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Exercício de escrita

Dezassete

24.11.22

Detesto incomodar. Detesto sentir que estou a ocupar espaço na vida de outra pessoa, como uma pedra que está a forçar a sua entrada no sapato. Detesto impor as minhas necessidades, perguntando se podem fazer isto ou aquilo por mim, deixando as pessoas numa posição chata de ter de dizer que não.

Habituei-me desde miúda a fazer as coisas por minha conta, se conseguisse conseguia, se não conseguisse é porque não era para ser. São más experiências passadas, somadas ao orgulho e ao receio de me colocar numa situação desconfortável. É um bolo em camadas de incómodo. A falta de jeito para pedir, o saber que estou a ocupar espaço e o mau estar que me causa quando do outro lado me deixam bem claro o peso do meu pedido.

Por isso quando terminei o meu manuscrito em junho só pedi cá em casa para ler. E pedi porque é quem mais me incentiva e porque nunca se sabe se sou a próxima J. K. Rowling e, por obrigações de matrimónio, tenho de dividir as mais-valias. Então não se pode queixar de ler meia dúzia de páginas.

Tive pessoas muito simpáticas que me desejaram sorte, que me disseram que se precisasse tinham quem lesse, que me deram contactos. Agradeci e disse: deixa lá estar, eu vou marrar com isto sozinha.

Acabei a levar na cabeça em casa, porque não pode ser assim, porque tenho de aproveitar quando alguém tenta ajudar. Eu nada.

Passaram-se quase seis meses, matutei muito e decidi chatear duas ou três pessoas, pedir uma opinião a quem percebe alguma coisa disto das palavras e das histórias. Ter opiniões sinceras e duras sobre o que está feito. Fiz umas mensagens sem jeito. Custou-me bater à porta como os funcionários da tv cabo e dizer: vim importunar, posso?

Tive sorte, ou a maturidade tem-me ensinado a ler melhor quem me rodeia e vou dando comigo a encontrar gente de uma generosidade que não sei se mereço.

Autoterapia

Newsletter

25.07.22

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No início deste ano decidi criar uma newsletter. Tenho algumas subscritas e gosto de as ler. Gosto de saber que, naquele dia, vou receber um e-mail que não é publicidade, uma conta para pagar, spam ou um problema para resolver. É só um momento prazeroso, que posso sempre acompanhar de um pastel de nata e um café, em que estou ali só eu com um conjunto de palavras escritas por alguém que quase parece ter tirado tempo da sua agenda para escrever só para mim. 

É claro que nem todas as newsletters são assim. São aquelas poucas que gosto de receber.

Então pensei e repensei o tema. Procurei criar algo que eu gostasse de receber. Esquadrinhei a minha agenda para ver onde raio havia de arranjar tempo para cumprir com esse compromisso e decidi criar a Autoterapia. Não tenho publicidade nem conselhos para produtos. Tenho um texto que escrevo em modo de conversa comigo mesma. Tenho um conto que escrevo especificamente para a newsletter mensal. Tenho os livros que li nesse mês e o que penso deles.

Depois, é vê-la sair no último dia de cada mês e esperar que as pessoas passem uns minutos agradaveis entretidas com qualquer coisa que não exige gostos, repartilhas, menções. 

Por vezes chegam mensagens de pessoas simpáticas que me dão o seu feedback. Gosto de receber essas mensagens, porque gosto de saber que consegui dar a alguém aquilo que me deram aqueles que escrevem as newsletters que gosto de ler. Escrita intimista, descomplicada, despretenciosa, uma conversa que se houve no café.

Durante três meses não consegui cumprir a entrega mensal. A gravidez, os seus enjoos, a reduzida capacidade de raciocinio, a falta de tempo e a necessidade de reorganizar detalhes da vida costumeira assim o exigiram. 

Desde junho que estou certinha e direitinha, a deste mês de julho está quase pronta e sai no dia 31.

Por isso, aqui fica o convite, se quiserem ser também destinatários desta carta que responde pelo nome de Autoterapia, podem subscrever aqui.

 

"Autoterapia", a minha newsletter

23.01.22

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Tenho pensado muito na melhor forma de levar a cabo este meu exercício de escrita. Gosto de escrever porque é terapêutico, porque me dá prazer, porque é uma das poucas coisas que faço com a cabeça 100% dedicada. Pensei em escrever histórias para o Instagram, mas a limitação de espaço e o dedo guloso do Zuquércoisinho fazem com que se torne cada vez menos aliciante, já que há um algoritmo ganancioso por detrás sempre a manipular o que mostra, a quem mostra e a ver se come dois tostões e meio a quem cria alguma coisa. Pensei em usar mais o blog, mas já tive tantos blogs que acabei por fechar porque sinto sempre que me falta alguma coisa que, não sei, não era o caminho (vou escrendo na mesma os meus apontamentos, mas preciso de qualquer coisa que seja construída com aquele toque de vinha de alhos, porque marina na espera). Pensei em escrever e não publicar nada. Meter na gaveta. Mas algumas coisas são mais giras se forem lidas. E o exercício de escrita só parece ter propósito se houver quem queira ler.

