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Exercício de escrita

Laura

Conto

28.01.22

Há pessoas que parecem estar sempre a fazer a coisa certa. Podem decidir levar a cabo o maior dos disparates, uma imbecilidade completa, que, quando nos dizem que estão prestes a perpetrá-la, toda a falta de bom senso parece ser sugada para um universo distante e sim, é evidente que aquela é uma boa ideia.

A Laura era assim. Chegou ao pé de nós e disse: vou candidatar-me a um posto em França, estou farta disto aqui em Portugal, não ata nem desata, uma pessoa precisa de evoluir e aqui não chega a lado nenhum. Preciso de outros ares. Não sei como é que vocês aguentam, eu estou tão saturada. E num ápice aquela vida que tínhamos como certa e tranquila, tão boa ao pé dos que não tinham a mesma hipótese de um trabalho de secretária com saída certa às seis, meia dúzia de regalias e um fim de semana livre, num suspiro aquela vida passou a ser enfadonha. A Laura tinha razão, estávamos a deitar tudo fora. Tínhamos de viver. Ela é que sabia viver. Ela pegava o touro pelos cornos e fazia com que o mundo girasse a seu bel prazer. Já a podíamos imaginar a passear-se nos Champs Elysees, rua acima rua abaixo, a entrar nas lojas caras, a sair de lá com mais uma camisa e mais um vestido e outro casaco. Todos lhe assentavam bem.

E a Laura lá foi. Havia outra candidata, mais competente até, mas por qualquer razão os argumentos da Laura na entrevista convenceram mais. Durante semanas não se falou noutra coisa, todos queriam um pedaço de tempo da Laura e ela não se escusava a conceder essa atenção. O que ia fazer, os restaurantes que lhe haviam recomendado, o francês que andava a treinar para não fazer má figura, as roupas que tinha encomendado porque as mulheres em França isto e as mulheres em França aquilo. Sobre o futuro dizia: não sei, logo vejo, o que será será, já dizia a Doris Day. Nunca gostei muito de planear, sabes? E continuava a fumar o seu cigarro, que parecia um gesto de requinte mais do que um mau hábito.

No último dia de trabalho fez-se um arraial. Balões, fitas, choro. Houve até quem lhe fosse comprar utilidades para que nada lhe faltasse em Paris. As saudades que iam ter da Laura, merecia tudo. A coragem de ir sozinha assim para o desconhecido.

Fez-se um jantar, a despesa foi rachada por todos e, claro está, a Laura não pagou porque não fazia sentido, então agora a pobre Laura tinha de poupar porque a vida lá fora era mais cara.

Nas primeiras semanas o escritório parecia cinzento. Faltavam as histórias da Laura. A sabedoria de vida.

Tenho uma amiga muito viajada que um dia me disse que é uma vergonha ver uma mulher com roupas caras e mãos por arranjar, lá fora as mulheres de classe não fazem isso, disse-me a Laura uma vez, tinha eu ido com as unhas ratadas para o escritório. Desde aí sempre que olho para as minhas mãos vejo a Laura encostada à máquina do café, com os seus olhos curiosos a perscrutar-me, inocentemente explicando porque é que eu não tinha classe. Nunca mais andei de verniz ratado.

As coisas foram voltando ao normal. Da Laura falava-se de vez em quando, como ia por lá, na terra dos avecs. Deviam estar todos encantados com ela.

Até que um dia me cruzei com o Daniel na Rua do Ouro. Eu andava a dar uma volta à hora do almoço, a mexer as pernas e a fazer tempo, ele ia tratar de qualquer coisa que me explicou mas eu não fixei.

O Daniel tinha sido companheiro da Laura. Conheci-o num dos jantares que havíamos feito entre colegas e para os quais, quando as coisas já resvalavam para a amizade, se começavam a convidar os namorados, os maridos, as companheiras e por aí em diante. Era um tipo calado.

Falámos de como vais e como tens andado e a vida assim e a vida assado. Circulámos à volta da Laura umas sete frases até que ele me perguntou: então e a Laura, sabes se tem estado bem?

Disse-me aquilo de uma forma enternecedora, como quem se preocupa por outra pessoa que ficou aleijada depois de um acidente grave. Eu lá lhe expliquei que a Laura, tanto quanto sabíamos, estava ótima. Que compreendia que para ele tivesse sido difícil aquela rotura, mas ela tinha outros sonhos, era preciso seguir em frente.

Ele baixou a cabeça, abanou-a um par de vezes e disse: ai a Laura, a Laura, a Laura a ser a Laura, não há cu que aguente essa puta dessa mulher. Eu chocada. A Laura. A nossa Laura. A Laura que fazia sempre a escolha certa mesmo quando estava errada. A Laura que copiávamos. A Laura que ouvíamos embevecidas.

Lá me contou que a havia deixado. Já não aguentava aquela vida de faz de conta que ela inventava. Viagens, carros caros, restaurantes requintados. Tudo mentira. Moravam num T1 no Fogueteiro. Não havia vida para mais porque ele estivera metade do tempo desempregado e ela gastava tudo em salões de cabeleireira e roupa comprada a prestações. Foi ele que tinha posto um ponto final à relação. Ela, a equilibrada Laura, a Laura decidida que estaria agora a fazer apresentações inteligentes numa sala de reuniões, a Laura tinha atirado com loiça, partido candeeiros, descabelara-se. Como é que ele se atrevia a deixá-la. Atirara-se ao chão. Puxara-lhe as calças. Um cenário deprimente. Na primeira semana ligava-lhe dezenas de vezes por dia. Terminou com a Laura aos gritos à porta da loja dos pais.

Meteu-se a policia ao barulho. Apresentou queixa.

O apartamento era dele, pelo que a Laura se viu enfiada na casa do pai, algures na Cruz de Pau.

Despedimo-nos. Ele apressado para os seus afazeres, eu a olhar para as minhas mãos arranjadas. Não tinham uma lasca.

 

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#5

Microconto

15.01.22

Quer dormir. Não consegue. A noite parece-lhe infinita. O colchão requintado não ajuda. As palavras sussurradas, debitadas por uma aplicação, de nada servem. É a cabeça que não se deixa apaziguar. Diz para consigo, num misto de negociação e ameaça: dorme desgraçada, amanhã tens de te levantar cedo e depois não tens miolos para nada. Espreita o relógio. Tarde para o sono recomendado. Cedo para acabar com o suplício de espera. Os sons da casa são mais altos assim. Conhece-os todos. Cada ranger de móvel. Mais duas voltas para a direita. Três para a esquerda. Basta.

Senta-se na cama. A mente parece-lhe oca. Diz até mais logo à cama, voltarão a conversar, é certo.

