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Exercício de escrita

Madalena - parte 7 (última parte)

25.07.21

Estávamos completamente embrenhados numa conversa sobre um amigo mútuo e as suas eternas desventuras amorosas, quando o Miguel disse qualquer coisa a que achei particular graça e me debrucei ligeiramente como reflexo de uma boa gargalhada, daquelas que parecem nascer no umbigo. O Miguel sempre teve a capacidade de me fazer rir para esquecer a maioria dos meus pequenos dilemas. Nesse momento lembrei-me que era isso que mais gostava em nós.

Foi ele que viu os miúdos atrás de mim, encantados ao ver os pais numa troca de palavras amena, como se aquela tivesse sido sempre a realidade, sem discussões ou interregnos de vida comum.

- O que é que estão aí a fazer especados vocês dois? – perguntou-lhes o Miguel, enquanto eu me voltava para os ver satisfeitos com aquele quadro.

Os miúdos correram para ele gritando “pai” e abraçaram-no. Senti um misto de ciúmes e inveja. Não conseguia despertar neles aquela adoração. Repreendi-me por me sentir amarga. Castiguei-me enquanto forçava um sorriso embevecido. Senti-me mesquinha. Desejei que saíssem depressa, para que pudesse ordenar pensamentos, conversar comigo.

Detestava estes meus acessos de auto depreciação.

Estranhando a presença do pai ali na cozinha e dando nota de que a Lídia não estava, os miúdos rapidamente perceberam que o pai e a namorada se tinham separado. Perguntaram por ela como quem pergunta por um vizinho sem importância e, assegurada a informação que esperavam ouvir, não mostraram qualquer lamento pela sua falta.

Seguiu-se a rebaldaria habitual. Pegaram nas malas, correram para a porta, tudo acompanhado de uma chinfrineira tal que não conseguimos trocar mais duas palavras ordenadas até que o Miguel estendeu a mão para abrir a porta.

- Obrigado pelo café. – disse, parecendo que tinha algo mais a acrescentar.

- Sem problema. Foi giro este bocadinho. Já não sabia do Gaspar há imenso tempo e é sempre interessante saber da vida do Gaspar.

- Verdade. – respondeu enquanto fazia um compasso irrequieto para abrir a porta – Nós vamos até à praia, os miúdos gostam e eu tenho como os entreter. E tu, já tens programa para hoje?

- Ui, um sem número de eventos sociais. Vou acabar o meu treino com aquela senhora que está ali em pausa no Youtube. Vou aspirar a casa e limpar a cozinha sem que apareça logo alguém com fome. Vou tomar um banho para tirar este cheiro nauseabundo de suor. Vou refastelar-me no sofá com uma maravilhosa taça de pipocas feitas com um fio insignificante de óleo, sem qualquer açúcar ou caramelo, polvilhadas com canela, tal como recomendou a nutricionista e vou ver romances repetidos e pedir para ser arrebatada por um ator inglês quando um dia for ao pão.

Riu-se.

- Pai, a mãe pode vir connosco à praia? – perguntou o mais velho, saltitando os olhitos pequenos entre mim e o pai.

O Miguel olhava para mim, com um sorriso antigo.

- Se a mãe quiser, parece-me uma excelente ideia.

Recusei sem grande veemência. Eles insistiram e eu que dizia que não quando a vontade me impelia para ir, acabei por aceder.

Tomei um duche rápido e procurei o fato de banho que me ficava melhor. De frente para o espelho experimentei múltiplas posições para ver como se notava menos o pedaço de gordura que persistia na minha barriga. Conseguia conter ligeiramente os abdominais para parecer mais lisa e calculei que, podendo estar deitada a maior parte do tempo, mal se iria notar. Passou-me por completo que o Miguel conhecia o meu corpo e que, no dia em que saiu de casa, eu estava mais desleixada do que agora. Mas ele tinha estado com outras mulheres e eu tinha estado sozinha a sonhar com contos de fadas com homens do passado ou ponderando – depois de alguns copos de vinho – seduzir o Sadik que era dono da loja de conveniência ao fundo da rua. Um estrangeiro cuja nacionalidade nunca consegui decifrar, alto e sorridente, que me fazia lembrar filmes eróticos e bebidas com frutas tropicais.