Então dei comigo a ler newsletters que achei mesmo interessantes (Carta Branca de Ana Sousa Amorim; Palavra por palavra de Lénia Rufino, Yellow Letter de Rafaela Mota lemos). Conteúdo que recebo e posso ler quando quiser ou puder. Conteúdo que não foi feito para likes e mil partilhas. Conteúdo honesto de quem gosta de escrever. Fui-me pondo de macaca de imitação, a pensar que podia ser isto. Podia ser uma coisa que me agradasse. Escrever sabendo que pelo menos o meu marido e a minha prima vão ler. Se não houver mais ninguém, pelo menos serão 2. Saber que escrevo para aquelas pessoas, se depois elas acabam por ler ou não já não sei. Não importa, está feito, enviado. Não há likes nem comentários. Não há imediatismo nem feedback esperado. Há um processo de escrita e com sorte alguém disponível para ler.

Mais: posso fazê-lo com tempo, pensar e repensar conteúdo.

Com calma.

Sei que é mais uma newsletter, mas é a minha. É a minha posta de pescada.

Para já tenho este logo que fiz sem jeito. Tenho uns apontamentos escritos à mão (e que não consigo ler na integra porque tenho uma caligrafia de merda) e um draft do formato da primeira Autoterapia que vou enviar.

Se a quiserem subscrever, podem ir este LINK. Se derem com erros avisem-me. Sou assumidamente patega nisto.

 

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#4

Microconto

08.01.22

Saiu do trabalho à hora certa. Mesmo a tempo de apanhar o metro seguido do comboio. Mesmo a tempo de chegar à porta da escola antes do limite do tempo. Ia abraçar o filho, iam conversar no carro, ele ia dizer-lhe que tinha brincado muito no recreio, ela ia contar-lhe sobre a senhora na estação que levava um cão pequenino na mala.

Chegou ao pé dela cabisbaixo. Não lhe quis dar um abraço. Entrou no carro e não disse palavra. A meio do caminho ela perguntou-lhe se estava triste. Ele respondeu: porque é que vieste mais cedo? Estava a terminar uma brincadeira e tive de sair a meio por tua causa.

As mães estragam tudo.

 

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A vida e os apontamentos sobre ela

#2

27.12.21

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A minha tia vivia no andar imediatamente por cima do nosso. Nós no segundo, ela no terceiro. Onde era a nossa sala era o quarto da minha tia. Onde era o quarto dos meus irmãos era a sala da minha tia. Um dia, não me recordo a que propósito, fui lá a casa. A minha prima andava às voltas com uma máquina de escrever que tinham dado à minha tia. Eu sentei-me a olhar para ela a fazer de empregada de escritório. Tac-tac-tac-tac-rrrrac, muda de linha. Há qualquer coisa de especial no bater das teclas de uma máquina de escrever, no empurrar da folha para começar uma nova linha.

A minha prima cansou-se e foi fazer outra coisa qualquer. Se quiseres podes experimentar, disse-me. E eu ocupei-lhe o lugar, de joelhos no chão ao lado da portada que dava para a varanda. Estava um dia soalheiro e tudo aquilo me pareceu perfeito. O calor mesmo na medida certa, a iluminação que passava pelos cortinados rendados e chegava à folha. Tive medo de carregar nas teclas, de estragar a folha, de escrever alguma coisa que alguém, depois de ler, achasse ridículo e se risse de mim. Guardei na minha cabeça as palavras que gostava de escrever e fiquei ali, a fazer festas à máquina, pensando que um dia talvez viesse a ter uma minha, onde iria escrever as histórias que quisesse, porque depois guardaria as folhas bem escondidas e estaria a salvo da humilhação causada pela opinião dos outros.

Este dia foi há qualquer coisa como trinta anos. Se fechar os olhos ainda me lembro perfeitamente de como me senti ali. Em paz como em poucos sítios.

Hoje o ridículo não me assusta. Não me apoquenta o que pensam de mim. Talvez tenha sido por isso que fui perdendo o medo de partilhar o que escrevo.

Só ainda não tenho uma máquina de escrever, mas um dia destes ainda compro uma, nem que seja para me sentar em frente a ela nos dias em que a vontade me foge ou que as palavras parecem não se conjugar da forma que as gosto de ver.