 

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#2

Três dias, três pequenos contos

14.12.21

És um nojo. És uma merda. Peneirenta. Arrogante. As manhãs começavam assim desde que o programa foi para o ar. O azedume de rostos que não conhecia. As palavras amáveis e de força não pesavam da mesma forma, pareciam simpatia, uma espécie de caridade. Ligou para a mãe à procura daquele amor que se diz incondicional. De que é que estavas à espera, tu é que te meteste a jeito com essa mania de aparecer. A voz da mãe a desvanecer. Tens razão, disse. Um beijo. Outro para ti. O corpo dormente, a cabeça baixa. Parecia verdade, era ela a culpada. A mania das grandezas, a incapacidade de viver feliz nas sombras. Fechou os estores e voltou para a cama a rezar baixinho, pedindo para acordar outra pessoa.

Quando o despertador tocou o sol ainda não tinha nascido.

Conto

20.10.21

Uma mulher de cabelo curto e escuro acendeu a luz do candeeiro da mesa de cabeceira, pegou no telemóvel e, com um toque leve do dedo polegar, arrastou uma bola piscante para a direita. O aparelho calou-se. Em cima da mesa de cabeceira estava uma pilha com cinco livros, pela posição dos marcadores estavam a ser lidos a espaços. Todos os livros ofereciam promessas. Atinja os seus objetivos em cinco passos, Como ser mais produtivo, O livro que não vai querer perder para organizar a sua vida, Bons hábitos Pessoas Felizes e A Felicidade está ao seu alcance.

A mulher esfregou a cara com as duas mãos e pegou num dos livros. Passou os dedos pelas folhas, fazendo com que estas soprassem uma brisa na sua direção.

Bom, vamos a isto, disse para consigo e levantou-se da cama.

A sala tinha meia dúzia de móveis, uma televisão, um sofá e um gato deitado lá em cima. O gato semicerrou os olhos, ofendido com a dona que ligou a luz sem qualquer cuidado, encandeando o felino. A mulher pegou no comando e ligou a televisão. Por defeito estava sempre selecionado num canal de notícias, mas naquele momento não lhe apetecia saber como ia o mundo. Queria lixo televisivo.

Ainda de pijama subiu para cima da elíptica, escolheu um programa e começou a pedalar. Olhava para a televisão, mas não via o que estava a passar, a sua cabeça estava noutros sítios, nas suas escolhas, nos seus atos. Naquele momento revivia pela enésima vez a discussão que tivera com uma das pessoas da sua equipa, a frieza com que lhe tinha falado, a inflexibilidade para aceitar uma proposta. Ouvia, como se as palavras estivessem a ser ditas naquele momento, a conversa na sala de café.

Terminado o exercício, foi para a casa de banho. Um duche rápido, os cremes contra o tempo, a roupa escolhida no dia anterior. A imagem de método que tentava impor a si e mostrar aos outros.

Antes de sair passou pela cozinha, ligou a máquina de café, deu de comer ao gato, escreveu um recado que deixou em cima da mesa para que a empregada lesse, tirou um café e bebeu-o encostada à bancada da cozinha. Da janela do décimo andar via Lisboa a acordar, um ou outro carro na estrada, uma ou outra luz acesa nos prédios altos.

No hall de entrada estava uma mesa onde a mulher pousava a mala e as chaves, ao lado uma fotografia onde aparecia com cabelos longos e lisos, muito escuros. Com ela um homem que considerava medianamente bonito e uma criança que ria com vontade de qualquer coisa que o homem lhe dizia ao ouvido. A mulher parou e olhou para a fotografia, passou o dedo indicador pelo rosto da criança, depois limpou a garganta, pegou na mala e nas chaves e saiu.

Quando entrou no escritório ainda não estava ninguém. Era assim que gostava de trabalhar: num escritório fantasma. Sem que entrassem e saíssem do seu gabinete para fazer perguntas, sem que ouvisse os queixumes de quem, na sua opinião, não se esforçava o suficiente.

Em cima da secretária estavam documentos, um computador portátil e um cubo com canetas e lápis. Era a única mesa onde não se encontrava nenhum bem pessoal, que dissesse alguma coisa da pessoa que ocupava aquele espaço. Não havia fotografias de família, nem prémios de lojas baratas dizendo que era a melhor isto ou melhor aquilo, não havia desenhos de crianças, nem o cachecol do seu clube.

As chamadas pessoais eram tidas de porta fechada, sempre com os phones nos ouvidos, sentada na sua cadeira, de cotovelos em cima da mesa, a cabeça baixa e os olhos fechados. Como se quisesse concentrar todos os seus sentidos naquele som.

O telefone tocou e a mulher olhou para o visor. Artur.

Levantou-se calmamente, fechou a porta e atendeu a chamada.

Preciso de saber se vens à festa do Jaime ou não, disse de imediato o homem do outro lado da linha.

Olá, respondeu a mulher.

Letícia, o miúdo faz dez anos e quer a mãe na festa dele, disse Artur num tom impaciente. Caramba, será que não percebes o quanto o magoas quando fazes isto.

A mulher tinha os antebraços pousados na mesa e os punhos, cerrados com força, faziam com que o interior da pele estivesse branca.

É assim tão difícil que consigas mostrar algum amor pelo teu filho, continuou Artur.

Eu amo o meu filho, isso nunca foi uma questão, é ele que não me quer perto e sou eu que não sei ser o que ele quer de mim, respondeu Letícia     numa voz que forçava para ser calma. Apetecia-lhe gritar, varrer com os braços todas as folhas que estavam na secretária, atirar com a cadeira contra as paredes de vidro do escritório, arrancar os próprios cabelos.

O facto de o nosso filho ter preferido viver comigo não faz de ti má mãe. São estes atos que fazem de ti má pessoa, acrescentou Artur. Devias procurar ajuda, falar com alguém, mas tu não aceitas, achas que resolves tudo.

Numa voz quase sumida Letícia disse: os filhos ficam com as mães e visitam os pais um dia por semana e fim de semana sim, fim de semana não.

Essa conversa outra vez, disse Artur numa voz mais baixa, cansada. Os filhos ficam com quem tem mais tempo e disponibilidade, Letícia. Está na altura de aceitares isso. O miúdo precisa de alguém que tenha tempo para ele, de não ser sempre o último a sair da escola porque a mãe ainda acabou mais uma coisinha no trabalho, sabes bem que eu sempre quis mais isto do que tu. Tu sempre foste distante e ele sente isso.

Já sabia que ias começar com essa conversa, disse Letícia suspirando e levantando a cabeça para ver que nas secretárias lá fora estavam a olhar para si e fingiram não estar atentos quando cruzaram o olhar com o seu. Eu queria…, começou por dizer e não conseguiu terminar.

Tu querias sentir-te como as outras mães, ter o instinto maternal que vem nos livros, mas não tens e é importante que aceites isso para teu bem e para bem do Jaime. O miúdo está a contar contigo, faz isto por ele. Já chega que arranjes desculpas para não o ires buscar durante a semana.

Ele não gosta do Jonas, respondeu Letícia justificando a sua escolha.

Ele não gosta do gato, então tu não vais buscar o teu filho. Lindo. E aos fins de semana – poucos - em que ele fica em tua casa e mal lhe dás atenção?

