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Exercício de escrita

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10.02.23

Oito anos.

Amo-o para lá do que a razão pode explicar.

Temos o mesmo feitio. E estes olhos grandes, escuros e curiosos.
Somos palhaços. Rimos de palavras só porque ouvimos as palavras. Comemos gomas por ordem de preferência. Gostamos de fazer os outros rir e tentamos encontrar o lado cómico daquilo que nos dói. Eu hoje sei que o faço para aliviar o fardo, ele um dia vai entender isso também.
Eu babo-me com croissants do careca e ele até bate palminhas só de ouvir que os vai comer. É assim desde que comeu o primeiro, tinha ele um ano de idade. Diz com orgulho imenso que é alfacinha, só porque foi nascer ao outro lado da ponte. É um miúdo de abraços, tem tanto de despistado quanto de carinhoso e é muito de ambos. Derrete-me quando abraça a irmã e lhe segreda que ela é a melhor coisa da vida dele.

É ele que me ensina todos os dias a ser mãe e é por ele que tento ser alguém melhor, porque acredito, genuinamente, que o exemplo faz a diferença.

Às vezes apetece-me pendurá-lo pelas orelhas no estendal, quando ele faz coisas como ir buscar letras com ímen para escrever "cagalhão" na porta do frigorífico, ou quando me diz que eu, quando ralho, pareço um Pokemon em evolução.

É, gosto de acreditar, o resultado de quem se sente livre e amado.

Ontem contei-lhe mais uma vez como foi o dia em ele nasceu, e enquanto falava, parecia-me que tinha acontecido há dois dias. O tempo, estou cada vez mais certa disso, não corre, voa.

Agora vou ali choramingar mais um bocadinho, porque o meu primeiro bebé está a ficar um crescido.

Parabéns ao meu matulão, que adora saber as capitais dos países e que me ensinou que os ursos polares não comem pinguins porque os pequenotes de smoking e andar engraçado moram no Polo sul.

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27.01.23

Levei os meus filhos à vacina, não chorei, sinto-me uma mulherzinha crescida.

Sou daquelas mães que, não sendo histérica, chora baba e ranho quando vê os filhos bebés a ser vacinados. Quando ficam maiores passa-me. Mas bebés. Que aperto. Transtorna-me ver umas perninhas pequenas e rechonchudas, de alguém que ainda nem sabe o que raio anda cá a fazer, a levar picadelas, umas atrás das outras, sem conseguir compreender porque é que quem mais a deve amar a segura para que lhe causem dor.

Normalmente é o pai que os agarra, eu fico a um canto ou do lado de fora da sala e entro quando o mal já está feito, para pegar nos bebés e embalá-los, dizendo-lhes em surdina que a mãe nunca mais vai deixar que lhes façam tal patranha. Minto descaradamente, digo que a mãe se vai a eles (seja lá quem for), que arreio com as travessas de metal que as enfermeiras para lá têm nas ventas dos maus, que arranco para o Pólo Norte e dou um biqueiro num pinguim, o que for precioso. Faço shshshshsh ao ouvido e figura de palerma. Fui eu que os levei porque sei que as vacinas os protegem. Mas naquele momento, naquele exato instante, enquanto mostro os dentes num sorriso compreensivo e tento de forma inglória conter as lágrimas, só me apetece pegar neles e fugir, qual primata em apuros.

Ontem, levei os dois para ser vacinados. O mais velho levou uma. A bebé levou quatro. Ele tem costas largas, é robusto, com spray milagroso ele nem deu conta do que lhe aconteceu. Agora ela. Minha rica menina.

Eu ia pronta para o descalabro, mas desta vez, não sei bem como nem onde fui buscar o estômago, fiz-me rija. Aguentei-me estoicamente e, no único momento em que uma lágrima estava quase a sair do olho esquerdo, fiz tanta força que sou capaz de garantir que a lágrima voltou para dentro e o olho começou aos saltos. No fim, com a bebé mais calma e todos os trâmites despachados, senti-me corajosa, a mãe leoa que foge de pequenos répteis e insetos. Julguei que o Universo me compensaria por isso, mas afinal fui multada pela EMEL.

 
Nota: neste texto usam-se coisas que são figuras de estilo, pelo que importa esclarecer que, nenhum animal foi aleijado, até porque não há pinguins no Polo Norte.