 

 

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#3

Três dias, três pequenos contos

16.12.21

Sabia das crianças de lá de onde a mãe trabalhava. Um lugar que lhe parecia encantado onde se tomava conta de quem não tinha ninguém. Sabia que o natal não se passava entre os desaguisados dos tios, as travessas de bacalhau, os sonhos e as fatias douradas. O natal, nesse sítio onde se distribuía amor em porções iguais nas horas ditadas pelo ponto, era passado no amparo dos desamparados. Ouviu a mãe falar da festa singela que iam fazer com a simpatia de quem ajudava. Entrou no quatro e fechou as portas. Remexeu caixas e armários. A mãe de mãos à cabeça. Em poucas horas uma dúzia de embrulhos regados a fita cola. Levas amanhã, mãe. Dizes que foi um pai natal pequenino, sem barbas e sem trenó.

#2

Três dias, três pequenos contos

14.12.21

És um nojo. És uma merda. Peneirenta. Arrogante. As manhãs começavam assim desde que o programa foi para o ar. O azedume de rostos que não conhecia. As palavras amáveis e de força não pesavam da mesma forma, pareciam simpatia, uma espécie de caridade. Ligou para a mãe à procura daquele amor que se diz incondicional. De que é que estavas à espera, tu é que te meteste a jeito com essa mania de aparecer. A voz da mãe a desvanecer. Tens razão, disse. Um beijo. Outro para ti. O corpo dormente, a cabeça baixa. Parecia verdade, era ela a culpada. A mania das grandezas, a incapacidade de viver feliz nas sombras. Fechou os estores e voltou para a cama a rezar baixinho, pedindo para acordar outra pessoa.

Novembro

Conto

17.11.21

Avisei os miúdos de que precisava de ir à casa de banho, não valia a pena chamarem por mim, estava com uma valente dor de barriga e por mais que esperneassem só ia sair quando estivesse mais aliviada. Pousei o telemóvel no armário onde guardamos os produtos de higiene e notei que o barulho feito pelos miúdos ficava muito mais tolerável quando abafado pela porta fechada. Suspirei, e com os polegares enfiados nos elásticos empurrei até aos joelhos as calças e as cuecas. Sentei-me na sanita e pousei a testa nas mãos. Ouvi meia dúzia de vértebras estalar. Que bem que me sabia. Senti uma comichão na barriga da perna esquerda e percebi que a renda das cuecas estava a desfiar, sem pensar muito nisso puxei a linha e fiz um buraco onde cabiam, à vontade, três dedos. Merda!, disse para comigo, já lixei estas também. Nem uma semana têm. Tinha comprado um pacote de seis no supermercado, daqueles conjuntos em promoção que têm sempre metade das peças em tecido de uma só cor e outra metade num padrão desenhado por uma pessoa vendada. Nunca percebi a razão pela qual se davam ao trabalho de fazer aqueles tecidos detestáveis, era óbvio que ninguém gostava, aliás, era por isso mesmo que as vendiam mais baratas.

Enquanto erguia o tronco para me recostar contra o autoclismo reparei que o rolo de papel tinha acabado. Outra vez! Será tão difícil aprenderem isto? Estava cansada de explicar aos miúdos que quando o rolo acabava tinham de colocar um novo. Olhem, a mãe pôs aqui no armário de baixo para ficarem mais acessíveis, expliquei-lhes. Mesmo assim quando acabava o papel deixavam o rolo de cartão a pendular e nunca se queixavam.

Peguei no telemóvel, não tinha cólica nenhuma, a menos que considerássemos a fartura das pedinchices dos filhos uma tipologia concreta de quase cólica cerebral. Abri o Facebook e comecei a fazer scroll com o polegar. Nada como um pedaço de vida alheia para que nos consigamos alienar da nossa. A minha cunhada havia feito um bolo mármore no fim de semana. Vi que só duas pessoas tinham gostado da publicação e já a imaginava desgostosa pela falta de atenção. Quem não vai ver quantos polegares içados e corações é que ganhou que atire a primeira pedra. Por isso cliquei em Gosto. A Rafaela da contabilidade acabara um treino aparentemente dificílimo. Gosto. Vais chegar ao verão uma brasa, comentei. Uma marca de lingerie com as irmãs Kardashian todas enroladas numa cama alegava conforto e sensualidade, tudo numa só peça. Se calhar devia mandar vir umas destas, em vez de gastar mijinhas de dinheiro com trapos que se descosem em menos de uma semana, pensei. A filha da Rute do Arquivo fazia dezasseis anos, gira a miúda. Gosto. Parabéns à princesa e à mãe. Um dia muito feliz para todos, comentei. Parabenizar os filhos dos outros garantia que quando chegasse o dia dos meus todos se sentiriam compelidos por deixar os seus votos de um dia feliz. Cortesia digital. Mãe, ainda vais demorar?, ouviu-se do lado de fora da porta. Mais uns minutos, de que é que precisas?, perguntei. Tenho fome, posso ir buscar alguma coisa à cozinha?

