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Exercício de escrita

A vida e os apontamentos sobre ela

03.10.22

A minha mãe era costureira. Não por vocação ou por opção, mas porque naquele tempo as mulheres faziam a quarta classe e iam para a costura. É-me impossível recordar a minha mãe sem a ver de bata, sentada atrás da sua Singer, no canto da nossa marquise, de pés no pedal e mãos mestras no tecido. O orgulho de nunca ter costurado um dedo por acidente e por conseguir a simetria perfeita dos padrões. Ao canto, perto da janela, preso com um laçarote, estava o rádio que tocava todo o dia. De manhã ouvia o António Sala e sorria como uma menina quando, a meio da tarde, a casa mais sossegada, alguém anunciava que a seguir havia de tocar Marco Paulo.

Quando lhe sobravam restos de tecido dos trabalhos, arranjava tempo para, entre costura, provas e as tarefas domésticas, costurar um vestido para as minhas bonecas. Outras vezes chamava por mim, porque uma cliente não queria um metro de tecido e daquele pedaço sairia uma saia, um vestido, um macacão janota para eu vestir no dia seguinte quando fosse para a escola. Roupa à pressão, era como lhe chamávamos.

Naquele tempo o amor não era dito em palavras, transparecia escondido nestes pequenos gestos de quem, entre o peso das responsabilidades, olhava para a filha pequena e fazia das tripas coração para lhe dar um agrado.

As mãos que tão bem construíam a roupa não tinham o mesmo toque para a culinária, por isso repetia os mesmos pratos, aqueles que havia aprendido a fazer ao jeito que se apreciava lá em casa. O caldo verde muito aguado, o coelho frito, o arroz de salsicha, a aletria, o arroz doce, o pão-de-ló.

Às vezes acordava com essa vontade, de fazer um bolinho para agradar aos filhos que, contentes e à vez, iam lamber a taça da massa. Aquela mistela por cozinhar que, se fechar os olhos, tem o melhor da minha infância a cada lambidela.

Hoje fizemos um bolo. Preparei os ingredientes. Havia farinha por todo o lado. No fim, depois de vertida a massa para a forma, o Ricardo pegou na espátula e esteve a rapar a taça. Dizia, satisfeito: mãe, não sei como estará o bolo, mas a massa pelo menos está que é uma maravilha.

Eu lembrei-me da minha mãe, e em vez de chorar de saudades, vim escrever isto.

 

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O amola-tesouras

24.05.22

Ouço lá fora a melodia inconfundível do amola-tesouras. Coisas de morar na aldeia. Volto imediatamente aos meus sete, oito anos, é verão, estou na marquise lá de casa, os antebraços debruçados sobre os caixilhos das janelas cinzentas que deixarão a minha pele cheia de vincos. Tenho o queixo pousado nas mãos e vejo carros a passar, as vizinhas na azáfama das compras, atarefadas para fazer o almoço com as mercearias que compraram no mercado da vila. Nos sacos saem pelas asas as folhas dos molhos de grelos e das alfaces. Não tenho memória de alho francês ou courgette. Devem ser legumes mais modernos.

O amola vinha numa bicicleta pasteleira muito velha. Tinha sempre a barba grande. Tocava a melodia ininterruptamente. Entrava na nossa praceta, parava no meio da estrada e tocava enquanto esperava que as senhoras descessem com as tesouras para amolar. Naquele tempo, a meio da manhã ou da tarde, havia sempre gente em casa. Não havia praceta dormitório. A minha mãe deitava mão às tesouras de costura e fazia contas à carteira. Levava as que estavam piores, as que já mordiam os tecidos.

Faz sinal ao senhor que espere que eu já estou a descer, dizia-me a minha mãe.

Mas como é que faço sinal ao senhor se ele não olha para aqui?

E lá vinha a minha mãe por trás de mim. Quando ela aparecia ele olhava para a nossa janela e acenava com a cabeça que havia de esperar. Ela descia, lesta, não se fazia esperar quem trabalha. E eu ficava em casa, da janela, a ver como aquilo se dava. Como é que o posto de trabalho de alguém era numa bicicleta.

Nesse tempo os dias eram iguais uns atrás dos outros e os acontecimentos eram se fraca relevância. Por isso, quando aparecia o amola-tesouras com a sua musiqueta era um dia que acontecia alguma coisa. As mães não tinham tablets nem telemóveis para entreter os mais novos e debruçavam-se no maravilhoso método do desemerda-te com a tua imaginação e não partas nada senão levas nas ventas.

E nós inventávamos e às vezes levávamos nas ventas.

Entretanto o amolador já foi à vida dele e eu tenho de me fazer à minha, mas estava bem agora era na varanda lá de casa, a apanhar sol nas trombas sem ter preocupação nenhuma.