Eu às vezes convido-o para ir a sítios, ele não quer. Comprei-lhe uma Nintendo, achei que ele gostava.

E gosta, Letícia, claro que gosta, disse Artur regressando ao seu estado exasperado, mas ele vai passar os dias contigo e não com o aparelho de jogos. És tu que tens de te chegar a ele. É um miúdo, caramba. É teu filho.

Silêncio.

OK, disse finalmente Letícia.

OK, o quê?

Eu vou.

Do outro lado da linha apenas se ouviu um suspiro e, depois de alguns segundos de vazio, Artur acrescentou: ele vai ficar contente por te ver. E desligou.

Uma mãe puxava uma criança birrenta pelo braço.

03.10.21

O menino queria fugir-lhe, voltar na direção do escorrega. A mãe dizia-lhe: temos de ir, tenho coisas para tratar em casa. Já tinha negociado, já tinha ralhado, agora levava-o quase de arrasto.

Outra mãe andava freneticamente atrás do filho que não teria mais de quatro anos. Seguia-o com o olhar de uma águia, acompanhava-o de uma ponta à outra, os pés enterrados na areia fofa do chão. Elogiava a mais pequena das conquistas e desconfiava de todas as outras crianças, como quem vê a sua cria rodeada de lobos.

Sentada num banco estava uma mulher de cabelo louro escuro, aparentemente natural, com os olhos cobertos por óculos escuros com lentes quadradas que lhe ocupavam boa parte do rosto, pensava que se os filhos fossem seus teria tempo, porque tudo o resto seria secundário, que lhes daria liberdade e falaria de forma meiga para as outras crianças, para que gostassem dos seus filhos e fossem todos amigos.

Bem fazes tu que não tens nenhum, disse uma mulher de cabelo castanho escuro atado num rabo de cavalo mal amanhado. A roupa era simples e provavelmente comprada em packs de duas e três camisolas iguais. Trazia ao ombro uma mochila de criança meio aberta, lá dentro, numa salganhada de objetos, poderíamos encontrar toalhitas, embalagens de fruta batida, pás de praia, carrinhos e no fundo de tudo um pacote de bolachas partidas que por ali estavam esquecidas há mais de seis meses. Tinha estado a dar um sermão aos filhos que, não satisfeitos com qualquer coisa sem importância, se haviam pegado um com o outro no meio do parque. A mulher de cabelo mal amanhado falava para a mulher dos óculos grandes, deixando o corpo cair sobre o banco de jardim, soltando um suspiro que era um misto de alívio e cansaço, lançando aquele desabafo pouco verdadeiro, daquelas coisas que as mães dizem quando os filhos lhes dão água pela barba e elas já não sabem o que fazer. Daquelas coisas que se dizem quando se tem vergonha dos comportamentos dos petizes que se trouxe ao mundo e se tenta pedir desculpa de um mal que não se fez. Mas já se sabe que o mal que os filhos fazem se propaga sempre para as mães. Porque elas o absorvem como seu. Porque os outros lhe conferem tal responsabilidade, já que se a criança fez pior, foi porque a mãe não ensinou melhor.

O que a mulher de cabelo mal amanhado não sabia era que a mulher de óculos grandes, a sua grande amiga, tentava engravidar há mais de três anos. Não sabia que aquele sorriso que lhe foi devolvido, num gesto de carinho e compreensão, num deixa lá que os miúdos são mesmo assim, camuflava a dor de mais um aborto espontâneo. Recente. Não sabia que os abraços e as palavras já não a consolavam. Não sabia que chorava à noite e sentia raiva de um corpo que para os outros era tão bonito e para si tão incapaz.

O período tinha falhado como falhara tantas vezes. Esperou. Esperou que não fosse falso alarme até comprar o teste. Esperou porque o coração já não aguenta tantas falsas partidas. Porque a cabeça se vai convencendo de que a vida pode ter outros sonhos e porque ser mãe não é parir. Andavam a falar na hipótese de adotar. As pazes iam sendo feitas com a vida devagar, era preciso avançar, duas pessoas que se amavam tanto, que tinham uma vida boa para dar. As reportagens na televisão, crianças perdidas, maltratadas, violentadas, deixadas ao acaso e ela ali, com tudo para dar e um ventre que não carregava o que ela mais queria. Foi então que chegou o resultado positivo. Mais uma hipótese. A alegria contida de quem tem medo do que pode acontecer a seguir. Do que já tinha acontecido seis vezes antes. A primeira consulta, o primeiro bater de coração. As lágrimas a correr pelo rosto. A esperança, os sonhos, o quarto, a mãe que ia ser. Mas a segunda consulta chegou e com ela a ecografia de rotina. Sem som. O barulho do vazio que ecoou mais alto que qualquer tambor.

Lamento, disse a médica.

Não lhe saíram palavras da boca.

Foram feitos os procedimentos necessários.

Não verteu uma lágrima.

Queres que te traga um chá, disse-lhe o marido ao início da noite quando se sentou na beira da cama e lhe acariciou a perna.

Não.

Ele saiu. Ele sabia que só o tempo a faria voltar a si.

Soube ele. Soube ela. Soube a médica.

Para os outros seria apenas falatório. Olhares de lamento. Frases forçadas porque as pessoas não sabem que o silêncio por vezes dá mais apoio que as palavras de quem não conhece a dor, de quem, por dentro pensa: ainda bem que não foi comigo.

A mulher dos óculos grandes também queria pensar isso: ainda bem que não foi comigo. Que o mal de ventre fosse de outra e não seu.

Aquilo a semana passada é que foi, disse a mulher de cabelo mal amanhado, a Júlia esticou-se um bocado, não achaste?, continuou.

Pois, não devíamos falar do que não sabemos, respondeu a mulher de óculos grandes, mostrando falta de interesse no assunto da vida alheia.

É tu, Verónica?, perguntou a mulher de cabelo mal amanhado.

Verónica olhou para a amiga e perguntou: eu o quê?

Andas cabisbaixa, a semana passada mal falaste. Limitaste-te a ouvir o que dizíamos e sorrias aqui e ali. Tá tudo bem contigo e com o Zé?, perguntou.

Está tudo bem connosco. Não falei muito porque ando um bocado cansada daqueles jantares, respondeu. Cansada dos jantares e dos e-mails nas costas umas das outras, sempre a fazer julgamentos sobre as escolhas desta e as escolhas daquela. Sabes que também se trocaram e-mails sobre ti. Quando ficaste grávida do Martim, a louca que foi ao terceiro como se já não estivesse assoberbada com dois.

Eu sei, respondeu a mulher de cabelo mal amanhado, enquanto levava a mão ao carrinho e acariciava um bebé que dormia tão serenamente que, não fosse o espaço ocupado do carrinho, mal se dava conta que estava ali.

Eu sei que tudo é tema. A Marta acha que também é muito esperta, mas também falamos dela.

Claro que falamos. Falamos de todas nas costas umas das outras e depois como sabemos o que fazemos, todas nos vamos escondendo. No fim, nenhuma de nós conhece a pessoa com quem diz ser amiga, confessou Verónica.