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25.01.23

Se tem aversão a dormir de noite e dá consigo sem saber o que fazer nessas horas, arranje uma criança.

A criança, para quem não sabe, é um bicho que aparece no planeta para contrariar na generalidade e quem a educa em particular. Se é para ir tomar banho a criança quer chafurdar na lama, se é para brincar a criança quer ir tomar banho; se é para jantar a criança quer jogar à macaca, se é para estar a brincar a criança tem fome; se a cozinha está disponível não lhe apetece nada, se o chão acabou de ser lavado apetece-lhe um iogurte; se é para ir para a cama não têm sono, se é para levantar precisa de "só mais 5 minutos".

E é aqui, no sono, no mais belo prazer de dormir, que a criança começa os seus trabalhos de aniquilação absoluta do adulto cuidador.

Primeiro surge um som, normalmente uma vogal em tom acentuado ou um ditongo básico. Algo nas linhas do: AAAAA UUUUUU TA-TA-TA-TA DAAAAAA. A pessoa acorda, umas vezes sem saber se a casa está a ser assaltada, outras vezes a desejar ser abduzida por extraterrestres, outras ainda a achar que um eletrodoméstico deu o pifo mestre na cozinha. Depois percebe que o problema está na máquina de fazer cocó que devia estar a dormir na cama ao lado. A pessoa dá tudo o que tem: muda fralda, oferece mama, oferece uma cama inteira de adulto disponibilizando-se para dormir aninhada no chão com a cabeça encostada à mesa de cabeceira, mas nada. A criança acordou às quatro e tem vontade de partilhar o seu dia. Ou seja, a criança, essa criatura de bochechas rosadas e pernas rechonchudas, que encanta tudo e todos com o seu sorriso desdentado, apesar de estar acompanhada todo o dia, só entende que deve partilhar as suas alegrias, usando todas as vogais e meia dúzia de consoantes, de madrugada. A pessoa sorri, enquanto sente a cara derreter porque a falta de descanso rebenta com as trombas de qualquer desgraçado e, tentando manter pelo menos um olho aberto, procura explicar à doce criatura: tu amanhã não trabalhas, pá!!!! (ler estas últimas 5 palavras com o som esganiçado do desespero).

Dito isto, saliento que as crianças são o melhor do mundo, logo a seguir aos coalas. Porque em boa justiça, nunca um coala me acordou a meio da noite.

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18.01.23

Esclareço o meu filho à razão de sete vezes por semana que, se eu lhe aplicasse uns ajustes educacionais de teor artesanal como aqueles que se admistravam aos petizes no meu tempo, ele acharia muito menos piada ao que eu digo e andava direito e fininho sem levantar cabelo. Mas os tempos evoluíram - ou assim se acredita - e as crianças, que antigamente faziam o que lhes era dito porque lhes era dito e pchiu, senão ainda levavam um abre alhos, andavam nas suas vidas certos e sabidos das linhas com que se cosiam.
As crianças em princípio não tinham sentimentos, a menos que sentissem uns piparotes motivacionais. Não havia fadas, nem duendes, nem dragões dos dentes. Quando caía um dente a única coisa que a gente ganhava era o dente novo quando nascesse. O meu filho, quando sente um dente a abanar, começa a fazer contas ao guito que a "fada" pode trazer.
As crianças não tinham opinião nos assuntos dos adultos e se queriam ser crescidos podiam começar por pôr a mesa e lavar a loiça.
A minha mãe não me explicava que o ferro podia queimar e depois blá-blá-blá. Dizia-me: não mexas nisso que queima. Só. E se depois eu insistisse despachava o assunto com o infalível: se te queimares ainda levas por cima.

Não sou defensora dos métodos antigos, mas há dias (aqueles em que conjugar um verbo é mais difícil do que ensinar um hipopótamo a dar a pata, ou que abro a lancheira e a comida retorna numa espécie de amálgama saída da bufunfa de um mamute) em que sinto que a pedagogia do croque era, se não mais eficaz, pelo menos mais eficiente.

