A praceta parecia coberta por tons de cinzento. Uma película mortiça que deixava transparecer que aquele espaço, um dia carregado de crianças em constante corrupio, era agora um poço de lamentos dos velhos que ficaram para trás, fechados nas casas que compraram com os primeiros empréstimos habitação. Noutro tempo, aquele quadrado de betão era um organismo vivo. Podíamos ouvir as risadas, os desentendimentos e os acordos para saber que equipa ficava com os elementos mais fracos. Já se sabia que quem ficava com o Joca-quatro-olhos estava condenado porque o tipo tinha dois pés esquerdos, acabava sempre à baliza e quando a bola vinha alta punha-se na alheta, não fosse a esfera acertar-lhe nas lentes, dar-lhe cabo dos óculos e depois o pai arrear-lhe uns acertos quando chegasse a casa. Também se sabia a bom saber que quem ficava com o Joel, ponta de lança exímio que os mais novos acreditavam ter nos dedos dos pés olhos melhores que os do Joca, tinha vitória certa. Então a miudagem organizava-se, entendia-se com uma estirpe de justiça que se lhes esvaía do corpo com as pancadas da vida a caminho da idade adulta. As mães chamavam os filhos à hora de jantar, os miúdos faziam-se surdos.
Ia à janela e via-os divertidos lá em baixo. De quando em vez pedia para ir brincar, mas a mãe raramente estava pelos ajustes. Se depois caíres ou não conseguires acompanhar os outros nos jogos não me venhas para aqui choramingar. Por mim ficas em casa com as bonecas, entreténs-te melhor sozinha, dizia-me pelo meio das tarefas de casa, como se a minha solidão fosse mais um prato de restos que arrumava no frigorífico. As pernas pesadas não me deixavam correr tão depressa como os outros. A Núria sabia-o tão bem que quando eu lá chegava dizia para todos: a gordinha chegou no fim por isso é a gordinha a apanhar. Acontecia mesmo que atrás de mim viesse alguém mais atrasado. E eu, se queria jogar, tinha de correr atrás deles, que eram rápidos e ágeis, acostumados àquele exercício. Até o Joca, sempre na mó de baixo, regozijava com o meu tormento. A minha chegada representava simultaneamente um descanso e a oportunidade de saber, ainda que a espaços, o que era estar do lado dos mais fortes. Sabiam que não tinha hipótese e tiravam partido de me ver às voltas, desgastada, humilhada, desnorteada, derrotada por não ser capaz de apanhar nenhum. A mãe espreitava à janela, desejosa para que eu voltasse para dentro, não tanto para que o meu sofrimento terminasse, mas para que o seu motivo de humilhação não perdurasse por tanto tempo. Mais valia que me mantivesse caseira, calada e sossegada. Que lhe aparecesse com boas notas para me argumentar intelectual, a única coisa que via em mim elegível para menção, sem que tivesse de seguir o seu discurso com um explanar de culpas, receios e admoestações pérfidas que aplicava à sua pessoa. Ao fim de poucos minutos, acometida por uma tristeza profunda, sentia que as pernas não iam aguentar mais o esforço, que o desânimo carregava em mim como uma pedra alapada às costas. Desistia. Já vais? Oh, não faças isso, diziam entre gargalhadas.
Algumas vezes aparecia a Sara, a filha da cabeleireira, que era mais nova que eu, mas que ao contrário de mim mostrava uma valentia tremenda. Não descia para brincar com eles, descia para usufruir do espaço porque os pais ainda não tinham tido oportunidade de comprar uma vivenda com jardim. Por alguma razão, tratava-me sempre de forma cordial e amável, nunca soube se por ser mais uma forma de remar contra os outros, demarcando-se dos seus comportamentos indesejáveis, se porque, de facto, alguma coisa em mim lhe suscitava interesse. Ninguém se metia com a Sara, primeiro porque não lhe sentiam o cheiro a medo, depois porque o pai era GNR e todos sabiam que se arranjassem farinha com a filha do geninho era surra certa em casa. Pequena e franzina erguia o dedo a quem quer que fosse, enquanto eu, uma latagona gorda, de roupas largas que me faziam parecer enfiada num saco de batatas, escondia-me das mãos que sorrateiramente me apertavam o excedente de gordura, mas mais ainda dos risos e dos comentários.