Tens razão. É por isso que tu estás sempre bem mesmo quando é notório que não estás, disse a mulher de cabelo mal amanhado, perscrutando o parque para garantir que os filhos mais velhos estavam no seu ângulo de visão.

E é por isso que continuarei a estar bem. E é também por isso que tu, apesar de desgastada, de notoriamente capaz de quebrar num pranto por não saberes para onde te virares, vais sempre dizer que a tua vida está excelente e os miúdos são o melhor da vida.

O bebé acordou.

A mulher de cabelo mal amanhado pegou-lhe ao colo e ajeitou a roupa para lhe dar de mamar. Verónica assistiu, num misto de encanto e inveja. Reprimindo a pergunta: porque é que ela tem três e eu não consigo ter nenhum?

O filho mais velho empurrou o irmão e este desatou a chorar.

Deixa que eu vou lá, disse Verónica, sempre solícita.

Agachou-se para ficar ao nível dos miúdos. Tirou os óculos grandes para os poder olhar nos olhos. Disse-lhes coisas que a mãe deles não ouviu.

Os miúdos voltaram a brincar sem reclamar.

Enquanto Verónica caminhava de regresso ao banco de jardim, a mulher de cabelo mal amanhado pensava: tem tanto jeito com crianças, é uma pena que não queira ser mãe.

Cinco mulheres estavam sentadas...

19.09.21

    Cinco mulheres estavam sentadas numa mesa redonda ao fundo do restaurante. Era sexta-feira e o espaço estava lotado. Apesar disso, porque a mesa ficava num recanto da sala, o burburinho das outras mesas não as incomodava. Quatro das mulheres conversavam entusiasticamente. A quinta mulher estava de costas para uma esquina da sala, numa posição que lhe permitia observar todos os clientes, os funcionários frenéticos para chegar a todas as mesas, a pequena janela da cozinha onde a cozinheira, atarefada, barafustava com duas outras pessoas que não lhe respondiam de volta. A cozinheira seria provavelmente a dona, esposa do chefe de sala, que se mantinha à entrada e estava de olho no moço que preparava as bebidas, o mesmo que bebia um trago de qualquer das garrafas que tinha na mão sempre que o patrão estava ocupado a arranjar mesa para mais um grupo de pessoas. Apesar da vista privilegiada a mulher mantinha os olhos no copo de vinho à sua frente. No rosto um sorriso forçado, daqueles que persistem nos lábios não por vontade, mas por esquecimento. De quando em vez apetecia-lhe chorar e nesses momentos, mais do que em quaisquer outros, forçava mais os cantos da boca, como se, pelo trabalho feito pelos músculos da face, lhe fosse possível transmitir ao cérebro que os olhos estavam proibidos de deitar uma lágrima que fosse. Com o polegar e o dedo indicador a segurar a parte mais baixa do copo de pé alto, rodava o copo e fazia-se atenta às pequenas ondas do liquido.

    As duas mulheres que estavam de costas para o resto da sala aproximaram as cabeças. A que estava sentada mais à direita, de cabelo curto pintado de preto, uma mulher bem vestida que pousara uma mala cara no ombro da cadeira, falava para a que estava sentada à sua esquerda, uma mulher de cabelo castanho claro, longo e ondulado, também ela com uma evidente preocupação pela imagem, mas com um gosto menos requintado. A mulher da esquerda ouviu tudo o que a amiga lhe disse e, depois de beber mais um gole de vinho, lambeu os lábios e acenou afirmativamente com a cabeça enquanto dizia em surdina: é isso, não podia concordar mais. Depois, num ato que se sentiu contínuo, disse para a mulher sentada de costas para o canto: o problema é que te desleixaste, Sara. Nunca tomaste conta de ti e só piorou quando foste mãe.

    Fez-se um silêncio incómodo em que todas beberam um gole de vinho, não por vontade, mas para aproveitarem para avaliar o momento e perceberem para onde aquela conversa ia. A comida ainda não tinha chegado à mesa e até ao momento, enquanto gastavam uma garrafa de vinho como entrada à refeição, era a vida de Sara que estava na boca das restantes quatro, que, apesar de tecerem considerações vazias e comentários que não passavam de chavões e lugares comuns, nenhuma tinha ainda tido coragem de lhe dar a sua opinião sincera. Esta, a mulher de cabelos longos e ondulados, fê-lo por saber que não estava sozinha, que aquela ideia, agora verbalizada, iria ser suportada pelo menos por mais uma.

    Talvez tenhas razão, disse Clara antes de levar o copo à boca para beber o resto do vinho. Depois pegou na garrafa que estava em cima da mesa e voltou a encher o copo até meio.

    Acho que estás a ser injusta, disse a mulher que se sentara ao lado de Clara. A maternidade é uma experiência maravilhosa, mas muito difícil, redefine as nossas prioridades, mas terias de ser mãe para compreender isso, concluiu visivelmente agastada com o tema que todas sabiam não ser novo entre as amigas.

    Não tem nada que ver com filhos ou desleixo, pensou Clara, mas não lhe apeteceu dar justificações da sua vida e deixou que se desenrolasse a conversa. Afinal de contas o que quer que dissesse não mudaria a abordagem das amigas que, por aquela altura já tinham transformado a sua vida num tema delas.

    Ter filhos não é desculpa para tudo e a Clara nunca foi consistente a cuidar de si mesmo antes da miúda nascer, disse a mulher de cabelo longo e ondulado. Para além disso a criança já tem o quê? Cinco anos?, acrescentou olhando para Clara que levantou a mão direita com os dedos afastados em confirmação da idade da filha. Quantos anos são precisos para uma gaja se organizar? Vá lá, Clara, tu sabes que tenho razão. Diz aqui à Luisinha que ter filhos não é desculpa para tudo, rematou, procurando validação na mulher que se sentava ao seu lado direito.

    Clara não disse nada, as amigas tinham as suas próprias quezílias com que se entreter. Clara queria um jantar amistoso, onde não se falasse de temas marcantes, onde os seus lamentos, angústias e culpas diárias não fossem assunto, onde pudessem rir de coisas fúteis e sem significado. Onde não tentassem resolver a sua vida por si tendo por bitola as suas realidades. Mas, se bem conhecia o seu grupo de amigas, já teriam um comboio de e-mails trocados, usando o e-mail do trabalho, parando o que estavam a fazer e tratando da privacidade alheia como um assunto prioritário. No subjet “Nem imaginam” e o incêndio começaria com a frase: eu nem queria acreditar, mas o Miguel e a Clara vão divorciar-se. O segundo e-mail seria a questionar quem tinha deixado quem e o terceiro o porquê da separação. Depois vinha a avaliação.

    Ao perceber que tinha o copo novamente vazio, Clara chamou o empregado, pediu que trouxesse mais uma garrafa igual e aproveitou para perguntar porque razão as refeições estavam a demorar tanto. Estamos com menos uma pessoa na cozinha, lamentamos a demora, esclareceu o empregado, diligente e provavelmente desgastado de plantar a mesma frase em todas as mesas.