Apanhei o cabelo e levei o meu chapéu de palha para me dar um ar mais cuidado.

Nós conversávamos e os miúdos brincavam na areia, sempre atentos à nossa sintonia, com pequenos segredos entre si, aparentemente cuidando que eu e o pai tivéssemos tempo para estar na companhia um do outro.

O Miguel foi com eles à água. Nadaram, mergulharam, atirou-os para fazer bombas de água, encheu-se de areia e voltou ao mar.

Almoçámos no café da praia e não resisti quando me pediu que o deixasse pagar o almoço.

Bebemos uma bebida colorida com álcool a mais enquanto os miúdos devoravam os seus gelados.

Ao fim da tarde, cansados de mar, areia, sol e gargalhadas, entrámos no carro como uma família que não tinha estado separada por dois dias que fosse.

Senti-me capaz de seguir dali, daquele areal para a minha vida antes do divórcio, como se esse não tivesse passado de um mal-entendido.

Seguíamos pelo meu caminho favorito, em silêncio, satisfeitos com a presença uns dos outros, quando o Miguel interrompeu o meu estado despreocupado, de olhos semicerrados, mão de fora da janela a sentir a brisa do vento quente daquele fim de tarde de verão.

- Como é agora, deixamos-te em casa?

- Podíamos ir todos jantar lá a casa. A mãe faz uma pizza muita fixe, pai. – disse o mais pequeno.

- Fazes pizza caseira? – disse enquanto olhava divertido para mim.

Sorri e não lhe respondi.

Quando nos estávamos a aproximar do apartamento disse-lhe que me parecia boa ideia que subíssemos todos para jantar. Que podia fazer a pizza que os miúdos tinham sugerido. Que tinha tudo em casa para o fazer e que podia ser engraçado. Eles iam ficar satisfeitos.

Ele ajudou os miúdos com os banhos. Eu pus a mesa e tratei da pizza.

Jantámos sem distrações de tecnologia. Os miúdos contaram episódios de dias passados com o pai, fizeram pouco das minhas arrelias com situações insignificantes. Quando ficaram com sono o Miguel foi pô-los na cama. Leu-lhes uma história e veio ter comigo à cozinha. Eu estava a acabar de arrumar a loiça na máquina.

- Noto-te um pouco diferente. Estás mais leve.

- Estou a tentar. Coisas pequenas.

- Agora treinas.

- Agora treino. – confirmei a rir.

- Fazes uma boa pizza.

- Metade dos ingredientes são comprados. Não fiz a massa nem o molho.

- Ainda assim.

Ficámos uns instantes em silêncio.

- Estou a pensar fazer uma pós-graduação e desta vez levá-la mesmo a cabo. Depois tenho de falar contigo para me ajudares com os miúdos.

- Sabes que te ajudo. Fico muito contente em ouvir isso.

- Eu sei. – disse enquanto fechava a máquina da loiça e limpava as mãos ao pano de cozinha que reparei estar imundo.

Quando levantei o rosto o Miguel estava a centímetros de mim. Olhámos um para o outro como não havíamos feito desde que o nosso filho mais novo tinha nascido.

Ele beijou-me. Eu não resisti.

- Eu podia passar cá a noite. – disse-me ao ouvido.

O encanto daquele dia fez-me querer que tudo continuasse como se a nossa separação tivesse sido apenas uma alucinação. Mas eu sabia tão bem como ele que as coisas não podiam resultar assim. Eu tinha de me resolver antes de voltar à roda, investindo-me noutra pessoa, mesmo que não fosse alguém novo.

- Podes, mas vais ter de dormir no sofá. – disse-lhe.

- Tens a certeza?

- Tenho de aprender a viver comigo primeiro.

Fiquei certa de que voltaria costas, a realidade que conhecia e alimentava, aquela que eu me contava era a de que, se expusesse o que sou, ninguém ficava. A diferença é que desta vez estava disposta a arriscar ficar sozinha.