Os estores da varanda dão agora lugar a umas cortinas deslavadas. Já não mora naquela casa ninguém da família. Sei que a mãe faleceu há vários anos, era Sara ainda uma miúda. Terminou a vida na ignorância de que o fim estava para breve, despedindo-se sem saber da filha que para si seria sempre uma menina, porque jamais a veria mulher.
O pai voltou a casar e teve outro filho. Ainda viveram naquela casa mais uns dez anos, mas depois diz-se que se mudaram para Palmela, compraram uma vivenda com jardim.
A tua tia Alice ligou, diz que não vai conseguir vir ao funeral. Mandou entregar uma coroa de flores na igreja, como se isso substituísse a despedida que se deve à família, disse-me a tia Dulce antes de fazer uma pausa, estudando a minha expressão para perceber se também eu me amarguraria com aquela ausência no funeral da mãe. Mantive-me calada e esperei que concluísse o que tinha a dizer ou se retirasse. Queres ligar-lhe de volta para agradecer, acabou por perguntar na sua voz sempre estridente, subtraindo-me finalmente do meu estado letárgico. Olhei-a como quem olha o vazio e limitei-me a abanar a cabeça em negação. Não me apetecia falar com a tia Alice.
A tia Alice era irmã do meu pai e detestava a mãe, achava-a uma déspota, uma mulher vil e amarga, como aliás todas as pessoas sobre quem a mãe impunha uma presença tirana e repressora.
O que é que tens aí, Raquel, algum livro que a tua mãe gostava?, indagou sabendo perfeitamente que a mãe não tinha qualquer afinidade com os livros. Achava-os uma perda de tempo, a ocupação dos desalentados, o último recurso de quem não tinha estofo para a vida real. Inventar histórias como forma de vida, o que é que isso faz pelas pessoas?, dissera-me quando lhe contei que queria estudar literatura. Um curso de fim de semana, isso não é uma formação superior, é um entretém para os tempos livres, esclareceu.
É um livro de que sempre gostei e que li muitas vezes na minha adolescência, encontrei-o na estante do meu antigo quarto e apeteceu-me reler algumas passagens, expliquei. Fez um som indistinguível, pousou as mãos por baixo dos peitos fartos e encolheu os ombros. Não me entendeu naquele momento, como aliás nunca me havia entendido. Mais uma vez ter-me-á comparado a Amélia, sua filha, menina prodígio, mulher exemplar.
Na Amélia ia ficar muito bem.
Põe os olhos na tua prima.
Devias passar mais tempo com a Amélia.
A Amélia vai estudar uma profissão a sério.
Os rapazes não tiram os olhos da Amélia.
A Amélia só anda agarrada a esses livros de faz de conta nas férias da escola. Não deixa que os romances lhe empatem a realidade.
Esse rapaz não é para ti, é para alguém como a Amélia. Olha que o amor não é para feios e se anda a cirandar é porque quer alguma coisa fácil.
A Amélia representava tudo o que a mãe queria que eu tivesse sido, incorporando, simultaneamente, a justificação para toda a repulsa que sentia por mim. Chegou a dizer, quando me viu o vestido do baile de finalistas mal assente nas formas, que mais valia que o corpo se lhe tivesse fechado no dia em que pedi para nascer. Se era para passar pelas dores de trazer uma filha ao mundo, que fosse para trazer uma como Amélia. Perguntou se por acaso eu fazia ideia da vergonha e da humilhação que era, nessa disputa que existia sempre entre irmãs, uma rivalidade que persiste apesar do amor fraterno; se eu imaginava a dor, o sentimento de desilusão, por ver-me assim, sabendo-se necessitada de mentiras engenhosas para argumentar a razão pela qual não tinha uma fotografia para que, juntas, pudessem comparar e recordar um marco da sua descendência.