Podes.

Se eu estivesse ao lado dele ia direto à cozinha e aparecia ao pé de mim a comer o que lhe apetecesse sem sentir a necessidade de aprovação, mas como eu estava ausente no país longínquo do WC, era crucial a gentileza de questionar.

Fartei-me do mural e voltei ao topo da aplicação. Talvez conheças estas pessoas, sugeria. Engraçada esta coisa de ter eletrodomésticos a dar palpites sobre o que comer, o que ver, com quem me dar. No tempo da minha mãe ela carregava no botão da iogurteira e tinha de ir vendo quando estavam prontos os iogurtes, nunca o aparelho lhe disse: olha que acho que já estão, Ofélia. Ainda assim a melhor coisa destas aplicações é que me perguntam coisas simples e agradáveis que eu respondo com a facilidade de um clique. Não me perguntam o que é o jantar, mostram-me ideias para o jantar.

Decidi gastar ali algum tempo a perceber que pessoas é que o algoritmo me propunha como eventuais conhecidos ou amigos. O Jaime, primo da Natália: nem pensar. A Luísa, cunhada da minha cunhada, até já me tinha mandado um pedido de amizade, mas eliminei. Ocorreu-me que na festa de anos do meu sobrinho me abordou para me perguntar porque é que não aceitava o pedido de amizade dela. Mandaste-me um pedido? Não devo ter visto, não me aparece lá nada. Agora não me dá jeito, mas deixa que quando chegar a casa já vejo, fintei. É claro que podia ter consultado logo o telemóvel, mas não estava para isso. Laura Veiga, eu conhecia aquela cara. Conhecia bem demais. Já não nos víamos há mais de dez anos e tanto quanto sabia não tínhamos conhecidos em comum, porque raio é que me aparecia ali agora? Por baixo do nome dizia que tínhamos um amigo em comum, fui ver. O Olavo, marido da minha prima Sara. Era daquelas pessoas com mais de mil amigos nas redes sociais, conhecia as pessoas mesmo que fosse de passagem e, ligação direta, tornavam-se amigos ali também. Aparentemente havia-se cruzado com a Laura.

Entrei no perfil para ver se estava público, a possibilidade de bisbilhotar sem consequências fez-me sentir formigueiro na palma das mãos.  

Eu e a Laura fôramos grandes amigas. Quase todo o tempo da faculdade. Não era espalha brasas, mas roubava as atenções. Não se podia dizer que tinha características exóticas ou aqueles olhos cor do mar; havia pura e simplesmente alguma coisa nela, uma qualquer energia que cativava, como se, quando aparecia, gravitássemos em torno dela. Podia não ter nada de interessante para dizer, mas ainda assim todos queriam ouvir o que lhe saía da boca. Sempre impecavelmente maquilhada, com bom gosto na roupa. Não era particularmente inteligente, mas gozava daquele tipo de esperteza que a deixava perceber como devia ajustar o seu comportamento e argumentos em função do interlocutor. Para quem não a conhecia tão bem, parecia sempre tremendamente assertiva, com ideais claros e dificilmente refutáveis. Mas eu, que a escutava a esgrimir razões com este e aquele, percebia as incompatibilidades entre as opiniões que proclamava. A princípio deixava-me embevecida, mas depois, quando me apercebia de que se aproveitava de palavras e raciocínios meus, desejava que se engasgasse, que alguém percebesse o mesmo que eu, que lhe fizessem perguntas para as quais ela não tinha resposta pronta. Mesmo assim, quando esses momentos chegavam, desconversava com o charme habitual ou simplesmente dizia: bom, pareces não estar a entender o meu ponto de vista e eu estou cansada deste tema, falamos de outra coisa?

O perfil estava privado. Que pena! Olhei para o botão deixando que o polegar direito lhe pairasse por cima.

Enviava um pedido de amizade e arriscava-me a que me ignorasse ou que me mandasse uma mensagem daquelas para as quais nunca temos uma resposta adequada? O mais provável era que ignorasse ou que demorasse uma semana a responder mesmo que o visse no momento. Jamais daria a entender que estava com disponibilidade. Metade da importância de quem finge viver num patamar acima é compassar a sua atenção aos outros, porque as suas prioridades são prementes demais para que percam tempo com coisas mundanas, muito menos vontades ou pedidos.

