pais possam descansar das brincadeiras, que redundantemente terei de apelidar de infantis.

Abeiraram-se de mim dois homens, estavam embrenhados numa conversa aguerrida sobre Benfica e Sporting e eu reconhecia a voz de um deles. Tinha a certeza que sabia quem era, fechei os olhos por segundos para me concentrar no timbre e sim, confirmava-se, vinte anos depois, ainda conseguia saber de quem era aquela voz. Baixei a cabeça e, num movimento lento de quem está apenas a apreciar o sol que lhe queima o rosto, rodei a cara para confirmar a minha suspeita. Era ele. Cruzámos o olhar, mas fiz de conta que não o estava a ver, o meu objetivo estava lá atrás, em qualquer coisa que evidentemente não interessava a ninguém. Ele olhou para trás para ver quem estaria atrás dele e sorriu. Acenou e não tive outra hipótese que não reconhecer que o tinha visto. Naquele momento passaram-me mil coisas pela cabeça. Foram frações de segundo que duraram os quatro passos que deu em minha direção depois de tocar no ombro do amigo e ter dito qualquer coisa como: só um minuto.

Lamentei não ter cuidado mais de mim. Não ter ido ao solário para ganhar uma cor em vez de ir para a praia a parecer um trapo deslavado. Não ter seguido a ideia da Luísa, que corria quatro dias por semana e fazia agachamentos na casa de banho de hora a hora e tinha uma técnica de prensa abdominal para ter a barriga definida. Vieram-me à boca os quatro brownies que comi de empreitada no dia anterior, depois de os miúdos olharem para o que eu tinha acabado de tirar do forno e dizerem que lhes apetecia mais um bullycao. Ainda estavam mornos.

- Há quanto anos. - disse-me enquanto sorria, sempre sedutor. Percebi que me media o desconforto. Entretido com a minha falta de jeito.

- É verdade. O tempo passa depressa. – respondi desviando para ver onde andavam os miúdos. Conversa carregadas de frases feitas e lugares comuns.

- Ainda há dias me lembrei de ti. – confessou, como se fosse uma coisa perfeitamente normal. - Tenho pena que tenhamos perdido o contacto.

- Tens mesmo? - perguntei-lhe. Não me parecia que fosse o caso.

- Tenho. - disse sem hesitação.

- Então vieste aqui com a família? - perguntei. Não sei se porque queria desconversar, se porque queria mesmo saber se ele ali estava a fazer conversa de circunstância, investindo na sedução de quem quer ter um número para ligar sem compromisso.

- Não. Vim com um grupo de amigos. Juntamo-nos uma vez por mês. Fazemos uma almoçarada, bebemos umas imperiais, ficamos pela casa de um ou outro ou vimos à praia quando está bom tempo. Ao final do dia, quando as mães e os pais começam a dispersar com a criançada ainda dá tempo para uma partidinha de futebol de praia. Um gajo entretém-se.

Parecia honesto, mas o que eu queria saber era se tinha em casa a mulher, que ficava com os miúdos enquanto ele tinha um domingo de gajos.

- Mãe, tenho fome.

A mão molhada e gelada na minha coxa. Arrepiei-me.

- Diz, filho. - disse-lhe, não porque não tivesse ouvido à primeira, mas para comprar uns instantes para descortinar como ia rematar a conversa interrompida.

- Tenho fome. E frio.

- Está bem, vai chamar o teu irmão e vamos para a toalha.

- Ele não quer ir. Tens de ser tu a chamar.

-Tenho de ir eu. - disse ao olhar para o homem moreno, muito mais bem conservado do que eu. Cuidado. - Tenho de ir eu – repeti – deves saber como é.

Não respondeu.

Fui chamar o mais velho e arrastei-o para fora de água. Ele ainda lá estava, a ver cada passo.

Disse-lhe: gostei de te ver e o meu número continua o mesmo, a menos que tenhas apanhado, não perdeste o contacto.

Fui com os miúdos para a toalha. Embrulhei cada um na sua. Tremiam de frio. Tirei duas sandes e dois sumos da mala. Os sumos já não estavam tão gelados quando queriam. Sentei-me na berma, no tecido que sobrava. Deixei-me estar de costas para o lado em que ele subiria em direção à toalha. Assim calculei.

À noite, depois de deitar os miúdos, encostada à portada da varanda enquanto fumava um cigarro, ri-me sozinha. Seria bom se ele me ligasse.

Temos de viver tudo, carpe diem e o caraças.

06.06.21

Mas depois a vida passa ao lado e nem olhámos para o que estávamos a fazer.

Agora que me sento com a brisa do mar a ajudar que o sol me queime a pele, na casa que aluguei com o dinheiro que me sobrou da venda do apartamento minúsculo a que chamei casa durante cinco anos, penso nisso.

Quis ser tudo e não fui quase nada.

Fui a melhor da turma. Treinei no ginásio todos os dias para estar em forma. Comi o que devia em vez do que queria. Fiquei bem em vestidos desconfortáveis que agradaram aos outros. Arranjei o tal emprego com vista. Ainda que não seja a uma vista sobre Manhattan como os filmes apregoam. Comprei uma casa exígua num bairro caro. Fui às compras com as amigas. Vesti caro. Calcei ainda mais caro. Alimentei conversas que nem eu entendia, vazias como um saco levado pelo vento. Envolvi-me com homens ocos que outras mulheres gabavam. Tive relações de fantochada com homens que os meus pais apreciavam. Saltei de penhascos com uma corda nos pés, borrada de medo, à espera da promessa de sentir a vida. Só se vive uma vez, dizia-me a agente, e eu, sim senhora lá saltei. Detestei e fiz-me de contente. Agora sim, sentia a vida pulsar em cada milímetro de pele. Fiz viagens para onde não queria, fechada em resorts carregados de segurança, praias de água cristalina e histórias de flores à volta do pescoço, tudo para deliciar os que me rodeavam. Tinha de comer a vida, de fazer mais e mais. Não perder nada.

