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Exercício de escrita

Confirmou a morada pelo menos dez vezes.

04.05.21

Olhava para o recorte de jornal meio amarfanhado que trazia dentro da mala no meio de todos os pertences de uma adolescente desorganizada.

Olhava para o prédio decrépito que parecia à beira da ruina a qualquer instante.

Olhava para o pedaço de papel e relia a morada para ter a certeza de que estava no sítio certo, caminhava até à tabuleta da rua e certificava-se de que sim, estava onde devia estar e o número da porta batia certo.

Olhava para o prédio e dizia para consigo que não podia ser, que a agência de castings não podia estar naquele lugar.

Para tirar a limpo decidiu tocar para o andar identificando no anúncio. Estava certa de que lhe iam dizer que tinha havido um erro, de que o jornal só podia ter feito trapalhada, que ligasse para lá a reclamar. Melhor, ninguém ia aparecer para lhe perguntar «Quem é?» no intercomunicador. Aquilo nem devia ter intercomunicador. E quem é que se arriscava a estar ali dentro, naquela torre à beira do colapso que só podia estar impregnada de cheiro a bafio.

- É para o casting? – responderam para sua surpresa poucos minutos depois de tocar.

- Sim.

- Vou abrir a porta. Tá um bocado perra, tem de dar uma trancada nisso p´abrir tá bem?

Ouviu-se um besourar, alguém carregou para destrancar a porta e desligou antes de Anabela confirmar que de facto tinha mesmo conseguido abrir a porta. Valeram-lhe os fins de semana com a mãe nas limpezas do armazém do Shôr Bilhas, a esfregar chão e paredes. Tinha uns bíceps de fazer inveja às artistas de cinema.

O cheiro foi totalmente ao encontro do que Anabela esperava: uma mistura de velhos em fase terminal, gatos a dar as últimas e ocasionais baratas que se alimentavam do que os velhos e os gatos já não queriam.

Numa porta entreaberta podia ver-se uma placa cor de rosa e branca com um logótipo igual ao que estava no anúncio do jornal «Frescas e Fofas – agência de modelos e artistas de variedades».

Anabela empurrou a porta que rangeu para assinalar a chegada de mais uma candidata.

- Preencha esta folha e quando estiver pronta entregue-me para que a ponha na lista.

Uma mulher de cabelo loiro mal pintado e raízes num misto de branco com castanho escuro andava atarefada pelo hall de entrada do apartamento transformado em escritório-barra-agência-barra-empresa. Trazia umas botas pretas de cano alto que não apertavam até ao fim e estavam presas no cimo com um alfinete de dama. As botas terminavam quando começavam as calças de bombazina com padrão de vaca leiteira, um padrão que deixava claro que uma experiência doméstica tinha corrido mal com aquele tecido. A maquilhagem era carregada, os dentes amarelos de muito tabaco e pouca pasta, e a voz deixava claro que aquele corpo inalava um mínimo de dois maços de SG Ventil por dia.

Anabela entregou a folha preenchida à mulher loira.

- Sente-se ali, o maneta já a atende.

Anabela sentou-se na cadeira de plástico e olhou à volta, mulheres de todos os tipos de feitios, menos daquelas que se veem no cinema, nas novelas, nos anúncios de televisão ou abraçadas a jogadores de futebol.

Tinha hipóteses.

- Anabela Cruz!

Foi a mulher loira que a chamou depois de limpar duas vezes a garganta numa procura infrutífera de a aclarar do som do tabaco. Seria atendida no gabinete ao fundo da sala, onde iria ser avaliada a sua ficha para um potencial estrelato.

Quando entrou na sala deparou-se com um homem pequeno, calvo no topo da cabeça, mas fortemente abastecido numa espécie de coroa que adornava o contorno da cabeça.

Anabela notou que o homem estava atarefado a negociar trabalho para os seus agenciados. Ficou tão embevecida que só quando este lhe apontou com o coto direito a cadeira para se sentar é que deu conta que o homem era mesmo maneta e maneta a duplicar porque não tinha nenhuma das mãos.

O careca que também era maneta e aparentemente não menos agente, suspirou face ao término do contacto, e depois de uma agastada luta para desenroscar a tampa da garrafa de água, da qual bebeu meia dúzia de goles, lá deu atenção a Anabela.

- Desculpe lá esta azáfama, menina, mas sabe como é, toda a gente confia aqui no maneta. O meu nome é Francisco Simão, mas todos me tratam por Chico maneta ou só maneta mesmo. Não há canal que não me ligue, sou o rei dos figurantes.

Anabela sorriu encantada. Ia ser agenciada pelo rei dos figurantes. Não tarda nada era protagonista de uma novela.

