Madalena - parte 1
Quando o passado destabiliza o presente
Tivemos de furar para encontrar um espaço para pousar as toalhas e todos os sacos de tralha que os miúdos obrigam para meia dúzia de horas à beira mar. A mochila com os documentos e o livro que não vou ler, mas que insisto em trazer. A mala térmica com sumos frescos e fruta. As toalhas que vou estender na areia e mal vão ser usadas. O saco dos brinquedos, com baldes, pás, ancinhos e carros que vão ser enterrados algures e terei de passar a última meia hora a descobrir. Isto quando não ficam esquecidos, resultando em birras, choro e lamentos profundos porque aquele era sempre o carro favorito.
Pergunto-me se o pai chegará à praia tão cansado como eu. Provavelmente não. O mais certo é que alugue um toldo, que os convença a jogar à bola, que vá com eles para o mar e que lá estejam o tempo quase todo. Posso jurar que quando dizem ter fome se sentam para comer no bar da praia. A acompanhá-los vai a namorada, desejosa de agradar, que ajuda a cuidar da garotada. Com o pai cada um leva a sua toalha, comigo o tecido torna-se demasiado pesado. Carrego eu que, não tendo aptidão para concursos de mergulho nem dinheiro para sumos de fruta fresca e tudo o que quiserem pedir no bar, os obrigo às sandes feitas em casa e às caixinhas de fruta descascada e cortada em quatro antes de sair de casa.
- Não quero essa fruta, está meio amarela.
Posso explicar mil vezes que a fruta está em excelentes condições. Que fica oxidada por estar descascada e em contacto com o ar. Mas não surte efeito. Comem as sandes. Pedem batatas fritas que levo, em pacotes pequenos. Por vezes, entregando todos os pontos, compro bolas de Berlim para os três. Nesses dias consigo ser uma mãe fixe.
Tento convencê-los a ficar pelas poças de água quando a maré está baixa. Conseguem divertir-se perfeitamente e eu posso divagar, fazendo-me interessada nas suas brincadeiras. Posso distrair-me a olhar à minha volta sem receio de que avancem demais no mar e acabe por precisar de chamar o nadador salvador. Podia entrar, sei nadar bem, mas não posso deixar um em terra desamparado e ir atrás do outro. A neurótica que tenho em mim precisa de mais controlo.
Já não vão na cantiga de ficar naquelas a que chamo piscinas do mar. Com sete e oito anos, ambos bons nadadores, habituados a horas de mar com o pai não aceitam ficar ali. Acordamos ir para a rebentação. Sabem que comigo não podem avançar muito. Têm de ficar onde têm pé, melhor, a água deve dar-lhes, no máximo, pela cintura. Suspiram. A mãe chata. Desmancha prazeres. Por mais que lhes explique da corrente e da rebentação. Não querem saber.
O pai é um bom pai. Cuida deles. É divertido. Fazem coisas engraçadas. Gostam de estar com ele. Há mais de um ano que namora com a mesma mulher, pelo que sei já vivem juntos. Entendem-se. Sou eu que lido mal com tudo aquilo. Com a descontração com que o pai vive. Com a minha incapacidade de dar a volta à minha vida. Com a minha entrega. Olho para baixo e vejo as minhas pernas flácidas, num tom esbranquiçado, como se tivessem sido lavadas com lixivia depois de muito encardidas. Vejo o fato de banho liso com um adorno no meio para disfarçar a prega que tenho na barriga. Não me sinto confortável de biquíni e sabendo que vou andar atrás dos miúdos, fazendo tarefas de mãe, muito menos. Não me apetece sugar os órgãos para diminuir o abdómen centímetro e meio.
Na praia para que vamos não há muitos jovens de corpos em forma, a esfregar a minha cara nas suas barrigas lisas e nas mamas que se seguram sozinhas. Aqui há mães, grávidas certas de que vão fazer melhor, pais babados porque ainda não sabem que, mais cedo ou mais tarde, vão querer uma mulher mais descontraída e não aquela que agora, mais do que mulher, é mãe. Por aqui há avós e famílias que se juntam a outras famílias para que os miúdos se possam entreter uns com os outros e os pais possam descansar das brincadeiras, que redundantemente terei de apelidar de infantis.