Aceitei projetos extra. Convenci-me que conseguia ser tudo. Pior. Que tinha de ser tudo. Só valia a pena assim. Sem perder tempo. Porque mais é sempre mais e parar é entregar os pontos. Porque a vontade supera tudo e todas as balelas por aí além. Li livros de superação. Engoli as páginas de todos os que me impingiam que conseguia conquistar o mundo desde que cumprisse mais este e aquele passo.

Depois a Mariana adoeceu. Nova. Sem filhos. Sem se ter deixado amar.

Não sei ao que sabe a vida, disse-me.

Fez tudo o que estava numa lista que alguém, algures, ninguém sabe quando nem como, fez. Esperou pelo príncipe que não apareceu. Não teve os filhos perfeitos que idealizou.

Na última vez que a visitei, enquanto eu cozinhava um prato de lasanha que ela adorava e que naquele dia não conseguiu comer, nauseada, lamentou ter vivido pelos olhos dos outros em vez dos seus. Numa procura incessante de encontrar aquilo que a faria brilhar para fora. Tinha pena de não ter tido um cão. Foi a falar do patusco que a vi chorar com mais mágoa. Desde miúda que queria um cão, de raça, rafeiro, pouco importava. Uma coisa pequena. Acessível desde que haja carinho para dar. Os pais não foram nisso, não havia vida, dava muito trabalho. Não havia tempo. Quando crescesse e tivesse a casa dela que arranjasse um. Depois meteram-se as coisas banais e típicas da idade, os namorados, os empregos, as coisas que as amigas achavam que eram boas. Os projetos, os objetivos e a lista invisível daquilo que temos de cumprir para deitarmos as mãos a um pedaço de espaço naquele olimpo mágico da felicidade. A felicidade não é medíocre, assim nos vendem. Ela acreditou. Eu também.

Não fez as pequenas coisas, as que foram atropeladas pelas ideias quadradas de fazer isto e aquilo. Que imbecilidade uma mulher adulta querer um cão como uma miúda de dez anos. Isso viria mais tarde ou mais cedo. Depois do emprego. Depois do marido fantástico. Depois de dois filhos perfeitos. Depois de uma casa com jardim e espaço para uma piscina. Iria a um criador de renome, uma cria com pedigree, como os dos anúncios. Um que teria aulas e saberia passear solto sem roubar bolachas a crianças no parque quando as apanhasse distraídas.

Quando percebeu que nunca teria um cão, perdeu a vontade do bicho de sonho. Dizia que se imaginava a caminhar na praia a chamar por ele e o canídeo, cruzado de múltiplas raças, quem sabe um olho de cada cor, a querer entrar na água. Que se via a ralhar, fazendo-se zangada, porque lhe tinha de dar banho outra vez. O croquete cão. Sal, areia e pelos. O formula imperfeita.

A Mariana não chegou a ter um cão. E eu, depois de me despedir dela, deixei de me conseguir levantar.

Uma semana. Passei uma semana em casa, com o mesmo pijama, as mesmas cuecas, o cabelo emaranhado. Não dormia. Sentava-me no sofá e olhava para o ecrã desligado. Deitava-me na cama e via um filme imaginário no teto.

Foi a minha mãe que apareceu lá em casa. Que me obrigou a entrar na banheira. Que me fez um jantar com os cheiros da minha infância. Que me disse “ainda posso tomar conta de ti como se fosses a minha bebé, mas tens de conseguir voltar a andar pelos teus pés”.

Passou duas semanas em minha casa. Cuidou-me como a menina desprotegida que tinha medo das refilonas na escola. Obrigou-me a pensar em mim, no que me atormentava. No que eu queria.

Vou vender a casa. Vou mudar-me. Vou despedir-me. Vou arranjar um cão. Disse-lhe uma manhã enquanto segurava com as duas mãos a chávena do café com leite que me fez.

Anuiu. Não me perguntou o que é que ia ser de mim. Percebeu que os sonhos que tinha para a sua menina a tinham devorado, como se um mostro a estivesse a comer de dentro para fora.

Conversámos.

Disse-lhe que os dias me passavam ao lado. Que tudo andava depressa demais. Que não sentia propósito na vida. Que fazia as escolhas com base no que era suposto. Queria tempo. Tempo para ler, para caminhar na praia e sentir a areia nos pés sem a pressa da caminhada assinalada pelo relógio moderno que me diria ao ouvido o ritmo e as calorias gastas. Andar pelo prazer de andar. Queria sair para comprar ingredientes frescos, fazer receitas novas sem a urgência do jantar para os amigos depois de mais um dia de reuniões. Queria sentar-me a ler o jornal, sem fazer de conta que o fazia, para picar uma tarefa. Queria conhecer um homem de camisa por engomar. Uma pessoa normal, daquelas que passam despercebidas, das que não me fizessem sentir que tinha de estar sempre no degrau mais alto. Alguém que me levasse a jantar a um restaurante barato, que trouxesse frango assado para comermos à mão.

O Osvaldo passou pelo portão carregado de água e areia. Arrancou-me da melancolia e atirou comigo para a realidade prática de que tinha um cão todo sujo a querer entrar em casa. Enrolara-se no chão a brincar com os outros cães. Fiz cara de má vontade. Perguntei-lhe se sabia a trabalheira que tinha em mãos. Retórica. Não só jamais responderia como bocejou, o que me pareceu um sinal claro do enfado que a conversa lhe causava. Sou eu que quero o sofá limpo, para ele está bom como der.

Sentou-se à espera que o chuveiro da rua estivesse pronto para o passar por água. Para ele a vida corre bem, nunca quis mais que aquilo, está contente.

E eu, olho para aquele ar pateta de quem tem tudo na vida com duas corridas à beira mar e rio-me. Os bichos sabem viver melhor que nós.

