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Exercício de escrita

A vida e os apontamentos sobre ela

#3

29.12.21

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Gosto de agendas.

Gosto de agendas porque me deixa alegre a ideia de que vou poder organizar a minha vida com cores garridas, como se pudesse arrumar tudo no sítio certo sem o frequente olvidar de aniversários, consultas ou a lista de três itens que saí para comprar mas só trouxe um porque entretanto me distraí no corredor das bolachas e dos chocolates.

Gosto de agendas porque gosto de papéis e cadernos e blocos de notas e canetas e agrafos e clips. Gosto de economato.

Gosto de terminar o ano com a agenda nova pronta, com as primeiras anotações e aquilo que tenho de fazer em janeiro, só que depois há dias que ficam em branco e isso aflige-me. Sinto que devia estar toda escrita, mas preencher o comum, o corriqueiro, as tarefas costumeiras do dia a dia parece-me uma coisa sem jeito nenhum. Não vou apontar que tenho de fazer o jantar ou de lavar a loiça ou de passar a roupa. Isso trata-se não em dias específicos, mas quando faz falta. Não tenho consultas ou reuniões na escola todas as semanas (graças aos santos, todos que eu não faço diferenças). Não tenho compromissos pessoais que mereçam registo todos os dias. E as obrigações profissionais ficam no Outlook do trabalho, para me entrarem olhos adentro com pop-ups. Então ponho-me a olhar para a agenda e impaciento-me com aquelas linhas todas por preencher, como se naquele dia a vida fosse vazia. A única coisa a registar é: mais-do-mesmo. Uma pessoa nunca sabe quando é que dá a bufa mestre e depois gasta assim dias, como se não servissem para nada, é mal empregue.

Então decidi começar a fazer um apontamento diário. A agenda vai com o livro para a mesa de cabeceira ao deitar. Uma caneta e anoto ali mais dúzia de palavras. Podem ser só adjetivos ou palavras soltas. Frases curtas. Tiradas e gracinhas do pequeno. Um retrato conciso do que me ficou cá na cabeça.

Assim a agenda fica a valer mais a pena, ajuda-me com as responsabilidades do futuro e ainda me guarda as notas do passado, para eu consultar no final do ano e relembrar o que raio fiz àqueles trezentos e tal dias.

 

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Luísa

Parte 10 - Conto

01.09.21

Quando cruzei o meu olhar com o da bebé, podia jurar que eram os olhos da minha mãe que me fitavam. Foi uma gravidez calma, sem dores ou idas urgentes ao hospital por pequenos sustos. Não engordei demasiado porque comia em excesso em resultado do stress, como aconteceu na primeira gravidez. Não fiquei um palito com barriga como aconteceu da segunda. Uma mãe demasiado cansada a fazer outro bebé.

Passou um ano desde que a carrinha conduzida pelo senhor Américo parou à porta da casa grande da quinta. Voltei à minha casa meia dúzia de vezes. Para mudar o processo escolar das miúdas para aqui. Para levar a minha mãe a consultas de acompanhamento, ainda que contra a sua vontade. Para tirar todas as minhas coisas daquele que foi o meu lar por mais de dez anos. A casa que as minhas filhas conheceram como sua. Quando tirei o último saco chorei, olhei em volta e chorei pelas saudades que já sentia dos recantos daquele meu espaço. O melhor e o pior da minha vida aconteceram ali.

Não vendemos a casa. Optámos por alugá-la. Assim ficaria como um investimento. A casa pagar-se-ia a si própria. Conseguimos uma inquilina excelente que não nos dá arrelias.

A Carina, menos apegada a tudo, vendeu a casa dela e só manifestou alívio por nunca mais ter de passar aquela porta. Por se ver livre do crédito habitação.

Quando propusemos ao nosso pai transformar o lugar num turismo rural o homem mostrou-se tão radiante que julguei que se ficava ali de excitação. Concordou com tudo o que quiséssemos fazer. Não quis valor de renda. Ofereceu-se para investir em melhorias se fosse necessário. Só pedia que, de vez em quando, uma vez por mês, quem sabe, o aceitássemos como cliente não pago.

Nem a Carina foi difícil de convencer.

As últimas semanas da mãe foram passadas num permanente abraço de família. Estávamos todos, sempre, a minutos dela. Exatamente porque sabíamos que a qualquer momento, podíamos chegar e ela já não estar connosco.

Até o nosso pai quis passar esse período connosco. Mantinha-se afastado. Fazia caminhadas longas para não se notar, mas, de quando em vez, lá dava com ele, encostado à cabeceira da cama dela, a falar-lhe em surdina de qualquer coisa que a fazia sorrir.

Estava um dia bastante agradável para dia de inverno. Ainda faltavam algumas semanas para o natal, mas tínhamos o espaço todo arranjado. Luzes, fitas, vermelho por todo o lado, brilhantes, bolas que imitavam neve. Chamou-me. Apetecia-lhe ir lá para fora. Queria apanhar ar, estava farta do quarto. Estava frio, mas bonito. O Daniel ajudou-me a sentá-la na cadeira de rodas, a aconchegá-la em mantas. Sentámo-nos no alpendre a fazer-lhe companhia.