    Enquanto rodava o copo vazio, mantendo o exercício em que se aplicara todo o tempo em que ali estivera sentada, Clara, ouvindo as opiniões das amigas, deu consigo a pensar nas bases daquela amizade. Como é que, vinte anos depois de se conhecerem, ainda dava consigo ali, rodeada pelas miúdas agora mulheres, que sempre ditaram frases começadas por devias fazer isto e devias era fazer aquilo.

     Imaginou se seria assim caso a notícia comunicasse a sua morte. Se também nessa ocasião se sentariam juntas num qualquer sítio, regadas a vinho, a encontrar todas as formas de culpa que lhe podiam imputar. O peso a mais, as escolhas menos saudáveis, a melancolia, terminando com um: estava-se mesmo a ver que acabaria por acontecer mais cedo ou mais tarde.

    O jantar acabou e à porta do restaurante, depois de fumarem um cigarro, despediram-se como se tivessem estado a debater a vida de alguém que não iria para casa com toda aquela informação a martelar a sua já imensa culpa. Culpa por tudo o que sabia que podia ter feito melhor e culpa por não saber de que mais sentir culpa.

     O silêncio da casa parecia mais pesado que o batucar de um tambor. Descalçou-se à entrada para não ouvir o som dos seus próprios passos. Entrou na cozinha. Abriu a gaveta dos talheres e tirou uma colher. Foi ao congelador e tirou uma caixa de gelado. Encostou-se à bancada, fitando a parede, enquanto comia colherada atrás de colherada sem dar valor ao prazer da iguaria que se derretia na boca. Tinha passado o jantar a atirar pedaços de comida de um lado para o outro, não estava capaz de comer à frente delas. Elas, que a achavam desleixada, com peso a mais. Elas que tinham soluções. Elas que diriam depois de entrar no seu carro coisas como: viste como é que ela comeu, enfartou-se de pão, não deixou uma migalha do prato.

Luísa

Parte 9 - Conto

31.08.21

O Eduardo chegou para passar uns dias connosco e vinha acompanhado do Daniel. Estávamos na quinta há quase quinze dias e ele ligou-me a dizer que tinha metido férias e que gostaria de as passar com as miúdas. Pelo que as pequenas lhe contavam havia quartos suficientes para que, se eu assim entendesse, ele fosse gerido como um familiar afastado, pudesse estar com elas e não fosse um incómodo.

Percebi que ainda havia ressentimento, mas o tom era mais leve. Mais conciliatório. A distância, dizem, por vezes opera milagres.

Chegaram já passava da hora de almoço, estava um calor terrível, dos dias mais quentes desse verão. A minha mãe mantinha-se à sombra, no alpendre, sentada num cadeirão que trouxemos da sala. Abanava-se com um leque, bebia água fresca e refrescos carregados de gelo. Ria-se a ver as miúdas e, de quando em vez, lá se aventurava a molhar os pés na berma da piscina.

- Não morro sem ir nadar nua. Tenho é que esperar que as miúdas estejam deitadas, não as quero assustar com a inevitabilidade da gravidade no futuro.

Rimos. A mãe, que sempre fez pouco da sua vida, porventura a única forma que conhecia para imprimir algum afastamento da realidade que persistia em magoa-la, reaprendeu a fazer pouco da sua condição. Sempre que passava por ela e a olhava, eu condoída, eu pesarosa, forçando-me a pendurar um quadro daquele momento na minha mente, ela olhava-me de soslaio, como se tivesse uma lista de piadas negras prontas a ser disparadas a cada gesto piedoso ou melancólico.

Quando viu o Daniel sair do carro não se coibiu:

- Ora cá está o rameloso. – disse-lhe enquanto ele subia os degraus para a cumprimentar.

- Pelo menos agora já não escondes o que achas mesmo de mim.

- Não tenho tempo para tretas. Literalmente.

Riram-se os dois.

O Daniel sempre gostou da minha mãe e ela, apesar de lhe custar o que sabia que acontecia entre nós, tinha um carinho especial por ele. Pelo Eduardo também. Tratava-os como se fossem filhos, como se, por serem envolvidos nas asas dela, fosse mais uma razão para que não deixassem o ninho.

- Onde é que anda a tua filha mais velha? Está lá para dentro?

- Estou aqui – respondi da janela por cima do lava loiça – já aí vou, estou só a acabar de lavar a loiça. As miúdas estão na piscina, podes ir lá vê-las.

Estavam divertidos na água. A Carina deve tê-los encaminhado para uma das casas e trocaram de roupa. Vestiram os calções de praia e estavam a lançar as miúdas num concurso de piruetas. Devo ter demorado demasiado tempo a esfregar copos que se sujaram depois de bebermos água. Perdi-me em pensamentos. Detive-me com o que iria achar da minha aparência. Senti-me a mesma mulher ridícula de sempre, aquela que quer que os outros gostem dela antes de gostar de si.

- Então, gostaste do espaço? – perguntei-lhe quando acabara de lançar a pequena e olhava com dificuldade em direção ao sol, o rosto confiante de um pai que não pode transparecer que não sabe o que está a fazer, misturado com o medo de um homem que não sabe se terá aplicado força demais no lançamento de maneira a que a pequena acabasse do lado de lá da piscina aos gritos e a dizer que o pai era um bruto.

- Gostei. – disse-me com as mãos em pala, as sobrancelhas franzidas.

Saiu da piscina para me cumprimentar. Afastei-me. Não me queria molhar. Não queria que pensasse que estava tudo de volta ao normal só porque tinha aparecido. Porque sorria e brincava com as filhas.

- Estás bonita – disse-me – o cabelo curto fica-te bem. E as roupas com cores também. Estás….

- …mais leve.

- Sim.

- É a vida do campo.

- Deve ser.

As miúdas chamavam por ele. Não estavam dispostas e dividir o pai com mais ninguém, já bastava ter de parti-lo ao meio, uma metade para cada uma. Uma metade que mediam constantemente. Veio-me à ideia a pergunta: será que teria sido assim com o nosso pai, se eu e a Carina o tivéssemos tido na nossa vida como as miúdas têm o Daniel?

- Volta para a água, as pequenas estão cheias de saudades, querem a tua atenção.

Ele voltou para a piscina. Eu voltei costas e fui sentar-me ao lado da minha mãe. Ele guardava cuidadosamente as imagens que a vida lhe dava. É um lugar comum, tão comum que persistimos em não compreendê-lo, mas é preciso que o fim se aproxime para que queiramos ver o que está à nossa frente. Peguei no meu livro e fingi que lia a mesma página por mais de uma hora. Por cima das primeiras linhas espreitava o meu marido, que, apesar de infiel, era o homem que amava e perguntava-me se eu seria capaz de esquecer. Porque para continuar é preciso mais do que perdoar, é preciso começar um novo princípio e deixar enterrado o que ficou para trás. Olhava para a minha mãe. Fazia o mesmo que os fotógrafos fazem quando fotografam quem está a fotografar. Queria arquivar na minha memória aquela imagem, que me traria o descanso de saber que os últimos meses lhe deram mais do que alguns anos.