- Os lençóis ainda estão guardados no mesmo armário?

- Sim.

Madalena - parte 6

18.07.21

Entristecido e nitidamente receoso da minha reação contou-me que tinha decidido, em conjunto com os pais, que o melhor para a sua vida profissional era que fosse passar um ou dois anos a trabalhar no estrangeiro. O pai tinha alguns conhecimentos em Londres e ia ter acesso a um estágio remunerado. Era uma forma de construir currículo e de abrir horizontes. Os pais achavam – dizia ele – que ficar anos em Portugal à espera de uma boa oportunidade não seria o melhor investimento para ele. Era importante que o fizesse saído da faculdade, sem mulher, filhos e a hipoteca de uma casa para pagar. Era jovem e sem amarras.

Recordo-me de o ouvir sem dizer uma palavra, guardei para mim o quanto me magoava compreender que, ao contrário do que eu estava disposta a fazer, ele tinha prioridades mais importantes do que estarmos juntos. Um namoro à distância não me fazia sentido, pelo afastamento e pela possibilidade de conhecer outras pessoas, mas mais ainda porque isso faria das minhas inseguranças feridas abertas impossíveis de sarar enquanto nos mantivéssemos como um casal. Ele queria mais. Eu não estava disposta a arriscar. Propôs-me que nos visitássemos uma vez a cada três meses, tinha falado disso com os pais e eles ofereceram-se para ajudar pagando os bilhetes para que o filho estivesse feliz.

- Não. Tu precisas de abrir os teus horizontes e talvez esta seja uma boa oportunidade para eu também abrir os meus. Acho que deve acabar aqui. – disse-lhe, parecendo mais convicta do que estava. Nunca tinha falado comigo sobre a possibilidade de ir viver para fora do país e isso magoou-me. Mas, naquele momento eu não conseguia ver o que estava de errado com a forma como ele procedera, só via as minhas falhas, a mulher que não acreditava poder ser, o homem com mundo em que ele se transformaria e em como, a breve prazo, passaríamos a ser pessoas com histórias tão diferentes.

Despedimo-nos com um beijo no rosto. Um beijo doloroso. Amargo na garganta, onde fazia força para conter as emoções até que pudesse virar costas.

Quando me voltei não olhei para trás uma única vez. Perdi a força nos joelhos depois de virar a primeira esquina, tudo o que eu tinha planeado na minha cabeça tinha sido apagado em minutos.

Refizemos o caminho que percorrêramos vinte anos antes. Desta vez eu não tinha um nó na garganta, estava livre de arrependimentos e não lamentava o que quer que fosse.

Dissemos adeus mais uma vez com um beijo no rosto, uma festa no braço e um “vamo-nos vendo no Facebook”.

A mulher era uma excelente pessoa, uma esposa dedicada e uma mãe extremosa. Uma daquelas pessoas que se esforçam para fazer da vida dos outros um sítio melhor, contou, confirmando o que eu achara quando a conheci. Apesar disso o casamento tinha chegado ao fim. Não sentiam nada um pelo outro enquanto homem e mulher, mas não queriam sujeitar os filhos a uma separação, quinze dias na casa do pai e outros quinze na casa da mãe. Então tinham acordado que aceitariam que cada um tivesse uma vida fora do casamento. Sabia que a Carolina mantinha um relacionamento com um piloto da TAP, alguém que ela conhecera dos tempos em que trabalhava como assistente de bordo. Ele teve um caso fugaz com uma colega de trabalho e agora não tinha ninguém.

Toda a história me pareceu ao mesmo tempo absurda e enternecedora, que duas pessoas se dispusessem a colocar em suspenso a construção das suas vidas pelo bem dos filhos. Por momentos senti-me egoísta, porque não ter pensado mais nos meus filhos quando decidimos, eu e o Miguel, que os nossos caminhos seguiriam separados.

A vida fora de casa, em família, coincidia com aquilo que podíamos ver nas redes sociais: um casal que se mantinha apaixonado, dois filhos lindos, uma casa de sonho, férias de perder a cabeça e até um cão que parecia acabado de sair de uma revista. Os amigos não sabiam. A família não fazia ideia. Eram um casal modelo.