O amor não é para feios

01.06.21

A praceta parecia coberta por tons de cinzento. Uma película mortiça que deixava transparecer que aquele espaço, um dia carregado de crianças em constante corrupio, era agora um poço de lamentos dos velhos que ficaram para trás, fechados nas casas que compraram com os primeiros empréstimos habitação. Noutro tempo, aquele quadrado de betão era um organismo vivo. Podíamos ouvir as risadas, os desentendimentos e os acordos para saber que equipa ficava com os elementos mais fracos. Já se sabia que quem ficava com o Joca-quatro-olhos estava condenado porque o tipo tinha dois pés esquerdos, acabava sempre à baliza e quando a bola vinha alta punha-se na alheta, não fosse a esfera acertar-lhe nas lentes, dar-lhe cabo dos óculos e depois o pai arrear-lhe uns acertos quando chegasse a casa. Também se sabia a bom saber que quem ficava com o Joel, ponta de lança exímio que os mais novos acreditavam ter nos dedos dos pés olhos melhores que os do Joca, tinha vitória certa. Então a miudagem organizava-se, entendia-se com uma estirpe de justiça que se lhes esvaía do corpo com as pancadas da vida a caminho da idade adulta. As mães chamavam os filhos à hora de jantar, os miúdos faziam-se surdos.

Ia à janela e via-os divertidos lá em baixo. De quando em vez pedia para ir brincar, mas a mãe raramente estava pelos ajustes. Se depois caíres ou não conseguires acompanhar os outros nos jogos não me venhas para aqui choramingar. Por mim ficas em casa com as bonecas, entreténs-te melhor sozinha, dizia-me pelo meio das tarefas de casa, como se a minha solidão fosse mais um prato de restos que arrumava no frigorífico. As pernas pesadas não me deixavam correr tão depressa como os outros. A Núria sabia-o tão bem que quando eu lá chegava dizia para todos: a gordinha chegou no fim por isso é a gordinha a apanhar. Acontecia mesmo que atrás de mim viesse alguém mais atrasado. E eu, se queria jogar, tinha de correr atrás deles, que eram rápidos e ágeis, acostumados àquele exercício. Até o Joca, sempre na mó de baixo, regozijava com o meu tormento. A minha chegada representava simultaneamente um descanso e a oportunidade de saber, ainda que a espaços, o que era estar do lado dos mais fortes. Sabiam que não tinha hipótese e tiravam partido de me ver às voltas, desgastada, humilhada, desnorteada, derrotada por não ser capaz de apanhar nenhum. A mãe espreitava à janela, desejosa para que eu voltasse para dentro, não tanto para que o meu sofrimento terminasse, mas para que o seu motivo de humilhação não perdurasse por tanto tempo. Mais valia que me mantivesse caseira, calada e sossegada. Que lhe aparecesse com boas notas para me argumentar intelectual, a única coisa que via em mim elegível para menção, sem que tivesse de seguir o seu discurso com um explanar de culpas, receios e admoestações pérfidas que aplicava à sua pessoa. Ao fim de poucos minutos, acometida por uma tristeza profunda, sentia que as pernas não iam aguentar mais o esforço, que o desânimo carregava em mim como uma pedra alapada às costas. Desistia. Já vais? Oh, não faças isso, diziam entre gargalhadas.

Algumas vezes aparecia a Sara, a filha da cabeleireira, que era mais nova que eu, mas que ao contrário de mim mostrava uma valentia tremenda. Não descia para brincar com eles, descia para usufruir do espaço porque os pais ainda não tinham tido oportunidade de comprar uma vivenda com jardim. Por alguma razão, tratava-me sempre de forma cordial e amável, nunca soube se por ser mais uma forma de remar contra os outros, demarcando-se dos seus comportamentos indesejáveis, se porque, de facto, alguma coisa em mim lhe suscitava interesse.  Ninguém se metia com a Sara, primeiro porque não lhe sentiam o cheiro a medo, depois porque o pai era GNR e todos sabiam que se arranjassem farinha com a filha do geninho era surra certa em casa. Pequena e franzina erguia o dedo a quem quer que fosse, enquanto eu, uma latagona gorda, de roupas largas que me faziam parecer enfiada num saco de batatas, escondia-me das mãos que sorrateiramente me apertavam o excedente de gordura, mas mais ainda dos risos e dos comentários.

Os estores da varanda dão agora lugar a umas cortinas deslavadas. Já não mora naquela casa ninguém da família. Sei que a mãe faleceu há vários anos, era Sara ainda uma miúda. Terminou a vida na ignorância de que o fim estava para breve, despedindo-se sem saber da filha que para si seria sempre uma menina, porque jamais a veria mulher.

O pai voltou a casar e teve outro filho. Ainda viveram naquela casa mais uns dez anos, mas depois diz-se que se mudaram para Palmela, compraram uma vivenda com jardim.

A tua tia Alice ligou, diz que não vai conseguir vir ao funeral. Mandou entregar uma coroa de flores na igreja, como se isso substituísse a despedida que se deve à família, disse-me a tia Dulce antes de fazer uma pausa, estudando a minha expressão para perceber se também eu me amarguraria com aquela ausência no funeral da mãe. Mantive-me calada e esperei que concluísse o que tinha a dizer ou se retirasse. Queres ligar-lhe de volta para agradecer, acabou por perguntar na sua voz sempre estridente, subtraindo-me finalmente do meu estado letárgico. Olhei-a como quem olha o vazio e limitei-me a abanar a cabeça em negação. Não me apetecia falar com a tia Alice.

A tia Alice era irmã do meu pai e detestava a mãe, achava-a uma déspota, uma mulher vil e amarga, como aliás todas as pessoas sobre quem a mãe impunha uma presença tirana e repressora.

O que é que tens aí, Raquel, algum livro que a tua mãe gostava?, indagou sabendo perfeitamente que a mãe não tinha qualquer afinidade com os livros. Achava-os uma perda de tempo, a ocupação dos desalentados, o último recurso de quem não tinha estofo para a vida real. Inventar histórias como forma de vida, o que é que isso faz pelas pessoas?, dissera-me quando lhe contei que queria estudar literatura. Um curso de fim de semana, isso não é uma formação superior, é um entretém para os tempos livres, esclareceu.