As roupas femininas e justas ao corpo que eu não podia vestir porque não tinha cintura, custavam-lhe. Só tens esta bola de carne aqui à volta. Valem-te as mamas grandes que compensam esta protuberância tão marcada, dizia-me. Enquanto trocava de roupa no provador podia ouvir a conversa com as lojistas. Chamava mais uma vez a si a culpa do meu estado, dizia que só podia ter falhado como mãe, que só podia ter fracassado nalguma coisa e que se sentia duplamente esmagada: por não ter feito melhor e por não ter compreendido onde estava a errar para que pudesse agir atempadamente. Vinham em seu socorro, expressando compaixão, dizendo coisas como: nem sempre a responsabilidade é das mães, fazemos o que podemos, mas os filhos por vezes não querem ouvir o que temos para lhes ensinar.
Deixei que o silêncio gerasse o incómodo necessário para que a tia se fosse embora. Nunca soube lidar com a ausência de palavras no ar, como se a atmosfera se tornasse arenosa e ela não suportasse respirar assim. Virou costas e foi arranjar mais alguma coisa para fazer. Era como a mãe, pareciam cópias, no feitio e na aparência. Ambas esguias e bem vestidas. Cautelosamente maquilhadas com o cabelo curto e carregado de laca. Arrumavam, organizavam, ajustavam, aspiravam, passavam a ferro, costuravam. Não existiam tarefas que não soubessem fazer impecavelmente. Achavam que a criatividade só tinha serventia quando respondia a um propósito de utilidade palpável. Como quando alguém inventava um novo utensílio de cozinha ou um eletrodoméstico que lhes facilitava a vida. Talvez fosse por isso que o meu primeiro livro, o que entreguei em mãos à mãe, tendo-me esforçado por lho dedicar na esperança de uma pinga do seu amor, de ser alvo do seu orgulho, está, desde o momento em que lho ofereci, dentro da mesa de cabeceira. Nunca foi tocado.
Segurei no Carta ao pai com as duas mãos e folheei-o procurando algumas das passagens assinaladas. Em miúda acreditava que Kafka me entendia melhor do que ninguém. Talvez me compreendesse naquele momento, e se assim fosse, se mo segredasse ao ouvido, talvez eu sentisse menos nojo por não me angustiar com aquela perda.
Ainda me recordava do dia em que a bibliotecária mo tinha aconselhado. Era uma das poucas alunas que visitava a biblioteca da escola e de quando em vez, numa troca pueril de ideias sobre este ou aquele livro, acabávamos por discorrer noutros temas. O meu era sempre o mesmo: a necessidade de ler para conhecer um mundo onde pertencesse, já que aquele onde vivia me rejeitava. Na sua carta, Kafka discorria sobre tudo o que o pai havia feito e não feito, sobre a sua falta de aceitação do filho, sobre a angústia de crescer com a comparação permanente a alguém que, por oposição a si, era confiante e forte e que, em vez de o proteger na sua delicadeza e fragilidade, agudizava a sua dor. Talvez o escritor, no seu eterno confronto com o pai, me fizesse sentir menos perdida na relação desgovernada que tinha com a mãe.
Tentei escrever uma carta similar à mãe, investindo em linhas claras, sem recurso a figuras de estilo ou a quaisquer aliterações que pudessem dar azo a uma interpretação incorreta. Até porque, se havia coisa que a irritava era o uso de metáforas para explicar o que podia ser dito de forma literal, sem subterfúgios.
Nunca consegui. O medo de ser insuficiente nas palavras aterrorizava-me. E se me esmagasse também a esperança na escrita? A única coisa que ainda não lhe havia sido dada a criticar para que pudesse considerar inferior.
Perguntei-me se naquele momento, sabendo-a fria no caixão, impossibilitada de responder a cada argumento, se assim seria capaz. Senti-me cobarde.
A porta do prédio da frente bateu e fez um estardalhaço. A vizinha do último andar saía com a carteira debaixo do braço. Ia certamente à bica. O cabelo estava igual, alourado e armado à custa de muita laca. Recordei-me da aposta dos miúdos, uns acreditavam que se lhe acertassem com uma bolada na cabeça, a esfera faria ricochete deixando aquele capacete intacto. Outros, estavam em desacordo. O ponta de lança exímio garantiu que lhe acertava com um petardo tal que lhe havia de desmoronar a armação. O Joel chutou e o Joca deu à sola, não fosse alguém registar que estava metido ao barulho. Ri-me sozinha.