- Estás muito calada – disse-me quando se apercebeu que eu já não falava há mais de dez minutos, limitando-me a assentir com a cabeça. Estava a encaixar toda aquela informação, mas não tinha lugar nos armários do meu sistema racional.

- Estou a processar e a perguntar-me se este café acontece porque achas que eu posso ser uma segunda pessoa na tua vida.

- Ainda tenho sentimentos por ti. Descobri isso quando nos reencontrámos. Acho que é recíproco. Podíamos matar saudades. Tu também tens a tua vida, tens os teus filhos.

Era um homem perdido, preso a conveniências muitas e queria que eu participasse para lhe dar alguma cor e alegria, aquilo que não conseguia com tudo o que construiu de acordo com as regras do livro de costumes.

- Não é para mim. Se me conhecesses melhor, saberias disso. Tenho muitos defeitos, mas não sou mulher de andar escondida.

Abanou afirmativamente a cabeça enquanto sorria. Compreendia, tinha pena, mas era claro que compreendia.

Pediu mais uma cerveja. Um pedi mais um café.

Falámos dos nossos filhos. Trocámos peripécias. Fizemos um resumo rápido das nossas vidas e deixámos de fora todos os pormenores que se vão desvendando quando se constrói tempo lado a lado.

Fui buscar os miúdos à escola. Pediram-me para jogar Playstation. Deixei. Peguei no telemóvel e percorri novamente a conta de Facebook do Francisco. Ainda não estava crente de tudo o que ouvira. Só aparências. Pena, foi o único sentimento que me aflorou. Desta vez, apesar da perfeição das fotografias que constavam daquele algum, preferi as do meu, essas retratavam mesmo a minha vida. Com cessões, muitas.

No sábado levantei-me cedo. Preparei as mochilas dos miúdos e vesti a minha roupa de treino. O Miguel mandou-me uma mensagem a dizer que tinha tido um pequeno imprevisto com o carro e que por isso ia chegar um pouco mais tarde. Peguei no tablet dos miúdos e preparei o meu treino online. Tinha comprado halteres e um tapete de chão. Fazia vídeos do Youtube e sentia-me uma velha caduca capaz de cuspir o coração quando o treino ainda ia a meio. Não tinha roupas a combinar como as moças do Instagram, tinha os calções velhos do Miguel e uma t-shirt manchada de ameixa.

Avisei os miúdos do atraso do pai. Disse-lhes que ia estar na sala a fazer o meu exercício. Se precisassem de alguma coisa deveriam chamar por mim.

O Miguel chegou quarenta minutos depois da mensagem. Quando chegou o mais velho disse-me aflito:

- Já é o pai? Preciso mesmo de ir à casa de banho mãe. É urgente. Pede ao pai para esperar.

Tinham estado a jogar, sempre na ânsia de mais uma partida, então tinha-se aguentado até que eu o mandasse desligar. Agora não conseguia segurar mais.

Carreguei no botão do intercomunicador:

- Olá, tudo bem?

- Tudo. Eles podem descer. – por regra o Miguel não subia. Tocava à campainha e os miúdos desciam.

- O Tomás teve de ir de urgência à casa de banho. Querem vir cá acima? Bebem um café enquanto esperam um bocadinho. Ou querem esperar no carro?

Vi-o pelo intercomunicador, a olhar para a rua, a ponderar. Segundos depois respondeu:

- Subo.

Nem me apercebi da resposta no singular. Quando abri a porta espantei-me ao ver o Miguel sozinho. Convidei-o a entrar e fechei a porta.

- Então a…a…desculpa, nunca me lembro do nome.

- A Lídia. – disse sabendo que eu tinha aquele lapso de memória de propósito.

- Sim.

- Eu e a Lídia…não funcionou. Por isso, sou só eu.

