Madalena - parte 7 (última parte)
Estávamos completamente embrenhados numa conversa sobre um amigo mútuo e as suas eternas desventuras amorosas, quando o Miguel disse qualquer coisa a que achei particular graça e me debrucei ligeiramente como reflexo de uma boa gargalhada, daquelas que parecem nascer no umbigo. O Miguel sempre teve a capacidade de me fazer rir para esquecer a maioria dos meus pequenos dilemas. Nesse momento lembrei-me que era isso que mais gostava em nós.
Foi ele que viu os miúdos atrás de mim, encantados ao ver os pais numa troca de palavras amena, como se aquela tivesse sido sempre a realidade, sem discussões ou interregnos de vida comum.
- O que é que estão aí a fazer especados vocês dois? – perguntou-lhes o Miguel, enquanto eu me voltava para os ver satisfeitos com aquele quadro.
Os miúdos correram para ele gritando “pai” e abraçaram-no. Senti um misto de ciúmes e inveja. Não conseguia despertar neles aquela adoração. Repreendi-me por me sentir amarga. Castiguei-me enquanto forçava um sorriso embevecido. Senti-me mesquinha. Desejei que saíssem depressa, para que pudesse ordenar pensamentos, conversar comigo.
Detestava estes meus acessos de auto depreciação.
Estranhando a presença do pai ali na cozinha e dando nota de que a Lídia não estava, os miúdos rapidamente perceberam que o pai e a namorada se tinham separado. Perguntaram por ela como quem pergunta por um vizinho sem importância e, assegurada a informação que esperavam ouvir, não mostraram qualquer lamento pela sua falta.
Seguiu-se a rebaldaria habitual. Pegaram nas malas, correram para a porta, tudo acompanhado de uma chinfrineira tal que não conseguimos trocar mais duas palavras ordenadas até que o Miguel estendeu a mão para abrir a porta.
- Obrigado pelo café. – disse, parecendo que tinha algo mais a acrescentar.
- Sem problema. Foi giro este bocadinho. Já não sabia do Gaspar há imenso tempo e é sempre interessante saber da vida do Gaspar.
- Verdade. – respondeu enquanto fazia um compasso irrequieto para abrir a porta – Nós vamos até à praia, os miúdos gostam e eu tenho como os entreter. E tu, já tens programa para hoje?
- Ui, um sem número de eventos sociais. Vou acabar o meu treino com aquela senhora que está ali em pausa no Youtube. Vou aspirar a casa e limpar a cozinha sem que apareça logo alguém com fome. Vou tomar um banho para tirar este cheiro nauseabundo de suor. Vou refastelar-me no sofá com uma maravilhosa taça de pipocas feitas com um fio insignificante de óleo, sem qualquer açúcar ou caramelo, polvilhadas com canela, tal como recomendou a nutricionista e vou ver romances repetidos e pedir para ser arrebatada por um ator inglês quando um dia for ao pão.
Riu-se.
- Pai, a mãe pode vir connosco à praia? – perguntou o mais velho, saltitando os olhitos pequenos entre mim e o pai.
O Miguel olhava para mim, com um sorriso antigo.
- Se a mãe quiser, parece-me uma excelente ideia.
Recusei sem grande veemência. Eles insistiram e eu que dizia que não quando a vontade me impelia para ir, acabei por aceder.
Tomei um duche rápido e procurei o fato de banho que me ficava melhor. De frente para o espelho experimentei múltiplas posições para ver como se notava menos o pedaço de gordura que persistia na minha barriga. Conseguia conter ligeiramente os abdominais para parecer mais lisa e calculei que, podendo estar deitada a maior parte do tempo, mal se iria notar. Passou-me por completo que o Miguel conhecia o meu corpo e que, no dia em que saiu de casa, eu estava mais desleixada do que agora. Mas ele tinha estado com outras mulheres e eu tinha estado sozinha a sonhar com contos de fadas com homens do passado ou ponderando – depois de alguns copos de vinho – seduzir o Sadik que era dono da loja de conveniência ao fundo da rua. Um estrangeiro cuja nacionalidade nunca consegui decifrar, alto e sorridente, que me fazia lembrar filmes eróticos e bebidas com frutas tropicais.