A minha mãe não se preocupava que eu ficasse traumatizada, desde que eu tivesse juízo e não me metesse nas drogas.
Eu trinco as cabeças dos dedos com medo que os meninos fiquem com os sentimentos amolgados. Culpo-me do que faço demais, porque lhes facilito a vida e culpo-me do que faço de menos, porque tadinhos, só se é pequeno uma vez.

Vinte e nove

07.12.22

Olho para os meus filhos e tento encontrar o que de mim há neles. Gostava que fossem resistentes como tenho sido, que fossem mais pacientes, que tenham a sorte de um cabelo forte e saudável, que saibam escolher os amigos, que consigam gerir as expectativas sem sucumbir à desilusão, que tenham sempre a garra necessária para sair do poço por mais fundo que possa ser. Procuro pelas características que detesto e tento - imbecilmente - mudar neles o que nunca consegui mudar em mim. Porque apesar de saber errado não tive o estofo para melhorar. É por saber o quanto me prejudicaram que tento exorcizá-los desses traços, como quem tenta varrer um demónio para fora de casa.

Porque lhes quero uma vida com menos erros que a minha julgo-me, por vezes, capaz de os moldar, como se pudesse erguer uma seta a apontar para o caminho que eles têm de seguir. Quando não a seguem faço birra, levanto aos mãos aos céus, será que não veem que o que faço é por eles? Eu espatifei-me no chão, eles não precisam de cair no mesmo sítio.
Grito, esperneio, dano-me.
Amo-os tanto que não concebo que se magoem, mais ainda quando estou a ver onde vão tropeçar.

Depois reconheço que têm de cair. Que têm o direito de ser quem são. Que não são feitos de plasticina, moldáveis aos meus desejos. Desejos bem intencionados, daqueles que os querem numa vida de filme, numa casa com alpende, felizes no trabalho, a viver com quem amam e, sem dúvida, com dois labradores em casa. Ou se valhar a viajar mundo afora, a conhecer os quatro cantos do mundo, com chamadas diárias à mãe e fotografias cheias de sorrisos em arranha céus, com pirâmides ou deleitados com iguarias repletas de sabor e cor.

Talvez seja a minha resistência para perceber que os meus filhos não são meus, não os posso guardar debaixo da asa, não os posso proteger do mundo como faço em bebés, afastando os copos e os talheres para que não se magoem.

No fim não sei quem aprende mais todos os dias, se são eles ou eu.

Quinze

22.11.22

Se for para andar à pêra chamem-me que eu apareço, agora se for para ver os meus filhos a ser vacinados não contém comigo que eu não tenho estofo para isso.

Embrulham-se-me as entranhas ao vê-los a ser picados uma e outra vez. No fim com as perninhas gordas a parecer cadernetas de cromos, cheias de pensos coloridos. Se não estiver a pensar que aquilo os salva de coisas terríveis, pego neles e corro hospital afora como uma maria ensandecida.
Choro. Choro muito. Vou logo avisando a enfermeira que choro mais do que a bebé. Da primeira vez foi pior, tiveram de me pedir amavelmente para sair da sala de vacinação. Desta vez já fui uma crescida, fiquei a um canto a verter tanta água dos olhos que mais parecia que alguém tinha feito um furo numa barragem. Comporto-me de forma infantil, o pai segura, a enfermeira dá as vacinas e eu depois pego na bebé e faço aquela cara de quem diz: pronto, a mãe agora não os deixa fazer mais mal.

É vergonhoso. O nível de palermice a que uma mãe chega.

Dou por mim capaz de pedir que a enfermeira me inocule o lombo todo para que não tenha de o fazer à bebé. Ela tem de levar 4? Dê-me a mim 12 e não se fala mais nisso. Deve passar no leite.

Se eu mandasse no universo e no cosmos e nessas coisas todas, as crianças só levavam vacinas a partir dos 14, que é quando já estamos mesmo fartos da merda que dizem e nessa altura já nem rezamos por uma enfermeira doce e meia, compramos e administramos em casa mesmo, de preferência entre os olhos.

Sodona imperatriz Inês foi hoje à vacina. Eu estou a gerir a minha ansiedade, a minha hipocondria e o meu stress pós-traumatico. Estou a vê-la dormir na alcofa, piscando a baixa velocidade, numa concentração de segurança privado treinado pela mossad, à espera da pior das meliantes - a febre - pronta para lhe dar um sopapo de paracetamol no focinho.