É um livro de que sempre gostei e que li muitas vezes na minha adolescência, encontrei-o na estante do meu antigo quarto e apeteceu-me reler algumas passagens, expliquei. Fez um som indistinguível, pousou as mãos por baixo dos peitos fartos e encolheu os ombros. Não me entendeu naquele momento, como aliás nunca me havia entendido. Mais uma vez ter-me-á comparado a Amélia, sua filha, menina prodígio, mulher exemplar.

Na Amélia ia ficar muito bem.

Põe os olhos na tua prima.

Devias passar mais tempo com a Amélia.

A Amélia vai estudar uma profissão a sério.

Os rapazes não tiram os olhos da Amélia.

A Amélia só anda agarrada a esses livros de faz de conta nas férias da escola. Não deixa que os romances lhe empatem a realidade.

Esse rapaz não é para ti, é para alguém como a Amélia. Olha que o amor não é para feios e se anda a cirandar é porque quer alguma coisa fácil.

A Amélia representava tudo o que a mãe queria que eu tivesse sido, incorporando, simultaneamente, a justificação para toda a repulsa que sentia por mim. Chegou a dizer, quando me viu o vestido do baile de finalistas mal assente nas formas, que mais valia que o corpo se lhe tivesse fechado no dia em que pedi para nascer. Se era para passar pelas dores de trazer uma filha ao mundo, que fosse para trazer uma como Amélia. Perguntou se por acaso eu fazia ideia da vergonha e da humilhação que era, nessa disputa que existia sempre entre irmãs, uma rivalidade que persiste apesar do amor fraterno; se eu imaginava a dor, o sentimento de desilusão, por ver-me assim, sabendo-se necessitada de mentiras engenhosas para argumentar a razão pela qual não tinha uma fotografia para que, juntas, pudessem comparar e recordar um marco da sua descendência.

As roupas femininas e justas ao corpo que eu não podia vestir porque não tinha cintura, custavam-lhe. Só tens esta bola de carne aqui à volta. Valem-te as mamas grandes que compensam esta protuberância tão marcada, dizia-me. Enquanto trocava de roupa no provador podia ouvir a conversa com as lojistas. Chamava mais uma vez a si a culpa do meu estado, dizia que só podia ter falhado como mãe, que só podia ter fracassado nalguma coisa e que se sentia duplamente esmagada: por não ter feito melhor e por não ter compreendido onde estava a errar para que pudesse agir atempadamente. Vinham em seu socorro, expressando compaixão, dizendo coisas como: nem sempre a responsabilidade é das mães, fazemos o que podemos, mas os filhos por vezes não querem ouvir o que temos para lhes ensinar.

Deixei que o silêncio gerasse o incómodo necessário para que a tia se fosse embora. Nunca soube lidar com a ausência de palavras no ar, como se a atmosfera se tornasse arenosa e ela não suportasse respirar assim. Virou costas e foi arranjar mais alguma coisa para fazer. Era como a mãe, pareciam cópias, no feitio e na aparência. Ambas esguias e bem vestidas. Cautelosamente maquilhadas com o cabelo curto e carregado de laca. Arrumavam, organizavam, ajustavam, aspiravam, passavam a ferro, costuravam. Não existiam tarefas que não soubessem fazer impecavelmente. Achavam que a criatividade só tinha serventia quando respondia a um propósito de utilidade palpável. Como quando alguém inventava um novo utensílio de cozinha ou um eletrodoméstico que lhes facilitava a vida. Talvez fosse por isso que o meu primeiro livro, o que entreguei em mãos à mãe, tendo-me esforçado por lho dedicar na esperança de uma pinga do seu amor, de ser alvo do seu orgulho, está, desde o momento em que lho ofereci, dentro da mesa de cabeceira. Nunca foi tocado.

Segurei no Carta ao pai com as duas mãos e folheei-o procurando algumas das passagens assinaladas. Em miúda acreditava que Kafka me entendia melhor do que ninguém. Talvez me compreendesse naquele momento, e se assim fosse, se mo segredasse ao ouvido, talvez eu sentisse menos nojo por não me angustiar com aquela perda.

Ainda me recordava do dia em que a bibliotecária mo tinha aconselhado. Era uma das poucas alunas que visitava a biblioteca da escola e de quando em vez, numa troca pueril de ideias sobre este ou aquele livro, acabávamos por discorrer noutros temas. O meu era sempre o mesmo: a necessidade de ler para conhecer um mundo onde pertencesse, já que aquele onde vivia me rejeitava. Na sua carta, Kafka discorria sobre tudo o que o pai havia feito e não feito, sobre a sua falta de aceitação do filho, sobre a angústia de crescer com a comparação permanente a alguém que, por oposição a si, era confiante e forte e que, em vez de o proteger na sua delicadeza e fragilidade, agudizava a sua dor. Talvez o escritor, no seu eterno confronto com o pai, me fizesse sentir menos perdida na relação desgovernada que tinha com a mãe.

Tentei escrever uma carta similar à mãe, investindo em linhas claras, sem recurso a figuras de estilo ou a quaisquer aliterações que pudessem dar azo a uma interpretação incorreta. Até porque, se havia coisa que a irritava era o uso de metáforas para explicar o que podia ser dito de forma literal, sem subterfúgios.

Nunca consegui. O medo de ser insuficiente nas palavras aterrorizava-me. E se me esmagasse também a esperança na escrita? A única coisa que ainda não lhe havia sido dada a criticar para que pudesse considerar inferior.

Perguntei-me se naquele momento, sabendo-a fria no caixão, impossibilitada de responder a cada argumento, se assim seria capaz. Senti-me cobarde.