Abeiraram-se de mim dois homens, estavam embrenhados numa conversa aguerrida sobre Benfica e Sporting e eu reconhecia a voz de um deles. Tinha a certeza que sabia quem era, fechei os olhos por segundos para me concentrar no timbre e sim, confirmava-se, vinte anos depois, ainda conseguia saber de quem era aquela voz. Baixei a cabeça e, num movimento lento de quem está apenas a apreciar o sol que lhe queima o rosto, rodei a cara para confirmar a minha suspeita. Era ele. Cruzámos o olhar, mas fiz de conta que não o estava a ver, o meu objetivo estava lá atrás, em qualquer coisa que evidentemente não interessava a ninguém. Ele olhou para trás para ver quem estaria atrás dele e sorriu. Acenou e não tive outra hipótese que não reconhecer que o tinha visto. Naquele momento passaram-me mil coisas pela cabeça. Foram frações de segundo que duraram os quatro passos que deu em minha direção depois de tocar no ombro do amigo e ter dito qualquer coisa como: só um minuto.
Lamentei não ter cuidado mais de mim. Não ter ido ao solário para ganhar uma cor em vez de ir para a praia a parecer um trapo deslavado. Não ter seguido a ideia da Luísa, que corria quatro dias por semana e fazia agachamentos na casa de banho de hora a hora e tinha uma técnica de prensa abdominal para ter a barriga definida. Vieram-me à boca os quatro brownies que comi de empreitada no dia anterior, depois de os miúdos olharem para o que eu tinha acabado de tirar do forno e dizerem que lhes apetecia mais um bullycao. Ainda estavam mornos.
- Há quanto anos. - disse-me enquanto sorria, sempre sedutor. Percebi que me media o desconforto. Entretido com a minha falta de jeito.
- É verdade. O tempo passa depressa. – respondi desviando para ver onde andavam os miúdos. Conversa carregadas de frases feitas e lugares comuns.
- Ainda há dias me lembrei de ti. – confessou, como se fosse uma coisa perfeitamente normal. - Tenho pena que tenhamos perdido o contacto.
- Tens mesmo? - perguntei-lhe. Não me parecia que fosse o caso.
- Tenho. - disse sem hesitação.
- Então vieste aqui com a família? - perguntei. Não sei se porque queria desconversar, se porque queria mesmo saber se ele ali estava a fazer conversa de circunstância, investindo na sedução de quem quer ter um número para ligar sem compromisso.
- Não. Vim com um grupo de amigos. Juntamo-nos uma vez por mês. Fazemos uma almoçarada, bebemos umas imperiais, ficamos pela casa de um ou outro ou vimos à praia quando está bom tempo. Ao final do dia, quando as mães e os pais começam a dispersar com a criançada ainda dá tempo para uma partidinha de futebol de praia. Um gajo entretém-se.
Parecia honesto, mas o que eu queria saber era se tinha em casa a mulher, que ficava com os miúdos enquanto ele tinha um domingo de gajos.
- Mãe, tenho fome.
A mão molhada e gelada na minha coxa. Arrepiei-me.
- Diz, filho. - disse-lhe, não porque não tivesse ouvido à primeira, mas para comprar uns instantes para descortinar como ia rematar a conversa interrompida.
- Tenho fome. E frio.
- Está bem, vai chamar o teu irmão e vamos para a toalha.
- Ele não quer ir. Tens de ser tu a chamar.
-Tenho de ir eu. - disse ao olhar para o homem moreno, muito mais bem conservado do que eu. Cuidado. - Tenho de ir eu – repeti – deves saber como é.
Não respondeu.
Fui chamar o mais velho e arrastei-o para fora de água. Ele ainda lá estava, a ver cada passo.
Disse-lhe: gostei de te ver e o meu número continua o mesmo, a menos que tenhas apanhado, não perdeste o contacto.
Fui com os miúdos para a toalha. Embrulhei cada um na sua. Tremiam de frio. Tirei duas sandes e dois sumos da mala. Os sumos já não estavam tão gelados quando queriam. Sentei-me na berma, no tecido que sobrava. Deixei-me estar de costas para o lado em que ele subiria em direção à toalha. Assim calculei.
À noite, depois de deitar os miúdos, encostada à portada da varanda enquanto fumava um cigarro, ri-me sozinha. Seria bom se ele me ligasse.