Madalena - parte 5

11.07.21

Acordei mais cedo e fiz panquecas para os miúdos. Estranharam. Durante a semana o hábito era cingirmo-nos ao que fosse mais eficiente, pão torrado, iogurtes, fruta. Aquilo que podia ter em casa, que não fosse enchê-los de açúcar pela manhã. Mas estava para lá de animada, sentia-me como aquelas pessoas que partilham frases feitas. A princípio achei-me imbecil, naquela nuvem adolescente, mas deixei-me ir, há tanto tempo que não sentia os tais arrepios na espinha e uma vontade genuína de fazer alguma coisa com prazer. Estava demasiado presa a cumprir tarefas, a ser a chata que faz o que faz porque tem de ser assim, porque está num regulamento que ninguém encontra.

Os miúdos surpreenderam-se com a mesa posta. Pratos, talheres, sumo de laranja fresco e as panquecas acabadas de fazer. Entreolharam-se, mas não disseram nada. Devem ter concluído que o melhor era aproveitar a onda.

Pensei em pedir-lhes que comêssemos sem tecnologia à mesa, mas sabia que isso iria levantar insatisfações e que a minha boa disposição acabaria amarfanhada como um pedaço gasto de papel, pelo que me limitei a sorrir e a encher de mel as panquecas que comi acompanhadas de mirtilos. Até a comida parecia ter mais sabor.

Trocara mais meia dúzia de mensagens com o Francisco. O suficiente para sabermos que trabalhávamos relativamente perto um do outro e que seria fácil que, a meio da semana, ele aparecesse para bebermos um café. Seria uma hora de almoço mais longa, algo que facilmente se justificaria no trabalho. Dar-me-ia uma apitadela assim que surgisse uma aberta. Pus um lembrete no telemóvel para que logo no início da semana bloqueasse períodos longos de hora de almoço, queria estar disponível - e sem pressas -  quando ele me ligasse. Ocorreu-me que estaria a agir como uma mulher demasiado disponível, que, se calhar, o melhor era dizer-lhe que não ia dar no dia em que me contactasse, mesmo que desse, só mesmo para passar a ideia de que não estava ansiosa por voltar a vê-lo. Talvez fosse melhor passar a impressão que a sua presença me era indiferente e que a minha vida tinha outros compromissos muito mais relevantes. Não iria contornar os meus afazeres em torno da disponibilidade dele. O pensamento durou frações de segundo. Acabei por me borrifar para essa condição social, queria vê-lo e não ia estar a jogar a cartada da mulher difícil.

Deixei que os miúdos vestissem o que queriam. Normalmente fazia uma vistoria antes de saírem de casa, só mesmo para garantir que não levavam peúgas desirmanadas ou partes de cima que não combinavam com as partes de baixo. Nesse dia não sei sequer se levavam ténis do mesmo par. Precisava de tempo para estar em frente ao roupeiro e escolher a roupa que me assentava melhor. Precisava de tempo para me maquilhar, para estar embonecada. Imaginava-o boquiaberto ao ver-me entrar no café perto do trabalho, impressionado com o requinte com que ia para mais um simples dia no escritório. Olhei-lhe de roupa interior ao espelho, estupidamente achei que as corridas já estavam a fazer efeito.

Passei uma boa parte do dia a consultar o telemóvel, tantas que a Laura, sempre eficiente no acompanhamento da vida alheia, percebeu rapidamente que eu estava à espera de uma mensagem de alguém. Fez as suas gracinhas, que de início ignorei e que foram gradualmente sabendo a algo mais amargo com o passar das horas.

Fui esmorecendo ao longo do dia. Infantilmente acreditei que ele estaria tão eufórico por me reencontrar quanto eu. Discuti sozinha comigo no carro. Como uma mulher a perder o tino. Cheguei a casa com os pés doridos. Custava-me mais tolerar aquela dor porque não me doía só onde os sapatos apertavam, doía onde não se via, no orgulho que ficara em ferida.

Na segunda não me disse nada.

Na terça também não.

Na quarta senti-me tentada a mandar-lhe uma mensagem, mas contive-me.

Na quinta arranjei-me na mesma, mas prometi-me que, se não dissesse nada, no dia seguinte me ia marimbar para aqueles cuidados todos.