Não enviava e roía-me de curiosidade? Podia ver pela fotografia que continuava muito bonita e cuidada. A fotografia de topo mostrava uma ilha paradisíaca, quem sabe nas Maldivas ou na Polinésia Francesa. Parecia estar bem na vida, Ou tremendamente endividada, pensei de imediato, com um desejo claro de que esta hipótese fosse a verdadeira, dessa forma a minha vida não parecia sem sabor e igual à de todos os que andam em carreiro, seria apenas o espelho do esforço de quem opta por não viver com uma gravata de nó demasiado apertado.

Baixei o telemóvel e olhei para o meu reflexo: sentada na sanita com as calças de fato de treino coçadas enroladas nas cuecas de algodão que agora tinham um buraco, a sweatshirt que tinha sido do Telmo e que agora servia para qualquer um de nós andar por casa, o cabelo por pentear, a cara insuflada por calorias em excesso, as manchas do sol. Com a mão esquerda puxei a pele da cara para trás e confirmei que se conseguisse pôr uma mola de cada lado ficaria com uma aparência muito mais jovem. Só era preciso que as molas ficassem quietas. O arrependimento chegou com a rapidez de um raio. Castiguei-me porque a minha pele estava assim por desleixo, pelo persistente deixa andar, por não ser capaz de perseverar nas pequenas coisas que me propunha a fazer, especialmente quando eram só para mim. Lembrei-me que na maioria dos dias me esquecia de pôr os cremes como a dermatologista recomendara. No plano que pendurara na porta do frigorifico, preso com um íman de Paris, tudo parecia mais rápido e exequível. Tal como o plano nutricional que cumprira nas primeiras três semanas, até me convencer de que um dia por semana para comer batatas fritas era manifestamente insuficiente para a minha vida de desgaste. Não ia ser modelo nem capa de revista, que mal fazia um pouco mais de cobertura em torno do abdómen.

Os miúdos chamaram por mim outra vez. Vi pelo relógio no canto superior do telemóvel que estava ali sentada há mais de meia hora. Cliquei para pedir amizade. Desliguei o telemóvel e quando me levantei percebi que tinha as pernas dormentes e as nádegas marcadas pelo tampo da sanita.

Voltei a consultar a página de Facebook mais três vezes antes de sair da casa de banho, depois de puxar as calças, antes de lavar as mãos e antes de rodar a maçaneta para abrir a porta. O resto do serão revestir-se-ia de expectativa.

Recebi a notificação de que aceitara o meu pedido de amizade já passava das onze da noite. Estava a acabar de ver um programa que tinha gravado quando ouvi o telemóvel apitar múltiplas vezes. Não só tinha aceitado o pedido, como me tinha mandado mensagens. Como se uma corrente elétrica tivesse passado pelo meu corpo, senti-me despertar. Queria abrir a mensagem ao mesmo tempo que sentia um desejo profundo de andar para trás no tempo e evitar a estupidez daquele pedido. De certeza que ela também já tinha visto o meu perfil e porque se acharia melhor não me mandou um pedido a mim, fui eu que dei parte fraca. Sentei-me na cama e fui espreitar a conta dela antes de ler o que tinha escrito.

Publicava com alguma regularidade. Citações. Excertos de textos de autores que eu não conhecia. Fotografias onde aparecia sempre irreprimível, que pareciam ter sido tiradas por um profissional numa sessão para a capa de uma revista.

Encontrei publicações onde defendia as suas convicções politicas, coisa que não tinha quando a conheci, mal sabia distinguir de forma clara a direita da esquerda. Ocorreu-me que alguém lhe tivesse escrito aquelas linhas ou que, tal como sempre fizera, se tivesse apropriado dos ideais de alguém e depois, embelezando as palavras como era seu apanágio, tivesse construído um conjunto de frases que, proferidas por si, para aqueles que se embeiçavam com a sua existência, teriam a doçura do mel. Todas as publicações tinham centenas de gostos e de corações. Como é que pode haver pessoas que amam uma reação politica?, pensei. Pessoas que esperam a aprovação da Laura, claro!

Vivia numa moradia com um terreno imenso e aparentemente não tinha filhos porque a única criança com quem aparecia era a sobrinha.

Depois de ver quase dois anos de histórico ocorreu-me que também Laura poderia estar a fazer o mesmo e que a minha vida nada tinha de glamoroso. Não pude evitar o sentimento de vergonha das fotografias de aniversário do Vasco, tiradas na nossa sala pequena, decorada sem itens de lojas de renome. As nossas férias, sempre no Algarve ou na casa que os meus pais compraram na Amareleja depois da reforma. Os pais da Laura nem devem saber onde fica a Amareleja. A minha vida era pequena e em tons terra, era vista por uma lente pouco lisonjeadora, com má iluminação. Na vida de Laura o sol parecia estar sempre na posição certa para a iluminar no seu melhor lado.

Abri a mensagem:

Laura: Há quanto tempo!

Laura: Espero que esteja tudo bem contigo.