Chegou-se a Carina, o Eduardo que agora trabalhava por conta própria e geria o seu horário, o meu pai, com a distância necessária. As miúdas brincavam ao longe. Riam na nossa direção, ocupavam-se da pequena que se encantava com tudo o que elas faziam.

- Vou ter saudades das miúdas. Especialmente delas. De vocês também. Pode ser que seja verdade, que as consiga ver lá de cima. Digam-lhes para que, de vez em quanto, acenem para o céu. Só para o caso de eu estar atenta. Assim sei que ainda se lembram de mim.

Pus-lhe a mão no ombro. A Carina, sentada no chão, deitou a cabeça no colo dela, como fazia quando era miúda e as coisas não corriam de feição na escola. E ela, dividindo o que tinha entre as filhas, como sempre fizera, segurava a minha mão por cima do ombro. Afagava o cabelo da Carina, devagar, como quem amansa um bichinho com medo.

Já não me lembro quanto tempo ali ficámos, em silêncio, ao som das gargalhadas das miúdas, até que nos disse que queria voltar para dentro. Ajudámo-la a deitar-se. Demos-lhe um beijo antes de sairmos para outros afazeres na casa. Era assim naqueles dias, despedidas muitas, despedidas que não se diziam por despedidas.

Partiu leve e pacífica. A dormir.

Nas semanas seguintes senti-me mal. Vomitava sistematicamente. Estava fraca. Achei que era tristeza, que era ansiedade, que era dor da perda, que era normal. Passaria quando o corpo e a cabeça se habituassem àquele vazio. Foi a Carina que insistiu que eu fosse ao médico.

Feitas as análises confirmou-se a suspeita do médico. Ri-me quando colocou a hipótese de eu estar grávida. Estava.

As miúdas ficaram radiantes. A minha irmã primeiro torceu o nariz. Depois achou fantástico que a filha tivesse uma prima ou primo de idade mais próxima.

- Vida nova. Pessoas novas. – disse o Daniel, mais eufórico do que eu podia imaginar.

Da minha parte não sabia o que sentir. Passei a gravidez assim, sem saber o que sentir. Tinha uma perda para sarar, uma mudança de vida para me habituar, um ritmo que se entranhava cada vez mais e agora, com esta idade, tudo de novo. Fraldas, choro, chupetas, noites interrompidas, primeiras gracinhas, primeiras palavras. Desta vez não tinha a minha mãe a quem ligar, por isso, na maioria dos dias, quando lavava a loiça e tinha a janela aberta, olhava para cima e pedia-lhe que me desse uma ajuda. Que fosse tomando conta daquilo a que eu não chegava. E a bebé mexia, pontapeava.

Quando chegámos a casa, eu cansada do parto e das primeiras noites. O Daniel fresco e a empurrar o carrinho. As miúdas pediram para mostrar o que era importante à irmã.

Pedimos-lhes cuidado.

Elas guiavam à vez. Num trabalho distribuído. Apresentavam uma casa, outra casa, o avô tardio que se sentava no alpendre da casa grande e era avô e hospede grátis. Um casal que estava a passar uns dias connosco ria com a desenvoltura das miúdas. A casa pequena da tia, a casa pequena onde ela ia viver. A piscina, o espaço para brincar, o escorrega, o caminho para as bicicletas. E o céu, onde morava a outra avó, aquela que só viam brilhar à noite, antes de irem dormir, para que nunca tivessem medo do escuro.

Luísa

Parte 8 - Conto

28.08.21

Sou uma mulher de listas. Listas para as compras. Listas para as tarefas do trabalho. Listas para as tarefas de casa. Listas para as coisas que tenho de comprar para as miúdas. Listas, listas e mais listas. São a minha sensação de controlo. O mínimo de organização que consigo impor.

Por isso fiz uma lista com tudo o que tinha de levar: roupas das miúdas, roupas minhas, calçado, medicamentos da minha mãe, mercearias básicas, produtos de limpeza. Tratei de tudo e dei comigo naquela manhã, com o corredor cheio de malas, sacos, cestas, pacotes e mais pacotinhos e uma sensação de que ainda assim me havia de faltar alguma coisa.

O Daniel andava pela casa, fazendo notar a sua presença, passando por mim sem oferecer ajuda, mostrando o seu desagrado pelo tempo que íamos estar afastados.

- Isto pode ser bom para todos. – disse-lhe enquanto olhava para os sacos e ele se mantinha encostado à ombreira da porta da cozinha, de chávena de café na mão.

Não me deu resposta.

As miúdas estavam eufóricas. Para além de um verão em que fomos passar uns dias ao Algarve para uma casa alugada a preço de saldo a um familiar de um colega de trabalho do Daniel, as miúdas nunca saiam dali. Íamos à praia perto de casa, um tempo infernal dentro de um carro com o ar condicionado avariado, filas de trânsito, um desespero para sair da praia com carros estacionados dos dois lados, quase pendurados das árvores.

