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Exercício de escrita

Vinte e oito

06.12.22

Era lenta a correr, nunca ganhava a jogar à apanhada. Jogava mal à bola, tropeçava nos meus próprios pés e perdia a esfera em menos de nada. Era uma imbecil a jogar ao mata, porque uma pessoa meter-se a jeito para sofrer com uma bolada era coisa de parvos. Esfolava os joelhos a saltar ao elástico e chegava a casa a parecer que tinha descido com eles uma ribanceira. Era baixa para o basquete. Era gorda. Tinha cabelo encaracolado numa altura em que ninguém queria ter tal ninho de pássaros em cima da cabeça.

Passava as tardes a ver a pequena sereia, o cocktail, o dirty dancing e o Alice no país das maravilhas. Lia os mesmos livros vezes sem conta, inventava histórias sozinha e fazia peças de teatro só com uma atriz e um público sempre atento de três bonecos. Olhava para a praceta vazia e tinha pena de não ter nascido no lugar do meu irmão mais velho, porque no tempo dele a praceta era um parque cheio de crianças em vez de carros.

Na escola aprendi depressa que me safava melhor a fazer de Esteves (Herman) do que a jogar ao beijo ou estalo. Qd chegou a adolescência e os cadernos com as capas riscadas, com desenhos e dedicatórias das amigas, aprendi que tinha jeito para fazer as outras rir com as palavras. Escrevia para uma textos estapafúrdios misturando graças, palavras inusitavas e acontecimentos dos quais elas já nem se lembravam. Tens de me fazer uma também, diziam-me quando acabavam de rir da que tinha acabado de escrever. Sentia-me especial, sempre havia alguma coisa que fazia mais ou menos bem. Eu, quando estava para aí virada, escrevia.
Nessa altura nem me passava pela cabeça escrever mais do que aquelas baboseiras, até porque tinha escrito uma história, anos antes, num caderno de capa preta, e a Vânia (única leitora) tinha só dito que estava fixe com um encolher de ombros. Miséria. Tinha eu andado a ler um livro do meu irmão às escondidas para saber como é que se escrevia um livro de adultos, para uma crítica daquelas.

Mas a história dessa história fica para outras núpcias, que isto aqui no Instagram* tem caracteres contados e eu se calhar ainda faço disto uma espécie de crónica para a newsletter.

 

 

*estes textos são originalmente escritos para publicação nesta rede social 

Dezassete

24.11.22

Detesto incomodar. Detesto sentir que estou a ocupar espaço na vida de outra pessoa, como uma pedra que está a forçar a sua entrada no sapato. Detesto impor as minhas necessidades, perguntando se podem fazer isto ou aquilo por mim, deixando as pessoas numa posição chata de ter de dizer que não.

Habituei-me desde miúda a fazer as coisas por minha conta, se conseguisse conseguia, se não conseguisse é porque não era para ser. São más experiências passadas, somadas ao orgulho e ao receio de me colocar numa situação desconfortável. É um bolo em camadas de incómodo. A falta de jeito para pedir, o saber que estou a ocupar espaço e o mau estar que me causa quando do outro lado me deixam bem claro o peso do meu pedido.

Por isso quando terminei o meu manuscrito em junho só pedi cá em casa para ler. E pedi porque é quem mais me incentiva e porque nunca se sabe se sou a próxima J. K. Rowling e, por obrigações de matrimónio, tenho de dividir as mais-valias. Então não se pode queixar de ler meia dúzia de páginas.

Tive pessoas muito simpáticas que me desejaram sorte, que me disseram que se precisasse tinham quem lesse, que me deram contactos. Agradeci e disse: deixa lá estar, eu vou marrar com isto sozinha.

Acabei a levar na cabeça em casa, porque não pode ser assim, porque tenho de aproveitar quando alguém tenta ajudar. Eu nada.

Passaram-se quase seis meses, matutei muito e decidi chatear duas ou três pessoas, pedir uma opinião a quem percebe alguma coisa disto das palavras e das histórias. Ter opiniões sinceras e duras sobre o que está feito. Fiz umas mensagens sem jeito. Custou-me bater à porta como os funcionários da tv cabo e dizer: vim importunar, posso?

Tive sorte, ou a maturidade tem-me ensinado a ler melhor quem me rodeia e vou dando comigo a encontrar gente de uma generosidade que não sei se mereço.

#3

Três dias, três pequenos contos

16.12.21

Sabia das crianças de lá de onde a mãe trabalhava. Um lugar que lhe parecia encantado onde se tomava conta de quem não tinha ninguém. Sabia que o natal não se passava entre os desaguisados dos tios, as travessas de bacalhau, os sonhos e as fatias douradas. O natal, nesse sítio onde se distribuía amor em porções iguais nas horas ditadas pelo ponto, era passado no amparo dos desamparados. Ouviu a mãe falar da festa singela que iam fazer com a simpatia de quem ajudava. Entrou no quatro e fechou as portas. Remexeu caixas e armários. A mãe de mãos à cabeça. Em poucas horas uma dúzia de embrulhos regados a fita cola. Levas amanhã, mãe. Dizes que foi um pai natal pequenino, sem barbas e sem trenó.