Laura: Vejo que tens dois miúdos giros.

Laura: Eu ainda não tenho filhos.

Laura: Muitos projetos, a maternidade foi ficando adiada.

Laura: Mas estou desejosa.

Laura: Por ter uma menina, uma princesa. Os rapazes são muito estouvados.

Laura: Quero uma cópia minha.

Laura: Devíamos combinar um café um dia destes para pormos a conversa em dia.

Eu: Claro! Parece-me uma ideia fantástica!

O café ficou marcado para hoje.

Usei o cartão de crédito para comprar roupa nova numa loja inacessível para aquilo que recebo mensalmente. Estou à frente do espelho há mais de quarenta minutos a pensar se devo mentir e inventar uma indisposição ou apanhar transportes públicos alegando razões ambientais, para que Laura não veja que o meu carro tem quase dez anos.

O chiar da máquina velha já não lhe causa transtorno.

27.05.21

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Transporte de outros tempos, gáudio dos turistas. Ao princípio, quando ouvia o barulho de ferro prensado contra ferro, numa travagem que parecia garantida pela força braçal, aterrorizava-se. Agora é como se o som não existisse, faz parte dele como o cantar dos pássaros faz parte da vida da mãe, sentada na varanda, à espera que a velhice acabe, a última casa do jogo.

Olha em frente, estende a mão para que paguem os bilhetes, guarda as moedas, faz o troco, estende a mão de novo, arranca antes que tenham tempo de se sentar. Que se agarrem aos assentos como ele se agarra ao volante para que o que resta da vida não abane o que lhe falta para se deixar cair.

Quando o semáforo fica vermelho olha para o mar de gente que pulula o Chiado. Detém-se na miudagem, não tiveram aulas à tarde, juntam-se em grupos, radiantes num sentimento de rebeldia por estarem onde não devem sem que os pais saibam, felizes pela liberdade que sopra as primeiras brisas nas asas inexperientes. Aquela é a maior sensação de liberdade que terão, sabe-o e sabe também que ainda vivem alegres, enquanto estiverem alheios à dureza da vida. Uns terão mais sorte que outros, terão pais para alavancar as amarguras, que lhes dirão para aguardar por melhores oportunidades, que nada faltará em casa, que os ténis e as roupas continuarão a aparecer, que se arrisquem no estrangeiro, quem sabe numa multinacional, que lhes paguem cursos complementares, que falem com este ou aquele amigo a ver se há uma aberta lá no escritório, que o miúdo é novo, mas amadurecerá e será um bom funcionário. Esperto que só ele. Outros ter-se-ão a si para talhar o caminho, um ou outro sopro de sorte. De meia dúzia lá se formará um, os outros arranjarão empregos aqui e acolá, desejosos de ter o seu dinheiro, certos do falso conforto que meia dúzia de euros lhes trará, afinal de contas já podem sair à noite, pagar a carta de condução, comprar um carro em segunda mão que vão pagar numa mão cheia de anos. Uma mão cheia de anos não parece nada quando nem vinte anos temos. Vão estar contentes porque é certo, porque é sempre igual e nada tem que saber. Foi assim com Manuel.

A mãe dizia-lhe que a escola estava em primeiro lugar, mas os amigos tinham o que ele não podia ter, então arranjou os primeiros biscates. A escola passou para segundo e ele passou a pertencer ao grupo. Os ténis novos, a camisola de marca. Os outros avançaram e ele foi ficando para trás. Até tinha jeito. Boas notas a matemática e mal estudava. Podia ter sido alguém. A frase que se repetia, na sua cabeça e nas bocas de quem o conhecia em miúdo. Podia ter sido alguém. Como se se tivesse perdido nas drogas. Não tinha. Deixara a vida empenar-se num trabalho sempre igual. Nada de mal havia nisso. Tirando o carrocel dos dias, a invisibilidade de quem passa e não compreende que não é má cara, é amargura.

O tio conhecia gente na Carris, lá um supervisor. Estavam a contratar e aquilo era emprego certo, ordenado sem falhas, contrato a valer, nome dos quadros. Papelada que se entrega no banco para comprar casa com a moça com quem se casa numa festa humilde lá para os lados de Alfama, a tia dela até canta uns fados e com alegria tudo se faz.

A mãe sentada ao canto, finge uns sorrisos. Tudo se faz, mas o meu Manuel podia ser alguém. Como se a vida, se pequena e comum, devesse condenar-se à insignificância.

Meteram-no no elétrico, que era a aletria de turistada. Não havia nada que saber, era subir e descer, bom pé para o pedal, dar conta da máquina velha que os camones gostavam era do que era típico, autocarros de ar condicionado tinham lá eles. E assim passava o dia, os que andavam de cá para lá a trabalho, que paravam para dois dedos de conversa. A boleia ocasional à Matilde da tabacaria que só ia para os lados do Martim Moniz de quando em vez.