Iam ter uma aventura para contar às amigas. Iam passar aquelas férias livres, com espaço, longe das quatro paredes do apartamento, longe dos dias enfiadas no ATL onde olhavam por elas até ao final de julho e depois andariam aos caídos, entre uns dias de praia, uns passeios ao jardim, uns dias a ver filmes na televisão até que setembro acabaria por chegar e tudo começaria de novo.

O meu pai falou com um amigo que nos dispensou uma carrinha da empresa e um empregado que nos fosse deixar ao nosso destino. Dessa forma poderíamos seguir todas juntas e levar as tralhas que precisávamos para mais de um mês. Segundo o que o nosso pai nos disse, à porta da tal casa havia um carro velho, que deveria ainda funcionar, que era usado pelo senhor que de vez em quando lá ia dar um jeito às coisas, só mesmo para garantir que as ervas daninhas não comiam a casa.

A Carina chegou ainda não eram dez da manhã. Bebé sentada na anca. As malas no carro. O Eduardo num misto de alívio por ter umas noites para dormir sem solavancos e as saudades que ia ter das duas até que chegasse o fim de semana.

Para minha surpresa o Daniel acabou por se oferecer para levar as malas para baixo. Ele, o Eduardo e o senhor que nos havia de conduzir. Américo, era o seu nome. Um velhote castiço, de bigode farto, que estava reformado, mas que, dada a miséria dos rendimentos, fazia uns biscates aqui e ali para o Sr. Rodrigues. Ganhava mais algum, sentia-se útil e assim não aturava a patroa o dia todo. Não tinha feitio para ir para o jardim jogar à batota com os outros da sua idade, isso sim, é que o mataria, disse-nos bem-disposto.

Com tudo arrumado e prontos para arrancar, faltava que me despedisse do Daniel. Não nos beijámos nem lhe disse que ligaria ao final do dia para conversarmos um pouco. Não lhe disse que teria saudades.

- Quando chegarmos mando-te uma mensagem só para saberes que está tudo bem.

Ainda que de forma relutante, o Daniel tinha aceitado que o afastamento seria bom para os dois. Eu não lhe ligaria. Falaria com as miúdas ao final do dia e, se por acaso a saudade das pequenas apertasse, poderia aparecer lá desde que avisasse com antecedência.

Combinei que lhe mandaria fotografias delas. Que fariam chamadas pelo Whatsapp para que se pudessem ver todos os dias se desejassem.

Começamos a fazer caminho.

Precisei de uma boa meia hora para começar a descontrair.

As miúdas e o senhor Américo faziam a festa. A minha mãe estava tão entretida com as conversas dos três que a doença parecia ter-lhe dado tréguas ou estar ela mesma embevecida com aquela pândega, de tal forma que não se queixou a viagem toda.

Era bom vê-la naqueles momentos, esquecida do presente, despreocupada com o futuro, livre do mal que a subjugava.

A casa era mais do que uma simples casa. Um alpendre de novela, espaço para dar e vender. Uma casa principal e mais duas pequenas casas, ligeiramente afastadas da principal. Uma boa piscina, árvores de fruto e espaço, muito espaço.

Imaginei como seria bonita a noite ali, só com a luz da lua e o brilho das estrelas. Sem o som dos carros a passar lá fora.

A Carina limpou uma cadeira para a nossa mãe se sentar. Sentou-se e ali ficou, enternecida, a olhar para o que lhe parecia um infinito de terra, onde havia uma estrada ao longe. Um carro a cada duas horas.

Nem todos contam os últimos dias com os olhos postos em algo bonito.

Vi que os olhos se lhe começaram a encher de lágrimas e o velho Américo também. Sábio e de vida com contornos que só ele sabe, disse:

- Olhe Luísa, a sua mãe está com medo que a meta a aparar esta relva toda.

A nossa mãe riu-se. Nós também. Pousei-lhe a mão no ombro, apertei só o suficiente para que o calor daquele gesto fosse maior que quaisquer palavras. Há momentos em que o silêncio fala mais. Fala melhor.

Levámos os sacos para dentro. A casa não tinha muito para limpar. Era notório que alguém aparecia ali de quando em vez para garantir que não ficava ao abandono.

As miúdas foram correr em torno da casa. Conseguia ouvi-las lá fora. Para além dos pássaros eram o único som. Pediram para ir para a piscina, deixei-as ir molhar os pés.

Abri a janela da cozinha, a que ficava mesmo por cima do lava loiça. Conseguia ver as miúdas sentadas na berma da piscina, a conversar sobre coisas que só a elas interessavam.

Preparei uma salada de atum com grão. A iguaria de quem tem mais que fazer. Sentámo-nos no alpendre, cada um com o prato na mão, um garfo na outra e o copo pousado ao lado. O dia estava bonito demais para que nos fechássemos em casa.

- Fazia disto vida. – disse a Carina com ar satisfeito.

- Quem não, menina. – respondeu-lhe o Américo.

Parei para respirar um pouco daquele ar fresco e concluí:

- Para já é a nossa vida para o próximo mês e meio.