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Exercício de escrita

Quinze

22.11.22

Se for para andar à pêra chamem-me que eu apareço, agora se for para ver os meus filhos a ser vacinados não contém comigo que eu não tenho estofo para isso.

Embrulham-se-me as entranhas ao vê-los a ser picados uma e outra vez. No fim com as perninhas gordas a parecer cadernetas de cromos, cheias de pensos coloridos. Se não estiver a pensar que aquilo os salva de coisas terríveis, pego neles e corro hospital afora como uma maria ensandecida.
Choro. Choro muito. Vou logo avisando a enfermeira que choro mais do que a bebé. Da primeira vez foi pior, tiveram de me pedir amavelmente para sair da sala de vacinação. Desta vez já fui uma crescida, fiquei a um canto a verter tanta água dos olhos que mais parecia que alguém tinha feito um furo numa barragem. Comporto-me de forma infantil, o pai segura, a enfermeira dá as vacinas e eu depois pego na bebé e faço aquela cara de quem diz: pronto, a mãe agora não os deixa fazer mais mal.

É vergonhoso. O nível de palermice a que uma mãe chega.

Dou por mim capaz de pedir que a enfermeira me inocule o lombo todo para que não tenha de o fazer à bebé. Ela tem de levar 4? Dê-me a mim 12 e não se fala mais nisso. Deve passar no leite.

Se eu mandasse no universo e no cosmos e nessas coisas todas, as crianças só levavam vacinas a partir dos 14, que é quando já estamos mesmo fartos da merda que dizem e nessa altura já nem rezamos por uma enfermeira doce e meia, compramos e administramos em casa mesmo, de preferência entre os olhos.

Sodona imperatriz Inês foi hoje à vacina. Eu estou a gerir a minha ansiedade, a minha hipocondria e o meu stress pós-traumatico. Estou a vê-la dormir na alcofa, piscando a baixa velocidade, numa concentração de segurança privado treinado pela mossad, à espera da pior das meliantes - a febre - pronta para lhe dar um sopapo de paracetamol no focinho.

Agosto às 5

Dia 6

08.08.22

Ontem o Ricardo perguntou-me qual era a coisa que eu mais amava na vida. Normalmente quando me faz esta pergunta quer ouvir: tu, filho. Sempre tu.

Em vez disso respondi-lhe: os meus filhos.

Ele espantou-se com a resposta no plural de disse-me: filhos?, mas tu só tens um filho que sou eu.

Eu disse-lhe: sim, filhos. Tu e a mana. Que está aqui, sempre comigo.

É que para ele a irmã, ainda por nascer, é uma barriga grande e meia dúzia de fotografias com fraca resolução que os pais lhe mostram de vez em quando. É o carrinho que está a ocupar espaço no quarto dele, as roupas mínimas que temos comprado, a projeção de um futuro ser humano com quem ele vai conviver e que espera (e me pergunta tantas vezes) que o vai amar muito também. Mas para mim, a minha filha, a irmã dele, é muito real. Não preciso de a ver para o saber. Está aqui, comigo, a tempo inteiro, nesta relação quase possessiva em que ela é só minha e de mais ninguém, em que a tenho aqui só para mim, resguardada de todas as coisas de que tenho medo no mundo. Está aqui, a fazer companhia de uma forma um tanto ou quanto abrasiva, é certo, pautando-se a sua interação por murros, pontapés e cabeçadas em órgãos vitais, mas, ainda assim, fazendo dar-se conta de que aqui está.

Com ela, com a expectativa do rosto e da filha que tratei ao mundo, moram os medos, os medos do que pode correr mal, dos planos gorados, das coisas que a vida leva sem explicação. Depois dos medos, ou ao lado deles, a espera por um natal com mais um, as mãos dadas dos irmãos, o cão a roubar rocas, as impaciências – mais tarde – porque aquela camisa ainda não está tratada. Está aqui, ainda não nasceu para o resto do mundo, mas existe para mim e mostra-me isso todos os dias, especialmente quando sova a minha bexiga, deixando-me claro que não é desta que tenho uma princesa indefesa, vestida de rosa e adornada a purpurinas. É mais fácil que vá para lutadora de MMA.

Depois de lhe ter dito: sim, filhos. Tu e a mana. Que está aqui, sempre comigo. Ele fez aquele olhar de quem diz: ah, pois é. Depois voltou a perguntar aquilo que me pergunta quase todos os dias: a mana nasce quando mesmo?

 

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