A porta do prédio da frente bateu e fez um estardalhaço. A vizinha do último andar saía com a carteira debaixo do braço. Ia certamente à bica. O cabelo estava igual, alourado e armado à custa de muita laca. Recordei-me da aposta dos miúdos, uns acreditavam que se lhe acertassem com uma bolada na cabeça, a esfera faria ricochete deixando aquele capacete intacto. Outros, estavam em desacordo. O ponta de lança exímio garantiu que lhe acertava com um petardo tal que lhe havia de desmoronar a armação. O Joel chutou e o Joca deu à sola, não fosse alguém registar que estava metido ao barulho. Ri-me sozinha.

O chiar da máquina velha já não lhe causa transtorno.

27.05.21

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Transporte de outros tempos, gáudio dos turistas. Ao princípio, quando ouvia o barulho de ferro prensado contra ferro, numa travagem que parecia garantida pela força braçal, aterrorizava-se. Agora é como se o som não existisse, faz parte dele como o cantar dos pássaros faz parte da vida da mãe, sentada na varanda, à espera que a velhice acabe, a última casa do jogo.

Olha em frente, estende a mão para que paguem os bilhetes, guarda as moedas, faz o troco, estende a mão de novo, arranca antes que tenham tempo de se sentar. Que se agarrem aos assentos como ele se agarra ao volante para que o que resta da vida não abane o que lhe falta para se deixar cair.

Quando o semáforo fica vermelho olha para o mar de gente que pulula o Chiado. Detém-se na miudagem, não tiveram aulas à tarde, juntam-se em grupos, radiantes num sentimento de rebeldia por estarem onde não devem sem que os pais saibam, felizes pela liberdade que sopra as primeiras brisas nas asas inexperientes. Aquela é a maior sensação de liberdade que terão, sabe-o e sabe também que ainda vivem alegres, enquanto estiverem alheios à dureza da vida. Uns terão mais sorte que outros, terão pais para alavancar as amarguras, que lhes dirão para aguardar por melhores oportunidades, que nada faltará em casa, que os ténis e as roupas continuarão a aparecer, que se arrisquem no estrangeiro, quem sabe numa multinacional, que lhes paguem cursos complementares, que falem com este ou aquele amigo a ver se há uma aberta lá no escritório, que o miúdo é novo, mas amadurecerá e será um bom funcionário. Esperto que só ele. Outros ter-se-ão a si para talhar o caminho, um ou outro sopro de sorte. De meia dúzia lá se formará um, os outros arranjarão empregos aqui e acolá, desejosos de ter o seu dinheiro, certos do falso conforto que meia dúzia de euros lhes trará, afinal de contas já podem sair à noite, pagar a carta de condução, comprar um carro em segunda mão que vão pagar numa mão cheia de anos. Uma mão cheia de anos não parece nada quando nem vinte anos temos. Vão estar contentes porque é certo, porque é sempre igual e nada tem que saber. Foi assim com Manuel.

A mãe dizia-lhe que a escola estava em primeiro lugar, mas os amigos tinham o que ele não podia ter, então arranjou os primeiros biscates. A escola passou para segundo e ele passou a pertencer ao grupo. Os ténis novos, a camisola de marca. Os outros avançaram e ele foi ficando para trás. Até tinha jeito. Boas notas a matemática e mal estudava. Podia ter sido alguém. A frase que se repetia, na sua cabeça e nas bocas de quem o conhecia em miúdo. Podia ter sido alguém. Como se se tivesse perdido nas drogas. Não tinha. Deixara a vida empenar-se num trabalho sempre igual. Nada de mal havia nisso. Tirando o carrocel dos dias, a invisibilidade de quem passa e não compreende que não é má cara, é amargura.

O tio conhecia gente na Carris, lá um supervisor. Estavam a contratar e aquilo era emprego certo, ordenado sem falhas, contrato a valer, nome dos quadros. Papelada que se entrega no banco para comprar casa com a moça com quem se casa numa festa humilde lá para os lados de Alfama, a tia dela até canta uns fados e com alegria tudo se faz.

A mãe sentada ao canto, finge uns sorrisos. Tudo se faz, mas o meu Manuel podia ser alguém. Como se a vida, se pequena e comum, devesse condenar-se à insignificância.

Meteram-no no elétrico, que era a aletria de turistada. Não havia nada que saber, era subir e descer, bom pé para o pedal, dar conta da máquina velha que os camones gostavam era do que era típico, autocarros de ar condicionado tinham lá eles. E assim passava o dia, os que andavam de cá para lá a trabalho, que paravam para dois dedos de conversa. A boleia ocasional à Matilde da tabacaria que só ia para os lados do Martim Moniz de quando em vez.

Os filhos chegaram cedo e Rosa, sempre que tinha folga ao fim de semana, lá pegava nos miúdos para os levar a ver o pai que andava para cima e para baixo no 28. Encantados faziam da carroçaria velha o que a imaginação lhes permitia. Orgulhosos do pai, ao leme daquela máquina importante que levava as pessoas onde lhes custava a chegar. Manuel ria, Rosa também. Mas os miúdos foram crescendo, Manuel foi ficando calvo, Rosa foi-se cansando das alegrias banais de fim de semana. Manuel ali, num sobe e desce com a maquineta. A vergonha dos filhos ao pé dos amigos. O teu pai podia deixar-nos em Santa Luzia, íamos dar uma volta, subíamos ao Castelo. Mas o pai não podia encher o elétrico com gaiatos que não pagavam, se lhe aparecesse o revisor via-se num imbróglio. Um ou dois ainda vá que não vá. Mas sete ou oito.

Então subiam a pé.

Às vezes, quando Manuel os via abrandava para lhes dizer adeus. Depois percebeu que incomodava. Passou a olhar em frente. Sempre a direito.

Podia ter sido alguém. Tempos houve em que a frase não lhe fazia sentido. Seria sempre alguém. Mas nestes dias, nestes momentos, naqueles em que os filhos viam através dele como se não existisse, dizia para si: podia ter sido alguém. Podia ser de carne e osso ao pé dos meus filhos que fingem não me ver.