Ao fim do dia sentei-me na cama, ao som da gritaria que vinha do quarto dos miúdos - era sempre o mesmo festival antes de jantar –, tinha subido as escadas descalça com os sapatos na mão, atirei-os para o canto do quarto e agora estava ali, com pena da mulher refletida no espelho. Patética. Dependente. Incapaz de fazer alguma coisa por si sem que a vontade de agradar a outro a impulsionasse. Era por isso que nunca seguia em frente. Criava-me diferente. Caminhava em direção ao que queriam de mim. Queria ser a pessoa que os outros gostavam. Depois cansava-me, porque não conseguia ser o que não sou por tanto tempo. Era nessa altura que a aversão começava, que me rebelava contra quem dizia amar-me, insurgia-me contra as expectativas que eu própria lhes tinha criado. Não me deixava ver porque não queria ser vista, as pessoas que os outros queriam que eu fosse pareciam-me sempre melhores do que aquilo que eu tinha para dar.

Vesti umas roupas velhas e fiz o jantar. Nesse dia, sem fome, enquanto brincava com a comida no prato, entretive-me a ouvir a conversa dos miúdos. Acho que não o fazia com tanta nitidez há muito tempo.

Os miúdos deitaram-se eu, em vez de me encostar à janela com um cigarro na mão, mandei uma mensagem à minha irmã. Perguntei-lhe se lhe podia ligar. Lamentei a hora.

Falámos quase até à meia noite. Ou melhor, eu falei, ela escutou. No fim, sem nunca me pressionar para que desligássemos o telefone, disse-me, sempre sábia e paciente:

- Primeiro tens de saber viver contigo, até lá, será sempre difícil, para ti e para quem quer que seja.

Na sexta, como seria de esperar no mais banal dos lugares-comuns, logo no dia em que fui trabalhar de calças de ganga e cara lavada, recebi uma mensagem. Perguntava-me se conseguiria sair um bocado mais cedo do trabalho, assim teríamos mais tempo para conversar, sem a pressão de regressar para as reuniões e afazeres dos nossos empregos.

Inventei uma dor de cabeça forte e saí antes das quatro.

Por momentos esqueci-me da noite mal dormida. Das reflexões maduras que se apoderaram de mim. Da conversa que tivera com a minha irmã. De repente, voltei ao modo adolescente. Imaginei que acabaríamos nos braços um do outro. Pensei em desculpas verosímeis para ligar ao Miguel e pedir-lhe que ficasse com os miúdos só naquela noite. Assim podíamos ir para minha casa. Consegui ver-me sentada na cama, o corpo coberto apenas pelo lençol, a dizer-lhe que compreendia que tivesse de ir embora. Era complicado.

Combinámos encontrar-nos na Brasileira do Chiado. Completamente fora de mão, mas com uma razão que julguei compreender. Tinha sido ali que nos tínhamos despedido um do outro, fazia quase vinte anos.

Quando o vi sentado numa mesa que estava no preciso sítio onde nos havíamos deixado, tive a sensação de que alguém teria carregado no botão play e o nosso filme continuaria a partir dali.

Levantou-se para me cumprimentar. Dois beijos desajeitados no rosto. Estávamos ambos claramente constrangidos. Parecíamos aquilo que podia apenas imaginar ser duas pessoas que se conheceram através de um site de encontros.

Entabulámos uma conversa de circunstância que serviu apenas para desanuviar. Falámos do trânsito para chegar ali, de como o Lisboa estava sempre carregada de turistas, do preço do café da última vez que lá fui, de como detestava ter de deixar o carro no menos quatro do parque, do preço de assalto por menos de uma hora de estacionamento apertado.

Depois de cumprida a lista de assuntos de supermercado, chegou um silêncio que tinha de ser preenchido. Foi ele que o quebrou:

- Talvez seja importante dizer-te que a Carolina, a minha mulher, sabe que vim beber este café contigo. Aliás, foi ela que insistiu para que nos reencontrássemos e conversássemos um pouco.

Fiquei sem palavras.

Madalena - parte 4

04.07.21

Os miúdos chegaram do pai no final da tarde de domingo. Seria de esperar que estivessem cansados e satisfeitos depois de um dia de praia, mas ao fim de meia hora já andavam em correrias pela casa. Umas vezes cúmplices, outras inimigos.