As miúdas foram para a cama cedo. Exaustas.

A minha mãe, depois de tomar os medicamentos para as dores. Não aguentou muito acordada.

A Carina e o Eduardo foram dar uma volta com a pequena, matar as saudades de estarem só os três.

Ficámos nós: eu e o Daniel. Ele encostado de um lado da portada que dava para o alpendre. Cigarro na mão. Eu encostada no outro lado. Copo de vinho na mão.

- A vida aqui é uma coisa diferente. – disse-me.

- É. – confirmei.

- E isto é mesmo do vosso pai.

- Sim. Estás a fazer contas?

- Estou. Mas não são as contas que estás a pensar?

- Então que contas são essas?

Olhou à volta. Inspirou profundamente. Parecia que estava a testar o ar. Apagou o cigarro.

- Este espaço podia ser um negócio.

- Explica melhor.

- Um turismo rural. Há tantos agora. Há procura. Imagina. Há uma casa para a tua irmã. Há uma casa para ti. Há uma casa grande com quartos para alugar. Há espaço. Há piscina. As miúdas podiam ir à escola aqui perto. Conhecer uma vida mais calma, mais simples.

- É uma ideia. A Carina falou nisso no outro dia.

- E tu o que é que achaste da ideia?

- Boa. Mas o pai das minhas filhas mora a mais de duzentos quilómetros de distância e eu não vou afastar as miúdas dele.

- E se o pai das miúdas viesse também? Vida nova. Casa nova. Pessoas (quase-e-com-muitos-defeitos-na-mesma) novas.

Olhámo-nos durante demasiado tempo. Como se estivéssemos a falar por telepatia. Até que ele acrescentou:

- Não a vejo desde que me disseste que nos íamos afastar. Acho que precisava de saber o que era ver-te sair para perceber.

Luísa

Parte 7 - Conto

27.08.21

Surpreendeu-nos que vivesse de forma tão simples. Era certo que o apartamento era melhor do que o meu e do que o da Carina, mas quando alguém aparece capaz de dispensar umas dezenas de milhares de euros, confesso que penso que essa pessoa viverá, no mínimo, numa vivenda com mais casas de banho do que assoalhadas, sala de jogos, piscina, garagem para quatro carros e um Mercedes estacionado à porta.

Era um homem bem-parecido e razoavelmente conservado para a idade. Tinha a sua estampa, mas, apesar de não denotar o desgaste do tempo, aquele que a nossa mãe tinha, percebíamos que a vida lhe tinha pesado de alguma forma. Havia algo no olhar que mostrava que conhecia os efeitos do sofrimento.

A mesa estava posta e sentámo-nos para almoçar.

Eu tentei alguma conversa de circunstância. A Carina não permitiu.

- Então diga lá o que é que quer de nós ao fim destes anos todos?

- Conhecer-vos.

- Acha-nos burras?

- Não. Mas porque razão… - não o deixou terminar.

- Ouça, eu não sei quem o senhor é, mas aparentemente partilhamos o ADN… – tentei chamá-la, refreá-la, Carina, disse-lhe com tom de quem admoesta, mas não me estava a ouvir.

– … a nossa mãe cuidou de nós anos a fio sem a sua ajuda. Não teve vida. As somas e subtrações do seu calendário somos nós. Nunca viajou, nunca gastou dinheiro para se cuidar, quando deixámos de ser uma despesa já sentia que a vida estava pelas costas e não valia a pena mais. Nunca conheci um namorado à minha mãe, sabia disso? Não precisa responder, é retórica.

- A vida também não foi fácil para mim.

- Imagino. – disse, enquanto enchia um copo com vinho rosé e o bebia de um trago.

- A Carina está cansada, tem uma bebé pequena…mais isto agora e sabermos que a mãe…é complicado.

- Ah, que se foda essa conversa, Luísa. Lá estás tu. Tu desculpas toda a merda, eu não. Estou aqui, já me conheceu, já viu a cara de quem achou que não era sua filha. Agora transfira o dinheiro e deixe-nos estar com a nossa mãe.

A Carina levantou-se. De maço de tabaco na mão, aparentava estar perdida, como se procurasse algum sítio.

- Quero fumar um cigarro, onde é que há uma varanda nesta casa.

- Podes fumar aqui. Vou buscar-te um cinzeiro.

Ele levantou-se. Eu abri os olhos para a Carina. Falei suficientemente baixo para apenas ser possível perceber o que queria dizer lendo o movimento dos meus lábios: o que é que se passa contigo?

Encolheu os ombros.

Quando regressou à sala, o nosso pai trazia o cinzeiro que deu à Carina. Disse-nos que tinha aproveitado para desligar o forno. Tinha metido na cabeça que íamos ter um almoço encantador, entre duas filhas contentes de reencontrar um pai que as queria muito ver. Imbecilidades de um velho que às vezes já não sabe o que pensar, concluiu.

- Podia pedir desculpa, mas a palavra parece-me pequena para o que vos devo. A minha falha é um buraco no meu chão, um fosso sobre o qual caminho todos os dias. Eu gostava muito da vossa mãe, mas gostava ainda mais do que ela representava: a possibilidade de criar um lar como nos filmes, como o que eu não tinha. Quando olhava para ela não a via, via a ideia do que eu julgava poder ser aquela vida do homem que chega a casa e tem a mulher bonita e arranjada com os filhos ao colo. Filhos que não choram e menos fazem birras. A vida de um homem de negócios que, quando entrasse nos quarenta começaria a fumar charutos e convidava os amigos para almoços na sua casa com jardim. Tinha muitos sonhos e planos para cumprir. Queria provar que era melhor que o meu pai, que nos tratava como tralha, que trabalhava de vez em quando, que nunca se esforçou por nada. Achava que tudo dependia no meu esforço e dedicação. Trabalhei para esse ideal. Noite e dia. Mas a vida não era assim. Os negócios davam dinheiro, mas o meu sócio era melhor do que eu. Eu era bom a fazer, a garantir o trabalho, ele era o homem de negócios confiante. Comecei a invejá-lo. A custar-me estar perto dele. Eramos amigos. A vossa mãe, depois de tu teres nascido Luísa, passou a ter-te como a única e principal preocupação. Eu era o pai da filha dela. Não existia. Sentia-me um vulto em todos os lados, até que um dia conheci uma mulher, ela era uma atriz de teatro de segunda que vivia como se fosse uma estrela de cinema. Era atraente, sabia viver bem, onde ir, como comportar-se. Fiquei fixado nela. Acho que seria capaz de fazer qualquer coisa que me dissesse. Mas ela nunca quis que eu deixasse a tua mãe. Dizia que não destruía lares, divertia-se. Custava-me ver-vos. Qualquer uma de vocês. Eram o meu fardo, era por vossa causa, pelo sonho falhado que representavam, que eu sofria. Por vossa causa eu não me conseguia ver capaz de virar costas a um negócio que detestava, eu era o vosso sustento e recusava-me a ser o meu pai. Por vossa causa a mulher que eu amava não se casava comigo. Tentei até que a vossa mãe saísse de casa acusando-a de infidelidade. Achei que, se a vossa mãe saísse a Laura entraria de livre vontade. Não aconteceu. A Laura não queria uma vida de casada, queria ser independente e não estar agarrada a homem nenhum. O que ela tinha de que eu mais gostava, a sua independência, era o que a fazia nunca poder ficar comigo. Então fiz pior do que o meu pai. Afastei a família que tinha. Entreguei-me à bebida. Depois ao jogo. Perdi a casa em que vivemos. Foi o meu sócio que me deu a mão e me ajudou a recuperar. Foram precisos anos para que eu pudesse compor uma parte do mal que fiz e por essa altura já vocês seriam adolescentes. Procurei a vossa mãe e um dia vi-vos chegar a casa de um passeio. Pareceu-me injusto, nessa nesse momento, intrometer-me no que ela tinha conseguido sozinha. Mantive-me longe, mas tentei estar suficientemente atento para que, se um dia precisassem de mim, vos pudesse valer. Esse dia chegou. Não quero que gostem de mim. Não preciso que me chamem pai. Não espero sequer fazer pazes comigo mesmo. Os meus demónios vão estar comigo sempre. Espero apenas que a soma do que fiz bem nos últimos anos me permita fazer uma coisa boa.