Nunca lhes disse nada. Um dia a vida poderia ensina-los. Ou não. Em calhando fariam as escolhas certas, daquelas que, polvilhadas com alguma sorte, fariam deles alguém.

 

Levantava-se sempre à mesma hora. Tomava banho. Se tivesse turno de manhã vestia a roupa azul, tomava o pequeno almoço com a mulher. Não trocavam palavras. Orientavam-se numa dança de rotinas. Podia repetir todos os passos mesmo que ela não lá estivesse. Saía com o jornal debaixo do braço, apanhava o autocarro até Campo de Ourique, rendia o colega.

Quando não entrava ao serviço, estendia a hora do pequeno almoço, lia o jornal, fazia as palavras cruzadas, olhava da marquise a vida das velhas na vizinhança, aquelas que iam passando ao largo da morte e ainda alimentavam o bairrismo na avenida. Saía para ver a mãe que lhe contava das filhas destas e dos filhos daquelas. Uns, coitados, para quem a vida não tinha sido amiga, outros que eram alguém. Tu também podias ter sido, mas mesmo assim não te deste mal.

Manuel vai deixando de ouvir a mãe, as palavras transformam-se em sons indistintos, uma musiqueta irritante que, tal como o som dos travões do elétrico, já não o incomodam.

Olha para a rua e vê um vizinho novo a passar com o cão. A mãe comenta que isto agora são os camones e os avecs a comprar tudo, só estrangeirada e gente de dinheiro. Manuel pensa que um dia há de arranjar um cão. Que o irá passear pelas ruas estreitas com a roupa de fim de semana, como se fosse alguém.

- Tem-se sentido mais agitada ultimamente?

22.05.21

- Não. Penso que não. Às vezes ando numa correria, mas já é normal, não diria que me sinto mais agitada.

Ri-me embaraçada. Que raio de pergunta. Deixou-me a pensar, meio perdida. Mas não, abanei a cabeça para afugentar as ideias que iam surgindo. Não andava mais agitada. Sempre fui uma pessoa calma e organizada. Tinha as coisas sob controlo.

- Tem tido mais stress? Problemas que a andem a preocupar mais do que é costume?

- Não mais do que o habitual.

Nunca parei para pensar nisso. Se ando sob stress? Sei lá eu. As coisas vão aparecendo. É o normal nos dias de hoje. Os filhos, a trabalho, as coisas que tentamos fazer à parte disso para não ser só casa-trabalho.

- Os seus exames não mostram nada de preocupante. O coração está ótimo. As análises estão boas e o resultado da TAC também não mostra nenhum problema.

- Isso é bom, não é?

- É, sem dúvida. Mas…este episódio é a primeira vez que lhe acontece?

- Sim, por isso é que pensei o pior. O meu pai tem alguns problemas de coração e confesso que tive medo. Tenho dois miúdos pequenos que precisam da mãe.

- Compreendo. Devia ficar uns dias em casa. Parar. Deixar que os outros cuidem das tarefas por si. Descansar.

- Não posso fazer isso, doutora.

- Se continuar assim vai ser complicado. Vou passar-lhe aqui uma coisa para aliviar um pouco a ansiedade…

- … eu não sou uma pessoa ansiosa.

- … ainda assim. Vou passar-lhe uma coisa para a ansiedade e vou passar-lhe os papéis para que fique em casa nos próximos quinze dias. Acho que lhe fazia bem.

Estendeu-me duas folhas e disse-me estar disponível se eu precisasse dela outra vez.

 

O despertador tocou às seis da manhã. Pedi-lhe mais cinco minutos, só mais cinco. Mas não voltou a tocar e acordei meia hora depois. Saltei da cama. Tinha pensado em adiantar alguns e-mails antes de acordar os miúdos, mas já não ia dar. Amanhã começo e faço aquilo que dizia no livro que li. Fui casa de banho e mandei água fria para a cara. Abri os estores, corri os cortinados. Meninos está na hora de acordar, vamos levantar para tomar o pequeno almoço. Um queria mais tempo, o outro não se queria levantar. Ralhei. Ralhei. Voltei a ralhar. Gritei. DESPACHEM-SE! Levantaram-se insatisfeitos. Para que é isso mãe? Encostei-me ao balcão da cozinha, respirei fundo. Tinha dormido mal. A cabeça estava zonza, pensei que era falta de café. Liguei a máquina. Pus a mesa. Preparei a roupa para vestir. Os collants rasgaram-se. Não tinha outros da mesma cor. Escolhi um vestido diferente. Entrei na cozinha e já estavam a comer. Devagar, muito devagar. O pai está a fazer noite esta semana. Chegará pouco depois de termos saído. Bebi o café sem nada. Peguei-me com eles mais três vezes para que lavassem os dentes e se vestissem para sair. Olhei para o relógio. Não ia chegar a horas, logo hoje que precisava de fazer sair aquele e-mail à primeira hora da manhã. Está tudo bem. Tem de estar. Saímos. A vizinha de baixo parara o carro e estava a bloquear o meu. Buzinei. Estúpida de merda. Apareceu dizendo: esqueci-me dos óculos de sol, não consigo conduzir sem eles. Seguiu lenta e airosa. Arrancámos. Porta da escola. Beijinho à mãe, um bom dia, até logo. Fila. Mensagem: sempre consegues aquele relatório até ao final do dia? Sim, a resposta é sim, claro que sim. Telefone a tocar. .

Olá filha.

O que é que precisas a esta hora, mãe?

Tenho de falar contigo, o teu pai anda com a tensão muito alta e sabes que ele tem problemas de coração, não quer ir ao médico.

E o que queres que faça?

Que fales com ele, que lhe metas juízo na cabeça.

Tá bem, ligo-lhe mais logo, agora tenho de ir.