Lembrei-me de como era com a minha irmã. Ora unha e carne. Ora gato e rato. Ocorreu-me que a maturidade faria o seu trabalho e que, um dia, quando fossem mais velhos, haviam de ser amigos inseparáveis.

Todos os fins de semana que estavam com o pai, vivia a mesma disparidade de sentimentos. Primeiro desejosa de estar sozinha. Farta das tricas e dos ralhetes, queria a casa só para mim, aproveitar o silêncio. Depois a ausência de som e de pessoas pequenas para gerir tornava-se grande demais e eu começava a sentir falta deles. Uma saudade injustificada e incoerente dado o meu alívio por vê-los ir na sexta.

Quando entravam em casa atiravam os sapatos, deixavam os casacos mal pendurados no bengaleiro. Os gritos – umas vezes amigáveis, outros não - e as desavenças ocupavam o lugar da paz que me obrigara a aceitar como benefício daquele tempo só para mim. Nessa altura olhava para eles, pensava que raio me tinha passado pela cabeça para ter dois filhos. Logo dois, como se um não chegasse. E lá me lembrava que o primeiro chegou por minha insistência e o segundo por descuido. Ambos uma lufada de ar fresco num casamento que ambos sabíamos não ser até à velhice. Assim concluímos no dia em que percebemos que seriamos mais felizes sem sermos uma pedra no sapato um do outro.

O Miguel era um homem fantástico. Bom pai, boa pessoa, um marido dedicado. Um homem atraente que correspondia a tudo o que eu poderia desejar. Mas tinha as expectativas dele em relação a mim e eu não estava disponível para ir ao encontro delas.

Invejava-lhe o à vontade, a capacidade de ter assunto para tudo e para todos, mas acima de tudo a tenacidade e disciplina para ir atrás do que queria, de trabalhar afincadamente para ele e para a vida dele. Era por isso que vivia muito mais confortável e que eu tive de me adaptar financeiramente à nossa separação.

Eu nunca conseguia dar continuidade aos meus objetivos. Propunha metas. No início do ano, no meu aniversário, no princípio de cada mês. Tudo para que conseguisse ir negociando comigo um amanhã que eu sabia que não iria chegar. Iria começar um desporto. Iria ler mais. Iria começar a alimentar-me melhor. Iria fazer uma pós-graduação em algo que verdadeiramente gostasse para que pudesse investir numa mudança de carreira. Queria ir atrás daquele mantra de que quem trabalha por gosto não trabalha um único dia na vida. Mas a minha cabeça não conseguia acompanhar a disciplina que tudo isso requeria. Ainda me inscrevi numa pós-graduação. Só seis meses, quatro dias por semana depois do trabalho. O Miguel ofereceu-se para cuidar dos miúdos, andava mais empolgado do que eu, queria genuinamente ver-me satisfeita. Mas ao fim de pouco tempo eu já estava a dizer mal da minha vida, saturada, impaciente por achar que iria ter muitíssimo trabalho para nada, que afinal de contas o meu emprego se calhar não era assim tão mau e que tudo poderia melhorar se eu me esforçasse por me interessar mais pelo que lá fazia. Recordo-me de o ver encostado à bancada da cozinha, as mãos pousadas na pedra mármore, a segurar o pano sujo numa delas, tinha-se esquecido da torneira ligada e dizia, num suspiro: tu é que sabes.

Deixei a pós-graduação. Argumentei que para além de tudo me sentia má mãe, que o timing não era o certo, que não suportava a ideia de passar seis meses em que quase nunca punha os miúdos na cama.

Eu sabia que era mentira. Ele também. Eu tratava dos miúdos subjugada a uma obrigação que me tinha imposto. Não era uma coisa prazerosa. Queixava-me e desejava que os miúdos crescessem para que não tivesse de o fazer.

Ambos sabíamos que era a minha persistente mediocridade. A dúvida constante do que queria para mim. As minhas inseguranças. Era mais fácil entregar-me à vida comezinha do dia a dia e queixar-me de que as coisas não ganhavam rumo. Sabíamos disso tão bem quanto sabíamos que lhe invejava a forma de estar. Que desgostava dele, cada vez um pouco mais, por ser sempre melhor do que eu.