- Calculo que o que a trouxe por cá foi o anúncio de jornal.

- Isso mesmo. Tenho um grande sonho de ser atriz de telenovelas e temos de começar com pequenos passos, não é?

- Claro que sim. Não sei se percebe bem o que é que a gente faz aqui. Repare, eu não agencio modelos, nem atrizes, nem coisa parecida. Eu aqui tenho uma carteira de bate-palmas. Sabe o que são bate-palmas menina Anabela?

- Não, confesso que nunca ouvi a expressão.

- Um bate-palmas é um figurante. É uma pessoa que vai assistir a um programa da manhã e está lá de corpo presente a papar com aquela seca e bate palmas quando alguém manda.

- Ok, mas é um passo, não é?

- Não, menina Anabela, na verdade não é. Mas não é por isso que não a ponho na minha lista e se houver um trabalho para si eu ligo-lhe. Preciso da sua morada, da sua idade, de uma fotografia de corpo inteiro e que pague cinco euros para a inscrição.

- Não sabia que tinha de pagar uma inscrição, pensei que os castings eram gratuitos.

- E são menina Anabela, mas no seu caso tenho de processar a fotografia e tenho de a pôr aqui nesta pilha ao meu lado e esse tratamento tem um custo.

Anabela pagou os cinco euros, entregou a fotografia, deu a morada e nunca foi contactada, até porque, tal não era o entusiasmo, nem se deu conta, mas de todas as informações que lhe pediram, um número de contacto não foi uma delas.

Antes de sair do apartamento-barra-escritório-barra-agência ouviu o maneta a chamar pela mulher loira cujo nome parecia tirado de um teatro de revista, estava a dizer-lhe para levar aqueles cinco euros que estavam em cima da secretária e ir lá abaixo comprar um maço de tabaco e dois cafés.

Suspeitou que provavelmente tinha sido enganada, ocorreu-lhe de poderia voltar atrás para confrontar o velhaco, mas na cabeça apenas lhe martelava a dúvida: como é que o sacana do maneta, sem uma única mão, vai segurar na merda do cigarro?

Maria de La Salette com dois tês, como...

20.04.21

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...gostava de esclarecer, penteava a cliente agastadíssima com a entrevista da princesa.

- Já viste aquela pobre coitada? Tinha a vida dela, era estrela de cinema, homens e homens aos pés, casou-se a pensar no conto de fadas e depois fazem-lhe aquilo. Tadinha.

Judite deixava a cabeça ir com a escova porque as escovagens eram tão bruscas que sentia o escalpe a fugir-lhe.

- Ó Salinha, faz é menos força na escova filha, que perdes a cliente se fico careca, amor.

- Ai desculpa Judite, tens razão. Fico assim com as injustiças. Tu sabes c’agente tem penado muito com isto da pandemia. Dei comigo - debruçou-se para confessar a clandestinidade em surdina ao ouvido de Judite - a ir a casa de clientes para lhes dar um corte ou um desbaste. Eles sofriam com cabelo a mais e eu com dinheiro a menos. Mas sabes, uma pessoa vive com pouco, a pessoa é que sabe da sua vida, não tem castelos nem joias, mas vive feliz. E depois é quando vejo estas coisas que penso cá para mim: Maria de la Salette da Cruz Gonçalves Pacheco, ainda bem que não caíste na desgraça da riqueza. Isto uma pessoa tem dois tostões e já nem sabe quem são os amigos, toda a gente quer mamar. Assim a pessoa sabe que quem está é porque quer. É ou não é Judite? - questionou enquanto, empolgada com a conversa, arreou com a escova no cocuruto de Judite. Esta última já saturada da conversa, queria a mise feita, a revista lida, a conta paga e pôr-se a andar.

   - Olha eu cá para mim - respondeu Judite passando as páginas da revista com uma violência desnecessária - muito me estou cagando para ti, para a princesa e para o dinheiro que não tenho. Gostava muito que acabasses o serviço porque eu, ao contrário de ti, lamento que não me saia a sorte grande para arranjar quem me faça o almoço, coisa que não tenho se não parares com as lérias - concluiu.

   Maria de La Salette, sem jeito, percebeu que estava a usar a escova errada há mais de dez minutos. Para estivar o cabelo precisava de uma escova redonda em vez da quadrada. Pegou no secador, carregou no botão e o aparelho não havia maneira de arrancar. Judite viu a coisa malparada. Maria de La Salete desligou a ficha, experimentou outra tripla, mas nada. Não tinha outro, os secadores profissionais eram caros e com a escassez de recursos, aquele, apesar de andar com engasganços ocasionais, tinha de fazer o serviço.