Ligar ao pai. Registei na agenda para não me esquecer. Estava quase a chegar. Tinha de mandar aquele mail. Tinha de acabar o relatório. Tinha de marcar as consultas de rotina dos miúdos. Tinha de marcar dentista. Tinha de aproveitar à hora de almoço para comprar alguma coisa para o jantar. Tinha de ligar ao meu pai. Tlim Tlim. Notificação do Facebook: a Angela faz anos hoje, dá-lhe os parabéns. Esqueci-me que a minha irmã. Corri para cima. Liguei o computador que pareceu mais demorado do que nunca. Abri o e-mail. Escrevi e reescrevi cinco vezes o conteúdo. Merda, parece que hoje nada me sai bem. Eu sei isto. Eu consigo compor esta mensagem. Vamos lá. As mãos pareciam meio trémulas. Lembrei-me que não comera de manhã. Este fim se semana os miúdos podiam ir passar o fim de semana aos avós, precisamos de descansar. De não fazer nada. De não limpar, pôr roupa a lavar ou arrumar brinquedos perdidos. Mas este fim de semana combinamos que os levávamos ao cinema, se calhar no próximo. Para a semana organizo-me melhor. Agora concertação. Mandei o e-mail. Sentei-me indecisa: o que fazer a seguir quando tudo tinha se ser feito ao mesmo tempo. Recebi uma mensagem da escola, sobressaltei-me. Abri e era só a despesa do ATL. Que estupidez. Penso sempre o pior. Braços partidos, cabeças escaqueiradas. Ultimamente parece que me sobressalto com tudo. Vê se te acalmas, Mariana!

Passaram a Joana e a Carla, falavam do ginásio, do fim de semana na Comporta, da conta de Instagram da Luísa com mais de dez mil seguidores, já lhe pagavam para comer iogurtes. Olhei para a minha blusa, tinha manchas de iogurte, não saíram com a última lavagem e eu nem tinha reparado. Comecei a suar. Abanei-me com um umas folhas de rascunho. Estava a ficar tudo turvo, mas só podia ser só uma quebra de tensão. Comi uma fruta passada que tinha na mala. Ando sempre com isto por causa dos miúdos. Não passou. O peito apertou. Um desconforto. Seria do soutien? Não me sentia bem. O coração estava acelerado e comecei a ficar em pânico. Isto não é normal. Não me digas que é assim. Entre tarefas logísticas e comezinhas que me fico. Nem disse aos miúdos que os amava. O peito apertou mais, a respiração parecia-me mais difícil. Meti a cabeça entre as pernas. A Clara espreitou por cima do monitor e perguntou-me se estava bem.

- Tenho dores no peito. Acho que se está a passar alguma coisa.

- Vou buscar um copo de água.

Água com açúcar, soube-me bem.

- Vamos apanhar ar.

Fomos. Saímos lá para fora. Inspirei com força. O ar parecia não entrar. Comecei a lutar contra as lágrimas.

- Não estou bem.

Pegou-me pelo braço e arrastou-me até ao carro. Ouvi-a dizer:

- A Mariana não se sente bem, vamos às urgências.

 

Sento-me na cozinha com a receita à frente.

Se calhar eu não consigo fazer tudo.

Maria de La Salette com dois tês, como...

20.04.21

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...gostava de esclarecer, penteava a cliente agastadíssima com a entrevista da princesa.

- Já viste aquela pobre coitada? Tinha a vida dela, era estrela de cinema, homens e homens aos pés, casou-se a pensar no conto de fadas e depois fazem-lhe aquilo. Tadinha.

Judite deixava a cabeça ir com a escova porque as escovagens eram tão bruscas que sentia o escalpe a fugir-lhe.

- Ó Salinha, faz é menos força na escova filha, que perdes a cliente se fico careca, amor.

- Ai desculpa Judite, tens razão. Fico assim com as injustiças. Tu sabes c’agente tem penado muito com isto da pandemia. Dei comigo - debruçou-se para confessar a clandestinidade em surdina ao ouvido de Judite - a ir a casa de clientes para lhes dar um corte ou um desbaste. Eles sofriam com cabelo a mais e eu com dinheiro a menos. Mas sabes, uma pessoa vive com pouco, a pessoa é que sabe da sua vida, não tem castelos nem joias, mas vive feliz. E depois é quando vejo estas coisas que penso cá para mim: Maria de la Salette da Cruz Gonçalves Pacheco, ainda bem que não caíste na desgraça da riqueza. Isto uma pessoa tem dois tostões e já nem sabe quem são os amigos, toda a gente quer mamar. Assim a pessoa sabe que quem está é porque quer. É ou não é Judite? - questionou enquanto, empolgada com a conversa, arreou com a escova no cocuruto de Judite. Esta última já saturada da conversa, queria a mise feita, a revista lida, a conta paga e pôr-se a andar.

   - Olha eu cá para mim - respondeu Judite passando as páginas da revista com uma violência desnecessária - muito me estou cagando para ti, para a princesa e para o dinheiro que não tenho. Gostava muito que acabasses o serviço porque eu, ao contrário de ti, lamento que não me saia a sorte grande para arranjar quem me faça o almoço, coisa que não tenho se não parares com as lérias - concluiu.

   Maria de La Salette, sem jeito, percebeu que estava a usar a escova errada há mais de dez minutos. Para estivar o cabelo precisava de uma escova redonda em vez da quadrada. Pegou no secador, carregou no botão e o aparelho não havia maneira de arrancar. Judite viu a coisa malparada. Maria de La Salete desligou a ficha, experimentou outra tripla, mas nada. Não tinha outro, os secadores profissionais eram caros e com a escassez de recursos, aquele, apesar de andar com engasganços ocasionais, tinha de fazer o serviço.

   - Não tens outro? - indagou Judite. Tinha outro, mas também estava pifado.

   Judite levantou-se com o cabelo molhado e pegou na mala para sair.

- Olha liga à princesa, o dinheiro faz-lhe tão mal que pode ser que ela te dispense algum azar para comprares maquinaria nova.

Diana não disse à mãe que ...