Os filhos chegaram cedo e Rosa, sempre que tinha folga ao fim de semana, lá pegava nos miúdos para os levar a ver o pai que andava para cima e para baixo no 28. Encantados faziam da carroçaria velha o que a imaginação lhes permitia. Orgulhosos do pai, ao leme daquela máquina importante que levava as pessoas onde lhes custava a chegar. Manuel ria, Rosa também. Mas os miúdos foram crescendo, Manuel foi ficando calvo, Rosa foi-se cansando das alegrias banais de fim de semana. Manuel ali, num sobe e desce com a maquineta. A vergonha dos filhos ao pé dos amigos. O teu pai podia deixar-nos em Santa Luzia, íamos dar uma volta, subíamos ao Castelo. Mas o pai não podia encher o elétrico com gaiatos que não pagavam, se lhe aparecesse o revisor via-se num imbróglio. Um ou dois ainda vá que não vá. Mas sete ou oito.

Então subiam a pé.

Às vezes, quando Manuel os via abrandava para lhes dizer adeus. Depois percebeu que incomodava. Passou a olhar em frente. Sempre a direito.

Podia ter sido alguém. Tempos houve em que a frase não lhe fazia sentido. Seria sempre alguém. Mas nestes dias, nestes momentos, naqueles em que os filhos viam através dele como se não existisse, dizia para si: podia ter sido alguém. Podia ser de carne e osso ao pé dos meus filhos que fingem não me ver.

Nunca lhes disse nada. Um dia a vida poderia ensina-los. Ou não. Em calhando fariam as escolhas certas, daquelas que, polvilhadas com alguma sorte, fariam deles alguém.

 

Levantava-se sempre à mesma hora. Tomava banho. Se tivesse turno de manhã vestia a roupa azul, tomava o pequeno almoço com a mulher. Não trocavam palavras. Orientavam-se numa dança de rotinas. Podia repetir todos os passos mesmo que ela não lá estivesse. Saía com o jornal debaixo do braço, apanhava o autocarro até Campo de Ourique, rendia o colega.

Quando não entrava ao serviço, estendia a hora do pequeno almoço, lia o jornal, fazia as palavras cruzadas, olhava da marquise a vida das velhas na vizinhança, aquelas que iam passando ao largo da morte e ainda alimentavam o bairrismo na avenida. Saía para ver a mãe que lhe contava das filhas destas e dos filhos daquelas. Uns, coitados, para quem a vida não tinha sido amiga, outros que eram alguém. Tu também podias ter sido, mas mesmo assim não te deste mal.

Manuel vai deixando de ouvir a mãe, as palavras transformam-se em sons indistintos, uma musiqueta irritante que, tal como o som dos travões do elétrico, já não o incomodam.

Olha para a rua e vê um vizinho novo a passar com o cão. A mãe comenta que isto agora são os camones e os avecs a comprar tudo, só estrangeirada e gente de dinheiro. Manuel pensa que um dia há de arranjar um cão. Que o irá passear pelas ruas estreitas com a roupa de fim de semana, como se fosse alguém.

Joaquim está grávido de 24 semanas,...

05.04.21

tem as pernas inchadas e queixa-se de muito sono. A esposa, Maria Odete, aconselhara-o a deitar-se com as pernas para cima umas horas. Parece que com o Osvaldo, o marido da Graciete, funcionou bem quando esteve grávido dos gémeos, dissera-lhe.

Como se as pernas pesadas não fossem bastante, Osvaldo sente uma profunda tristeza por não ver o pirilau, a barriga tapa tudo e há mais de uma semana que nem em pé lhe mete os olhos.

A minha mãe rapou a margarida com a ajuda de um espelho antes de eu nascer. Vai na volta tens de fazer o mesmo, amor, esclarecera Maria Odete quando encontrou o marido desconsolado na casa de banho.

Urina múltiplas vezes à noite e por causa de mal ver o objeto já só o faz sentado, de cabeça pousada na mão, entregue à circunstância.

Maria Odete chega a casa amiúde à procura da ramboia que o marido, homem de dizer que sim, sempre providenciou em quantidade e qualidade. Tal acontece especialmente naqueles dias de trabalho mais leves no escritório, em que se fez pouco, não se receberam e-mails que dilatam as veias do pescoço e ainda se consegue passar no shopping para comprar um par de calças novo antes de seguir para casa.

