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Exercício de escrita

#5

Microconto

15.01.22

Quer dormir. Não consegue. A noite parece-lhe infinita. O colchão requintado não ajuda. As palavras sussurradas, debitadas por uma aplicação, de nada servem. É a cabeça que não se deixa apaziguar. Diz para consigo, num misto de negociação e ameaça: dorme desgraçada, amanhã tens de te levantar cedo e depois não tens miolos para nada. Espreita o relógio. Tarde para o sono recomendado. Cedo para acabar com o suplício de espera. Os sons da casa são mais altos assim. Conhece-os todos. Cada ranger de móvel. Mais duas voltas para a direita. Três para a esquerda. Basta.

Senta-se na cama. A mente parece-lhe oca. Diz até mais logo à cama, voltarão a conversar, é certo.

 

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#4

Microconto

08.01.22

Saiu do trabalho à hora certa. Mesmo a tempo de apanhar o metro seguido do comboio. Mesmo a tempo de chegar à porta da escola antes do limite do tempo. Ia abraçar o filho, iam conversar no carro, ele ia dizer-lhe que tinha brincado muito no recreio, ela ia contar-lhe sobre a senhora na estação que levava um cão pequenino na mala.

Chegou ao pé dela cabisbaixo. Não lhe quis dar um abraço. Entrou no carro e não disse palavra. A meio do caminho ela perguntou-lhe se estava triste. Ele respondeu: porque é que vieste mais cedo? Estava a terminar uma brincadeira e tive de sair a meio por tua causa.

As mães estragam tudo.

 

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#3

Três dias, três pequenos contos

16.12.21

Sabia das crianças de lá de onde a mãe trabalhava. Um lugar que lhe parecia encantado onde se tomava conta de quem não tinha ninguém. Sabia que o natal não se passava entre os desaguisados dos tios, as travessas de bacalhau, os sonhos e as fatias douradas. O natal, nesse sítio onde se distribuía amor em porções iguais nas horas ditadas pelo ponto, era passado no amparo dos desamparados. Ouviu a mãe falar da festa singela que iam fazer com a simpatia de quem ajudava. Entrou no quatro e fechou as portas. Remexeu caixas e armários. A mãe de mãos à cabeça. Em poucas horas uma dúzia de embrulhos regados a fita cola. Levas amanhã, mãe. Dizes que foi um pai natal pequenino, sem barbas e sem trenó.

#2

Três dias, três pequenos contos

14.12.21

És um nojo. És uma merda. Peneirenta. Arrogante. As manhãs começavam assim desde que o programa foi para o ar. O azedume de rostos que não conhecia. As palavras amáveis e de força não pesavam da mesma forma, pareciam simpatia, uma espécie de caridade. Ligou para a mãe à procura daquele amor que se diz incondicional. De que é que estavas à espera, tu é que te meteste a jeito com essa mania de aparecer. A voz da mãe a desvanecer. Tens razão, disse. Um beijo. Outro para ti. O corpo dormente, a cabeça baixa. Parecia verdade, era ela a culpada. A mania das grandezas, a incapacidade de viver feliz nas sombras. Fechou os estores e voltou para a cama a rezar baixinho, pedindo para acordar outra pessoa.