Apanhei o cabelo e levei o meu chapéu de palha para me dar um ar mais cuidado.
Nós conversávamos e os miúdos brincavam na areia, sempre atentos à nossa sintonia, com pequenos segredos entre si, aparentemente cuidando que eu e o pai tivéssemos tempo para estar na companhia um do outro.
O Miguel foi com eles à água. Nadaram, mergulharam, atirou-os para fazer bombas de água, encheu-se de areia e voltou ao mar.
Almoçámos no café da praia e não resisti quando me pediu que o deixasse pagar o almoço.
Bebemos uma bebida colorida com álcool a mais enquanto os miúdos devoravam os seus gelados.
Ao fim da tarde, cansados de mar, areia, sol e gargalhadas, entrámos no carro como uma família que não tinha estado separada por dois dias que fosse.
Senti-me capaz de seguir dali, daquele areal para a minha vida antes do divórcio, como se esse não tivesse passado de um mal-entendido.
Seguíamos pelo meu caminho favorito, em silêncio, satisfeitos com a presença uns dos outros, quando o Miguel interrompeu o meu estado despreocupado, de olhos semicerrados, mão de fora da janela a sentir a brisa do vento quente daquele fim de tarde de verão.
- Como é agora, deixamos-te em casa?
- Podíamos ir todos jantar lá a casa. A mãe faz uma pizza muita fixe, pai. – disse o mais pequeno.
- Fazes pizza caseira? – disse enquanto olhava divertido para mim.
Sorri e não lhe respondi.
Quando nos estávamos a aproximar do apartamento disse-lhe que me parecia boa ideia que subíssemos todos para jantar. Que podia fazer a pizza que os miúdos tinham sugerido. Que tinha tudo em casa para o fazer e que podia ser engraçado. Eles iam ficar satisfeitos.
Ele ajudou os miúdos com os banhos. Eu pus a mesa e tratei da pizza.
Jantámos sem distrações de tecnologia. Os miúdos contaram episódios de dias passados com o pai, fizeram pouco das minhas arrelias com situações insignificantes. Quando ficaram com sono o Miguel foi pô-los na cama. Leu-lhes uma história e veio ter comigo à cozinha. Eu estava a acabar de arrumar a loiça na máquina.
- Noto-te um pouco diferente. Estás mais leve.
- Estou a tentar. Coisas pequenas.
- Agora treinas.
- Agora treino. – confirmei a rir.
- Fazes uma boa pizza.
- Metade dos ingredientes são comprados. Não fiz a massa nem o molho.
- Ainda assim.
Ficámos uns instantes em silêncio.
- Estou a pensar fazer uma pós-graduação e desta vez levá-la mesmo a cabo. Depois tenho de falar contigo para me ajudares com os miúdos.
- Sabes que te ajudo. Fico muito contente em ouvir isso.
- Eu sei. – disse enquanto fechava a máquina da loiça e limpava as mãos ao pano de cozinha que reparei estar imundo.
Quando levantei o rosto o Miguel estava a centímetros de mim. Olhámos um para o outro como não havíamos feito desde que o nosso filho mais novo tinha nascido.
Ele beijou-me. Eu não resisti.
- Eu podia passar cá a noite. – disse-me ao ouvido.
O encanto daquele dia fez-me querer que tudo continuasse como se a nossa separação tivesse sido apenas uma alucinação. Mas eu sabia tão bem como ele que as coisas não podiam resultar assim. Eu tinha de me resolver antes de voltar à roda, investindo-me noutra pessoa, mesmo que não fosse alguém novo.
- Podes, mas vais ter de dormir no sofá. – disse-lhe.
- Tens a certeza?
- Tenho de aprender a viver comigo primeiro.
Fiquei certa de que voltaria costas, a realidade que conhecia e alimentava, aquela que eu me contava era a de que, se expusesse o que sou, ninguém ficava. A diferença é que desta vez estava disposta a arriscar ficar sozinha.
- Os lençóis ainda estão guardados no mesmo armário?
- Sim.