Entra no carro e antes de comandar ao veículo que faça o caminho mais rápido para casa, reza para que Joaquim esteja bem-disposto, para que lhe apeteça dar umas cambalhotas. Maria Odete anda numa secura tal que o Lívio do arquivo, conhecido pelo mau hálito, lhe começa a parecer mais sensual do que seria de desejar. Maria Odete suspira e relembra-se que tem que apoiar o marido neste momento tão sensível da vida do casal, mas no seu âmago não percebe porque é que Joaquim não se esforça, porque não tenta mais, porque é que se deixa enlear naquela teia de ideias que só consideram chuchas e fraldas. É como se a vida que conheceram estivesse a ser assassinada a passinhos de bebé. Gostava que Joaquim fosse como o irmão da Valéria, sua amiga do ginásio. Não se recorda do nome dele, mas lembra-se bem de que, em conversa com Valéria quando as coisas começaram a descambar com enjoos e má disposição geral, esta lhe disse que com o irmão tinha corrido tudo pelo melhor, que tinha até aumentado o apetite sexual e que a cunhada andava nas nuvens com o desempenho do marido.

É tudo uma questão de usar pensamentos positivos. Sabes que o mindset é essencial para tudo, para treinar e para o resto da vida, rematou Valéria, personal treinar do corpo e coach da mente.

Nesse dia Maria Odete fez conversa com Joaquim, falou-lhe do irmão da amiga, deixou pairar no ar que, quem sabe, Joaquim poderia esforçar-se mais. Joaquim fez um estardalhaço a pousar os talheres, de tal forma que lascou um dos seus pratos prediletos da coleção que tinha comprado, em tons rosa-manteiga. Foi para a casa de banho chorar. Desejava que a esposa entendesse o momento frágil porque estava a passar em vez de o comparar aos outros. Arrependeu-se de ter aceitado ser ele a ficar com aquela responsabilidade, se Maria Odete estivesse no seu lugar é que ia ver como custa.

Joaquim perdeu a vontade, diz que a barriga o incomoda, que tem sono, que não se sente atraente, que lhe dói a cabeça, que está inchado. Anda por casa de um lado para o outro, nem troca o pijama. Joaquim está de baixa desde as 22 semanas, não conseguia lidar com o stress, a chefe dizia-lhe: as mulheres toda a vida fizeram isso, qual é a dificuldade? E ele, soterrado em tarefas e trabalho que lhe pediam que adiantasse antes da licença, acabou por ceder.

Estamos em 2054, os homens já geram bebés e as empresas ainda não têm consciência da sensibilidade de uma pessoa grávida, o que o desgaste e as hormonas podem fazer.

Joaquim inscreveu-se em vários grupos online para pais gestantes.

Maria Odete acha tudo aquilo um exagero. Quando decidiram ter filhos ambos fizeram os testes necessários para saber qual dos dois tinha mais saúde e condição física. Empataram. Então Maria Odete procurou informações aqui e acolá. Falou com colegas que, em reunião familiar, decidiram ser elas. Foi o relato da Jéssica da Contabilidade que a fez decidir terminantemente que, se queriam ter filhos, teria de ser Joaquim a ficar de esperanças. Não entregaria o seu pito em concreto a tal suplício.

Maria Odete chega a casa alegre e encontra Joaquim sentado no sofá, uma taça de gelado Ben & Jerry’s no colo, tem o robe sujo e a barba por fazer. Ainda não se penteou.

- Passaste o dia todo sentado aí, sem fazeres nada? Isso não te faz bem, estás a entregar-te à situação. – sentou-se ao lado de Joaquim e, ainda que lhe faltasse vontade e paciência para estar a lidar com aquele momento deprimente, logo naquele dia que lhe tinha corrido tão bem, afagou as costas de Joaquim e deixou que este chorasse e deitasse cá para fora todas as suas lamúrias. Afinal de contas, podiam achar o que quisessem, mas não era uma insensível.

 Joaquim falou das dores de costas, das insónias, dos receios do parto. Confessou que se achava feio, que parecia um balão. Disse, como quem pede para ouvir o contrário, que Maria Odete o devia achar um monstro assim, sem tomar banho, sujo de gelado, mal penteado.

Maria Odete não negou nem confirmou, limitou-se a emitir um humm que se queria reconfortante, fazia-o de forma maquinal enquanto pensava em Igor, o novo responsável de informática da empresa que a havia convidado para beber café. Belas tardes podiam estar ali.

Abanou a cabeça para afastar o pensamento, que ideia idiota, estar a pensar noutro homem quando o seu marido estava ali, com o seu filho no ventre, a pedir atenção.

Ofereceu-se para lhe preparar um banho com sais, cheiro a baunilha. Mesmo como Joaquim gostava.

Deixou Joaquim na banheira, com água morna, a relaxar. Abriu uma garrafa de vinho e encheu um copo de pé alto. Recostou-se na maquina de lavar loiça a pensar na vida e no que ainda estaria para vir depois de o bebé nascer se agora já era assim.