Foi a promoção dele que trouxe o peso final. Não me sentia capaz de o apoiar. Embirrava com as horas que fazia a mais. Desconfiava que tinha outra.

Separámo-nos amistosamente sete meses depois de o Miguel ter passado a diretor da empresa onde ainda hoje trabalha.

Entre as discussões, as trapaças dos miúdos e as tarefas para organizar a semana para todos, o tempo passou a voar e nem dei conta do final do dia a chegar. Foi quando apaguei as luzes do quarto dos miúdos e fui tomar um banho que voltei a lembrar-me dessa tarde.

A mulher era linda, exatamente o tipo que eu esperava que ele encontrasse. Parecia-me equilibrada, daquelas pessoas independentes que não pesam a quem as acompanha, com uma noção muito clara do que são, sempre sorridentes e bem resolvidas. Das que não têm medo do parto porque é uma coisa natural, das que recuperam em poucos meses porque não podem deixar cair a auto estima, das que não deixam o romance esvair porque a vida íntima do casal é muito importante e é fundamental que ele não se sinta ostracizado naquela relação mãe-filhos. Das que acham normal que ele vá jogar à bola com os amigos e que passam tardes às compras com as amigas que lhe dizem que tudo lhes cai bem e é a cara delas.

Aposto que nunca andou por casa despenteada com uma t-shirt cheia de marcas de leite. Aposto que têm empregada e que não receia contratar uma babysitter para ter uma noite romântica. Aposto que tem uma carreira e não um emprego que cumpre todos os dias para pagar as contas.

Perdi-me na comparação entre mim e aquela mulher que vi por menos de cinco minutos. Pensei: era evidente que nunca ficaríamos juntos, era uma mulher destas que sempre quiseste.

Saí da banheira e parei em frente ao espelho. Estava nua e via o meu corpo marcado pela falta de cuidados, a idade, as gravidezes. Um corpo que só poderia ser bonito se vestido com roupas bem escolhidas que lhe escondessem todas as falhas.

Fiquei certa de que era melhor assim, jamais me conseguiria despir à frente dele.

Procurei a camisa de noite velha e custei a encontrá-la. Fui dar com a cesta de roupa cheia. As minhas duas camisas de noite estavam por lavar e já cheiravam mal por estarem em contacto com as peúgas dos miúdos. Fui buscar uma t-shirt e uns calções velhos que o Miguel deixara lá por casa.

Peguei no livro que a minha irmã me tinha emprestado. Ainda não tinha lido uma página, ia começar. Antes de pousar o telemóvel na mesa de cabeceira aproveitei para ligar o despertador e foi aí que vi a notificação. Tinha um pedido de amizade do Francisco.

Esqueci-me completamente do livro. Peguei no maço de tabaco escondido e acendi um cigarro. Tinha de ponderar. Devia ou não aceitar.

O pedido era dele, não meu. Tinha sido ele a procurar-me e de qualquer forma não havia mal em ficar amiga de uma pessoa de quem eu gostara tanto, ainda para mais porque as amizades digitais já se sabem como são, às vezes as pessoas mal se cumprimentam quando se encontram.

Aceitei.

Vi o perfil de ponta a ponta. As fotografias no golf, as maratonas, as viagens com a família.

Já estava descontraída demais e acabei por pôr um gosto numa fotografia com mais de quatro anos, denotando que estava a bisbilhotar.

Depois disso recebi uma mensagem: ainda acordada a esta hora? Se calhar devias descansar.

Respondi: insónias ocasionais.

Nova mensagem: então estás suficientemente acordada para aceitar um convite para bebermos café? Podemos pôr 25% da conversa em dia (smile).

Não respondi logo. Imaginei se seria capaz de ser amiga de alguém que tinha amado de forma tão visceral. Depois pensei, imbecilmente, se seria capaz de me envolver com um homem casado.

Respondi: parece-me uma ótima ideia. Quando queres combinar?