Eu e a Carina olhámos uma para a outra, sem palavras.

- Obrigada por ser honesto connosco. – disse-lhe.

- Recentemente comprei uma casa no Alentejo, ali para os lados de Beja. Tem muito terreno e foi remodelada há poucos anos. Penso que um dia talvez me mude para lá, mas depois quando lá vou acho que aquilo é grande demais para mim. Tem demasiadas coisas para tratar. Faz-me sentir ainda mais sozinho.

Parou e ficou a rodar o copo, parecia concentrado no líquido rosado que estava lá dentro.

- Pensei que podia ser um sítio para que possam querer ir com a vossa mãe. Pelo menos durante algum tempo. Respirar ar fresco. Deixar os afazeres. Podem levar as crianças que vão entrar brevemente em férias da escola. Prometo que não lá apareço de supetão.

Luísa

Parte 6 - Conto

25.08.21

- Estás a contar o episódio de ontem à noite na novela da TVI, certo?

- Não. Não estou com brincadeiras. É mesmo isto.

A bebé começou a chamar do berço, tinha acordado da sesta. A Carina baixou a cabeça e suspirou.

- Acabou o descanso, tenho de ir buscá-la. Não fica quieta tempo nenhum. Ou dorme ou quer atenção.

- É pequenina, tens de ter paciência.

- E tenho, Luísa. Queixar-me de estar exausta e de que queria poder continuar a conversar com a minha irmã enquanto bebo um café e fumo um cigarro não tem nada de errado.

- Eu sei.

- Sabes? Devias experimentar um dia destes teres um bocado para ti. Levares as miúdas para a tua sogra, deixares a mãe aqui, cagares para o teu marido traidor e ires cuidar de ti. Dar uma volta, espairecer, descobrires coisas que tu gostas.

A Carina já ia longe no corredor e por isso não me ouviu dizer mais para mim que para nós: não saberia o que fazer comigo. A minha vida era consumida pelos outros, acho que seria assustador se, de repente, me visse com a possibilidade de poder fazer alguma coisa que eu pudesse escolher.

Apareceu com a pequena ao colo. As duas sorridentes. Passou-me a menina que ficava sempre encantada com os meus brincos e foi preparar-lhe uma papa para o lanche.

- Tens de ter atenção às quantidades.

- Eu faço a olho e ela está ótima. Relaxa, criatura.

Fiquei a vê-la preparar a papa, capaz de lhe arrancar a colher das mãos e de, com a criança pendurada na anca, fazer eu mesma, com os gramas e os mililitros certos.

- O teu mal é esse, sabes? Criaste um mundo onde achas que tens de fazer tudo de uma certa forma e que tens de ser tu a fazer e que para que tudo apareça feito tu tens de te anular porque dessa forma não tens de olhar à tua volta e lidar com o que te atormenta.

- Vim cá falar da nossa mãe e do pai que afinal temos. Como é que acabámos a falar de mim?

- Eu amo a mãe e estou aqui para lhe dar todo o carinho neste período. Quero mais é que esse senhor se foda…

Interrompi-a.

- Não devias dizer asneiras em frente à menina.

- …como eu dizia, quero que esse senhor se foda, não é meu pai porque se borrifou para mim, mas aceito conhecê-lo porque a mãe pediu. Agora tu, meu zombie feito pessoa, preocupas-me mais. Já te viste ao espelho? Eu sei que estou na merda, mas a minha miúda tem ano e meio e eu estou a tentar sair do buraco, tu não esgatanhas para sair daí há quase oito anos.

- É complicado.

- É uma segurança ilusória. Tens medo de quê?

- Eu não tenho medo.

- Tens. Tens sim. Que te julguem má mãe. Que te julguem má filha. Que ele volte a olhar para ti depois de te esforçares e mesmo assim não te queira.

- Estás a ser cruel.

- Estou a ser uma irmã que te ama e te vê de cabeça enfiada debaixo do chão, Luísa. O teu marido tem uma amante. Tu sabes e não o metes fora de casa. A tua sogra, apesar de chanfrada, é boa pessoa, oferece-se para ajudar, não aceitas porque só tu sabes cuidar das miúdas. Implicas porque a mulher não lhe lê histórias à noite, elas sabem ler as duas, caramba. E a mãe?

- O que é que tem a mãe?

- Tu sabes. Queres poupar-me como se eu tivesse cinco anos e ficas tu com o fardo. Ambas adoramos a nossa mãe, mas vá lá, pesa. Tu sabes que pesa.

Fui ao frigorifico buscar uma coisa que não sabia o que era. Aproveitei o frio para engolir a vontade que tinha de chorar.

- Tenho curiosidade em saber se alguma de nós é parecida com ele. Se calhar ele é como tu, prático e desapegado. – disse-lhe.

- Eu não sou desapegada. Sou racional e quero que os outros vão bardamerda. Não me preocupo com opiniões alheias. A mãe também não. Vai na volta tu é que és como ele.

Fez-se silêncio.

Acabámos distraídas com as gracinhas da bebé e não voltámos ao mesmo assunto. A Carina sempre foi assim: capaz de perceber a quantidade certa de pressão que cada um consegue aguentar. Invejo-lhe isso.

Na minha cabeça ficou a pergunta: será que eu sou como ele?

Quando cheguei a casa pedi à minha mãe que o contactasse. Estávamos disponíveis para ir almoçar com ele no sábado. Numa primeira fase iriamos apenas as duas. Sem filhos e maridos.