19.04.21

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...uma das miúdas do seu grupo de amigas lhe disse achas que temos mel na cona?, quando se afastaram dela e Diana as seguiu. Não disse que depois de lhe sair da boca um ah?, que lhe parecia agora angustiantemente estúpido, de tal modo que sentia a pele arrepanhar por todo o corpo só de reviver o momento. Não disse que a Andreia, sempre tão amável, uma das miúdas de quem mais gostava, se tinha voltado para trás e dito: sim, mel na cona. Só podemos ter mel na cona para andares atrás de nós como uma mosca atrás de merda. Também não disse que a Isabel, sua amiga desde a primária, tinha seguido com o grupo deixando-a sozinha, de mochila às costas, de cara à banda, sem perceber porque raio aquele conjunto de raparigas que considerava suas amigas a tratavam agora mal. Em vez disso perguntou à mãe como tinha passado o dia, se tinha conseguido descansar. Deu-lhe o braço, acompanhou-a e cedeu-lhe o ombro direito, para que fosse, em compasso vagaroso, do quarto até à sala, onde iriam comer a sopa que Diana ia aquecer em lume brando, no tacho pequeno vermelho que a mãe tinha comprado para o enxoval dela.

Comprei isso para ti, para o dia em que tenhas a tua casa, não me parece justo que o coloquemos a uso, dissera-lhe a mãe no dia em que a panela que colocavam a uso se estragou e o dinheiro não sobrava para comprar uma nova. Depois compras outra, quando estiveres melhor e conseguires trabalhar, argumentou com a mãe, até compras uma melhor, vais ver.

A ideia de voltar a sentir-se útil, de cuidar da filha em ver de se sentir um peso para uma miúda de doze anos fez Madalena sorrir.

- Eu é que devia perguntar-te como é que foi o dia, ainda sou a mãe aqui, tá bem senhora enfermeira? - Madalena gracejou como sempre. Riram-se e Diana esqueceu por momentos o episódio da manhã.

Serviu a sopa quente à mãe, colocou o seu prato ao lado, ligou a televisão e sentou-se. Fingia estar a prestar atenção ao programa da manhã, que estava quase a terminar, enquanto olhava de soslaio para o prato da mãe. Era preciso perceber se comia ou se fazia de conta que metia a comida à boca e se entretinha a brincar com as massas. Era assim que Diana sabia se a mãe estava pior ou não. Quando comia com satisfação era porque a manhã tinha sido mais calma, tinha tido menos náuseas e por isso sentia-se com apetite e capaz de comer. Mas quando assim não era, só o cheiro da comida a deixava agoniada.

Viu que estavam num dia bom e sentiu-se aliviada.

Enquanto comia a sopa e procurava distrair-se das notícias de abertura do telejornal ocorreram-lhe outros episódios em que as supostas amigas a tinham tratado mal. Lembrou-se do dia em que a convenceram a ir por um caminho diferente para a paragem de autocarro e, quando viu que este passava acelerado em direção à paragem, desatou a correr. Elas gritavam corre burrinha, corre, enquanto se riam e gozavam com a aflição de Diana para apanhar o transporte, com o barulho da mala a bater-lhe nas costas. Lembrou-se de que lhe atiravam restos de pipocas para o cabelo encaracolado, e que por duas vezes uma delas tinha dito à turma toda que as pintas brancas nos cabelos de Diana eram lêndeas, o melhor é afastarem-se ali da piolhosa, alertara rindo-se maliciosa.

Sentiu-se idiota por todas as vezes que foi convidada pela Sara para irem ao bar, para conversarem de coisas engraçadas. Não compreendia porque raio se sentia atraída para estar perto daquele grupo que a tratava como se não fizesse parte, quando tinha quem a esperava e a recebia sempre de braços abertos. Não percebo porque andas sempre com elas, nós somos amigas, tinha-lhe dito Sara. Mas Diana queria fazer parte de qualquer coisa que lhe parecesse mais cor de rosa, mais bem-sucedida. E aquele grupo, de uma forma estranha, parecia-lhe ter isso.

Depois de recolher os pratos, de os lavar e deixar a secar no escorredor, Diana arranjou a mala com os livros e os cadernos das disciplinas da tarde, apoiou a mãe para que conseguisse regressar ao quarto e ajudou-a a deitar-se. Quando lhe deu um beijo na testa, já Margarida começava a fechar os olhos para descansar. A medicação que tomava depois de almoço era demasiado forte. Diana tirou-lhe o turbante para que não sentisse demasiado calor quando descansava, pegou na mochila e saiu.

No autocarro encostou a cabeça ao vidro. Na primeira paragem em que o autocarro parou para deixar entra uma senhora idosa, Diana viu uma família, pai e mãe com a filha que seria pouco mais nova que Diana. A pequena estava a entrar no carro enquanto o pai segurava na porta e a fechava atrás dela. A mãe sentava-se no lugar do pendura e pareceu a Diana que mantinham uma conversa animada. Pela mochila, que viu o pai guardar na bagageira, estariam a caminho de a levar à escola. Não sentiu um vazio, nem mesmo uma grande tristeza, nunca tinha conhecido a vida daquela maneira. Não podia ter saudades do que nunca tinha tido. Pensou que um dia gostaria de ser como aquela mãe, que espera que o pai feche a porta à filha para irem a algum lado.

Quando chegou à escola o grupo estava no banco perto da entrada. Passou por elas e seguiu para perto da sala. Não sabia se conseguiria manter aquela firmeza, se fosse honesta consigo tinha de admitir que o havia feito porque elas lhe tinham dito que não a queriam perto, mas e se voltassem com falinhas mansas?

Conseguia ouvi-las ao longe a rir, com gargalhadas forçadas, daquelas que servem para magoar, daquelas que servem para dizer: estamos a rir-nos de ti, ó pateta!

- O stôr de português hoje não vem, a auxiliar já veio avisar. Queres ir ao bar? – Sara tinha aparecido ao lado de Diana, polegares presos nas alças na mochila que usava sempre com ambas as tiras enfiadas nos braços, não como as miúdas fixes que usavam só uma alça apesar de ser incómodo.

Diana assentiu.