Sou uma mulher de listas. Listas para as compras. Listas para as tarefas do trabalho. Listas para as tarefas de casa. Listas para as coisas que tenho de comprar para as miúdas. Listas, listas e mais listas. São a minha sensação de controlo. O mínimo de organização que consigo impor.
Por isso fiz uma lista com tudo o que tinha de levar: roupas das miúdas, roupas minhas, calçado, medicamentos da minha mãe, mercearias básicas, produtos de limpeza. Tratei de tudo e dei comigo naquela manhã, com o corredor cheio de malas, sacos, cestas, pacotes e mais pacotinhos e uma sensação de que ainda assim me havia de faltar alguma coisa.
O Daniel andava pela casa, fazendo notar a sua presença, passando por mim sem oferecer ajuda, mostrando o seu desagrado pelo tempo que íamos estar afastados.
- Isto pode ser bom para todos. – disse-lhe enquanto olhava para os sacos e ele se mantinha encostado à ombreira da porta da cozinha, de chávena de café na mão.
Não me deu resposta.
As miúdas estavam eufóricas. Para além de um verão em que fomos passar uns dias ao Algarve para uma casa alugada a preço de saldo a um familiar de um colega de trabalho do Daniel, as miúdas nunca saiam dali. Íamos à praia perto de casa, um tempo infernal dentro de um carro com o ar condicionado avariado, filas de trânsito, um desespero para sair da praia com carros estacionados dos dois lados, quase pendurados das árvores.
Iam ter uma aventura para contar às amigas. Iam passar aquelas férias livres, com espaço, longe das quatro paredes do apartamento, longe dos dias enfiadas no ATL onde olhavam por elas até ao final de julho e depois andariam aos caídos, entre uns dias de praia, uns passeios ao jardim, uns dias a ver filmes na televisão até que setembro acabaria por chegar e tudo começaria de novo.
O meu pai falou com um amigo que nos dispensou uma carrinha da empresa e um empregado que nos fosse deixar ao nosso destino. Dessa forma poderíamos seguir todas juntas e levar as tralhas que precisávamos para mais de um mês. Segundo o que o nosso pai nos disse, à porta da tal casa havia um carro velho, que deveria ainda funcionar, que era usado pelo senhor que de vez em quando lá ia dar um jeito às coisas, só mesmo para garantir que as ervas daninhas não comiam a casa.
A Carina chegou ainda não eram dez da manhã. Bebé sentada na anca. As malas no carro. O Eduardo num misto de alívio por ter umas noites para dormir sem solavancos e as saudades que ia ter das duas até que chegasse o fim de semana.
Para minha surpresa o Daniel acabou por se oferecer para levar as malas para baixo. Ele, o Eduardo e o senhor que nos havia de conduzir. Américo, era o seu nome. Um velhote castiço, de bigode farto, que estava reformado, mas que, dada a miséria dos rendimentos, fazia uns biscates aqui e ali para o Sr. Rodrigues. Ganhava mais algum, sentia-se útil e assim não aturava a patroa o dia todo. Não tinha feitio para ir para o jardim jogar à batota com os outros da sua idade, isso sim, é que o mataria, disse-nos bem-disposto.
Com tudo arrumado e prontos para arrancar, faltava que me despedisse do Daniel. Não nos beijámos nem lhe disse que ligaria ao final do dia para conversarmos um pouco. Não lhe disse que teria saudades.
- Quando chegarmos mando-te uma mensagem só para saberes que está tudo bem.
Ainda que de forma relutante, o Daniel tinha aceitado que o afastamento seria bom para os dois. Eu não lhe ligaria. Falaria com as miúdas ao final do dia e, se por acaso a saudade das pequenas apertasse, poderia aparecer lá desde que avisasse com antecedência.
Combinei que lhe mandaria fotografias delas. Que fariam chamadas pelo Whatsapp para que se pudessem ver todos os dias se desejassem.
Começamos a fazer caminho.
Precisei de uma boa meia hora para começar a descontrair.
As miúdas e o senhor Américo faziam a festa. A minha mãe estava tão entretida com as conversas dos três que a doença parecia ter-lhe dado tréguas ou estar ela mesma embevecida com aquela pândega, de tal forma que não se queixou a viagem toda.
Era bom vê-la naqueles momentos, esquecida do presente, despreocupada com o futuro, livre do mal que a subjugava.
A casa era mais do que uma simples casa. Um alpendre de novela, espaço para dar e vender. Uma casa principal e mais duas pequenas casas, ligeiramente afastadas da principal. Uma boa piscina, árvores de fruto e espaço, muito espaço.
Imaginei como seria bonita a noite ali, só com a luz da lua e o brilho das estrelas. Sem o som dos carros a passar lá fora.
A Carina limpou uma cadeira para a nossa mãe se sentar. Sentou-se e ali ficou, enternecida, a olhar para o que lhe parecia um infinito de terra, onde havia uma estrada ao longe. Um carro a cada duas horas.
Nem todos contam os últimos dias com os olhos postos em algo bonito.
Vi que os olhos se lhe começaram a encher de lágrimas e o velho Américo também. Sábio e de vida com contornos que só ele sabe, disse:
- Olhe Luísa, a sua mãe está com medo que a meta a aparar esta relva toda.
A nossa mãe riu-se. Nós também. Pousei-lhe a mão no ombro, apertei só o suficiente para que o calor daquele gesto fosse maior que quaisquer palavras. Há momentos em que o silêncio fala mais. Fala melhor.
Levámos os sacos para dentro. A casa não tinha muito para limpar. Era notório que alguém aparecia ali de quando em vez para garantir que não ficava ao abandono.
As miúdas foram correr em torno da casa. Conseguia ouvi-las lá fora. Para além dos pássaros eram o único som. Pediram para ir para a piscina, deixei-as ir molhar os pés.
Abri a janela da cozinha, a que ficava mesmo por cima do lava loiça. Conseguia ver as miúdas sentadas na berma da piscina, a conversar sobre coisas que só a elas interessavam.
Preparei uma salada de atum com grão. A iguaria de quem tem mais que fazer. Sentámo-nos no alpendre, cada um com o prato na mão, um garfo na outra e o copo pousado ao lado. O dia estava bonito demais para que nos fechássemos em casa.
- Fazia disto vida. – disse a Carina com ar satisfeito.
- Quem não, menina. – respondeu-lhe o Américo.
Parei para respirar um pouco daquele ar fresco e concluí:
- Para já é a nossa vida para o próximo mês e meio.