 

 

No meu emprego aceitaram conceder-me a licença sem vencimento. Mas percebi que muito provavelmente as coisas poderiam não correr de feição no meu regresso. Não pensei mais nisso, tinha um ano para ver o que havia de fazer da minha vida. Para a Carina veio mesmo a calhar, soube que não lhe iam renovar o contrato. Trabalharia mais duas semanas e depois voltava à estaca zero do fundo de desemprego. As mães com filhos bebés e as entidades patronais, uma história que não tem fim.

Luísa

Parte 5 - Conto

22.08.21

- Já decidiste o que é que vais fazer?

- Sim. Vou aceitar conhecê-lo. Não posso dizer que vou rever uma pessoa de quem mal me lembro. Só me falta falar com a Carina.

- Claro que aceita.

- Porquê “claro que aceita”?

- Luísa, eu às vezes não sei se és mesmo ingénua ou se queres ter os olhos fechados para a realidade. O velho está carregado de dinheiro, a tua irmã vive a fazer contas à vida, como nós, aliás. Esta é uma oportunidade de vos compensar pelo que fez. Eu digo que o melhor é ver até onde vai o pote.

No domingo à noite, depois de a casa estar em silêncio, sentei-me do meu lado da cama e encostei-me à cabeceira. O Daniel estava a ver qualquer coisa no telemóvel, ria-se que nem um perdido. Interrompi o divertimento. Contei-lhe o que se tinha passado.

Gostava de dizer que esperava uma reação diferente, mas era exatamente assim que sabia que aconteceria. Sentido prático. Sem lamechice. A oportunidade de deitar as mãos a uma vida melhor. O Daniel sempre foi um homem trabalhador e um pai amoroso. Nos momentos altos, quando somos um casal e não meros companheiros de responsabilidades, consegue ser o homem carinhoso com quem me quis casar. É, ainda hoje, o homem que quero para mim. Tenho amigas que passaram por fases complicadas nos seus casamentos, umas que acabaram por se divorciar, outras que tiveram amantes, umas que quase tiveram amantes. Tanto elas como eles tinham chegado a um ponto de rutura, uns por causa dos filhos, outros pelas rotinas, outros ainda porque não estava certo desde o início. Deixavam de se ver como homem e mulher, já não havia desejo, aquilo que faz a diferença de uma amizade para algo mais profundo. A entrega, a partilha. Então aparecia alguém que representava frescura, novidade, aquele malfadado frio na barriga que, na nossa idade se revela na fuga de uma vida que tomamos por certa e sabida, com voltas contadas e previsíveis.

- Nem todas as pessoas avaliam a vida como tu, sabes?! Este homem fez coisas erradas, virou costas à família, virou-nos costas a nós. Do que sei, podíamos ter tido uma vida mais completa, com um pai presente, sem faltas.

- As pessoas cometem erros.

- Compreendo que sejas tolerante.

- Como é que este assunto deu a volta para ser sobre mim.

- Porque é sobre nós.

- A meu ver é sobre ti e a tua irmã. Só se vier daí alguma coisa é que pode ser sobre todos nós.

- Não encontro palavras para descrever o que acho do que estás a dizer.

- Estás à procura de uma discussão? O teu pai traiu a tua mãe e tu queres ir buscar assuntos antigos e fazer-me a mim pagar por isso.

- Não são assuntos antigos e tu sabes disso.

Eu tirava e voltava a pôr a aliança. Olhava para as minhas mãos. Não conseguia olhar-lhe para a cara. Ele remexeu-me na cama, o incómodo dos culpados que se julgam impunes porque calculam estar a ser avaliados por imbecis.

Por momentos recordei-me da última vez que tínhamos ido jantar fora só os dois. Eu tentei arranjar-me, mas fi-lo sem vontade e isso notava-se. Ele escolheu um sítio com televisão e esforçou-se para que nos sentássemos num lugar em que ele teria vista para o ecrã. Percebi isso quando começou o jogo. Comemos as entradas entre comentários de quem não se conhece. Que o pão estava bom, que a manteiga de alho valia a pena ser provada. Eu pensava se a minha sogra teria lido uma história às miúdas em vez de as meter a ver a novela até adormecer. Quando me ocorreu uma pergunta para fazer – já não me lembro sobre o quê – ele fez um comentário sobre o onze escolhido pelo treinador. Percebi que tinha ido jantar sozinha. Uma refeição de noventa minutos, com direito a descontos e intervalo.

Quando chegámos a casa vesti umas calças de fato de treino e uma t-shirt velha. Sentei-me no sofá a ver uma série. Aproximou-se de mim e tentou beijar-me o pescoço. Disse-lhe “quero mesmo ver isto se não te importas” e ele foi para a cama.

Afastei a memória e respondi-lhe:

- Eu sei que ainda te encontras com ela.

- Luísa…

- Não me venhas com o “Luísa”. Eu sei. A Marta viu-te entrar no prédio dela. És tão burro. Sabes que eu e a Marta somos amigas, sabes que moram a duas ruas uma da outra. A Marta já te viu lá mais do que uma vez.

- É complicado.

- Sempre foi complicado.

- Não posso fazer nada em relação aos meus sentimentos. Tu afastas-me. Desde que as miúdas…

- Não metas as miúdas nisto. Se não me queres, então porque é que não vais viver com ela?

- Porque queria que as coisas se compusessem cá em casa. Que fosses minha mulher outra vez. Minha mulher, em vez de seres a mãe das minhas filhas.

A culpa terminava sempre apontada a mim. Ele precisava de outra porque eu não lhe dava atenção. Eu não me arranjava, não me cuidava. Eu só pensava nas miúdas. Era uma mãe e peras, mas tinha matado a mulher que ele queria.

- Tenho um trabalho difícil e stressante. Tenho duas filhas, sendo que uma acorda todas as noites e pede para conversar. Tenho uma mãe a morrer de cancro. Tenho um pai que nunca quis saber de nós até agora, aparentemente. E tenho um marido que, com tudo isto, queria que eu aparecesse fresca e fofa, sempre com vontade de andar às cambalhotas e a lavar o chão de saltos altos e mini saia. Tens ideia de como és egoísta?

- Querer que me vejas não é ser egoísta. Sentir-me homem e querer que a minha mulher queira estar comigo não é ser egoísta. Eu ajudo em tudo, caramba.

- O mal é esse: ajudas. Tu achas e toda a gente acha que eu sou uma sortuda. Tu não devias ajudar, é o teu papel. Apoiar e fazer a tua parte.

Ele voltou-se e disse até amanhã. Não quer ser o mau da fita.

Adormeceu em minutos. Invejei-lhe a capacidade de encostar a cabeça à almofada e dormir como se não estivesse ao lado de uma mulher que trai frequentemente.

Apaguei a luz, deitei-me e virei-me para o outro lado. Procurei a imagem do rapaz da cafetaria e imaginei como seria se eu fosse uma mulher sem amarras.