Diana não disse à mãe que ...
...uma das miúdas do seu grupo de amigas lhe disse achas que temos mel na cona?, quando se afastaram dela e Diana as seguiu. Não disse que depois de lhe sair da boca um ah?, que lhe parecia agora angustiantemente estúpido, de tal modo que sentia a pele arrepanhar por todo o corpo só de reviver o momento. Não disse que a Andreia, sempre tão amável, uma das miúdas de quem mais gostava, se tinha voltado para trás e dito: sim, mel na cona. Só podemos ter mel na cona para andares atrás de nós como uma mosca atrás de merda. Também não disse que a Isabel, sua amiga desde a primária, tinha seguido com o grupo deixando-a sozinha, de mochila às costas, de cara à banda, sem perceber porque raio aquele conjunto de raparigas que considerava suas amigas a tratavam agora mal. Em vez disso perguntou à mãe como tinha passado o dia, se tinha conseguido descansar. Deu-lhe o braço, acompanhou-a e cedeu-lhe o ombro direito, para que fosse, em compasso vagaroso, do quarto até à sala, onde iriam comer a sopa que Diana ia aquecer em lume brando, no tacho pequeno vermelho que a mãe tinha comprado para o enxoval dela.
Comprei isso para ti, para o dia em que tenhas a tua casa, não me parece justo que o coloquemos a uso, dissera-lhe a mãe no dia em que a panela que colocavam a uso se estragou e o dinheiro não sobrava para comprar uma nova. Depois compras outra, quando estiveres melhor e conseguires trabalhar, argumentou com a mãe, até compras uma melhor, vais ver.
A ideia de voltar a sentir-se útil, de cuidar da filha em ver de se sentir um peso para uma miúda de doze anos fez Madalena sorrir.
- Eu é que devia perguntar-te como é que foi o dia, ainda sou a mãe aqui, tá bem senhora enfermeira? - Madalena gracejou como sempre. Riram-se e Diana esqueceu por momentos o episódio da manhã.
Serviu a sopa quente à mãe, colocou o seu prato ao lado, ligou a televisão e sentou-se. Fingia estar a prestar atenção ao programa da manhã, que estava quase a terminar, enquanto olhava de soslaio para o prato da mãe. Era preciso perceber se comia ou se fazia de conta que metia a comida à boca e se entretinha a brincar com as massas. Era assim que Diana sabia se a mãe estava pior ou não. Quando comia com satisfação era porque a manhã tinha sido mais calma, tinha tido menos náuseas e por isso sentia-se com apetite e capaz de comer. Mas quando assim não era, só o cheiro da comida a deixava agoniada.
Viu que estavam num dia bom e sentiu-se aliviada.
Enquanto comia a sopa e procurava distrair-se das notícias de abertura do telejornal ocorreram-lhe outros episódios em que as supostas amigas a tinham tratado mal. Lembrou-se do dia em que a convenceram a ir por um caminho diferente para a paragem de autocarro e, quando viu que este passava acelerado em direção à paragem, desatou a correr. Elas gritavam corre burrinha, corre, enquanto se riam e gozavam com a aflição de Diana para apanhar o transporte, com o barulho da mala a bater-lhe nas costas. Lembrou-se de que lhe atiravam restos de pipocas para o cabelo encaracolado, e que por duas vezes uma delas tinha dito à turma toda que as pintas brancas nos cabelos de Diana eram lêndeas, o melhor é afastarem-se ali da piolhosa, alertara rindo-se maliciosa.
Sentiu-se idiota por todas as vezes que foi convidada pela Sara para irem ao bar, para conversarem de coisas engraçadas. Não compreendia porque raio se sentia atraída para estar perto daquele grupo que a tratava como se não fizesse parte, quando tinha quem a esperava e a recebia sempre de braços abertos. Não percebo porque andas sempre com elas, nós somos amigas, tinha-lhe dito Sara. Mas Diana queria fazer parte de qualquer coisa que lhe parecesse mais cor de rosa, mais bem-sucedida. E aquele grupo, de uma forma estranha, parecia-lhe ter isso.
Depois de recolher os pratos, de os lavar e deixar a secar no escorredor, Diana arranjou a mala com os livros e os cadernos das disciplinas da tarde, apoiou a mãe para que conseguisse regressar ao quarto e ajudou-a a deitar-se. Quando lhe deu um beijo na testa, já Margarida começava a fechar os olhos para descansar. A medicação que tomava depois de almoço era demasiado forte. Diana tirou-lhe o turbante para que não sentisse demasiado calor quando descansava, pegou na mochila e saiu.
No autocarro encostou a cabeça ao vidro. Na primeira paragem em que o autocarro parou para deixar entra uma senhora idosa, Diana viu uma família, pai e mãe com a filha que seria pouco mais nova que Diana. A pequena estava a entrar no carro enquanto o pai segurava na porta e a fechava atrás dela. A mãe sentava-se no lugar do pendura e pareceu a Diana que mantinham uma conversa animada. Pela mochila, que viu o pai guardar na bagageira, estariam a caminho de a levar à escola. Não sentiu um vazio, nem mesmo uma grande tristeza, nunca tinha conhecido a vida daquela maneira. Não podia ter saudades do que nunca tinha tido. Pensou que um dia gostaria de ser como aquela mãe, que espera que o pai feche a porta à filha para irem a algum lado.
Quando chegou à escola o grupo estava no banco perto da entrada. Passou por elas e seguiu para perto da sala. Não sabia se conseguiria manter aquela firmeza, se fosse honesta consigo tinha de admitir que o havia feito porque elas lhe tinham dito que não a queriam perto, mas e se voltassem com falinhas mansas?
Conseguia ouvi-las ao longe a rir, com gargalhadas forçadas, daquelas que servem para magoar, daquelas que servem para dizer: estamos a rir-nos de ti, ó pateta!
- O stôr de português hoje não vem, a auxiliar já veio avisar. Queres ir ao bar? – Sara tinha aparecido ao lado de Diana, polegares presos nas alças na mochila que usava sempre com ambas as tiras enfiadas nos braços, não como as miúdas fixes que usavam só uma alça apesar de ser incómodo.
Diana assentiu.