   - Não tens outro? - indagou Judite. Tinha outro, mas também estava pifado.

   Judite levantou-se com o cabelo molhado e pegou na mala para sair.

- Olha liga à princesa, o dinheiro faz-lhe tão mal que pode ser que ela te dispense algum azar para comprares maquinaria nova.

Joaquim está grávido de 24 semanas,...

05.04.21

tem as pernas inchadas e queixa-se de muito sono. A esposa, Maria Odete, aconselhara-o a deitar-se com as pernas para cima umas horas. Parece que com o Osvaldo, o marido da Graciete, funcionou bem quando esteve grávido dos gémeos, dissera-lhe.

Como se as pernas pesadas não fossem bastante, Osvaldo sente uma profunda tristeza por não ver o pirilau, a barriga tapa tudo e há mais de uma semana que nem em pé lhe mete os olhos.

A minha mãe rapou a margarida com a ajuda de um espelho antes de eu nascer. Vai na volta tens de fazer o mesmo, amor, esclarecera Maria Odete quando encontrou o marido desconsolado na casa de banho.

Urina múltiplas vezes à noite e por causa de mal ver o objeto já só o faz sentado, de cabeça pousada na mão, entregue à circunstância.

Maria Odete chega a casa amiúde à procura da ramboia que o marido, homem de dizer que sim, sempre providenciou em quantidade e qualidade. Tal acontece especialmente naqueles dias de trabalho mais leves no escritório, em que se fez pouco, não se receberam e-mails que dilatam as veias do pescoço e ainda se consegue passar no shopping para comprar um par de calças novo antes de seguir para casa.

Entra no carro e antes de comandar ao veículo que faça o caminho mais rápido para casa, reza para que Joaquim esteja bem-disposto, para que lhe apeteça dar umas cambalhotas. Maria Odete anda numa secura tal que o Lívio do arquivo, conhecido pelo mau hálito, lhe começa a parecer mais sensual do que seria de desejar. Maria Odete suspira e relembra-se que tem que apoiar o marido neste momento tão sensível da vida do casal, mas no seu âmago não percebe porque é que Joaquim não se esforça, porque não tenta mais, porque é que se deixa enlear naquela teia de ideias que só consideram chuchas e fraldas. É como se a vida que conheceram estivesse a ser assassinada a passinhos de bebé. Gostava que Joaquim fosse como o irmão da Valéria, sua amiga do ginásio. Não se recorda do nome dele, mas lembra-se bem de que, em conversa com Valéria quando as coisas começaram a descambar com enjoos e má disposição geral, esta lhe disse que com o irmão tinha corrido tudo pelo melhor, que tinha até aumentado o apetite sexual e que a cunhada andava nas nuvens com o desempenho do marido.

É tudo uma questão de usar pensamentos positivos. Sabes que o mindset é essencial para tudo, para treinar e para o resto da vida, rematou Valéria, personal treinar do corpo e coach da mente.

Nesse dia Maria Odete fez conversa com Joaquim, falou-lhe do irmão da amiga, deixou pairar no ar que, quem sabe, Joaquim poderia esforçar-se mais. Joaquim fez um estardalhaço a pousar os talheres, de tal forma que lascou um dos seus pratos prediletos da coleção que tinha comprado, em tons rosa-manteiga. Foi para a casa de banho chorar. Desejava que a esposa entendesse o momento frágil porque estava a passar em vez de o comparar aos outros. Arrependeu-se de ter aceitado ser ele a ficar com aquela responsabilidade, se Maria Odete estivesse no seu lugar é que ia ver como custa.

Joaquim perdeu a vontade, diz que a barriga o incomoda, que tem sono, que não se sente atraente, que lhe dói a cabeça, que está inchado. Anda por casa de um lado para o outro, nem troca o pijama. Joaquim está de baixa desde as 22 semanas, não conseguia lidar com o stress, a chefe dizia-lhe: as mulheres toda a vida fizeram isso, qual é a dificuldade? E ele, soterrado em tarefas e trabalho que lhe pediam que adiantasse antes da licença, acabou por ceder.

Estamos em 2054, os homens já geram bebés e as empresas ainda não têm consciência da sensibilidade de uma pessoa grávida, o que o desgaste e as hormonas podem fazer.

Joaquim inscreveu-se em vários grupos online para pais gestantes.

Maria Odete acha tudo aquilo um exagero. Quando decidiram ter filhos ambos fizeram os testes necessários para saber qual dos dois tinha mais saúde e condição física. Empataram. Então Maria Odete procurou informações aqui e acolá. Falou com colegas que, em reunião familiar, decidiram ser elas. Foi o relato da Jéssica da Contabilidade que a fez decidir terminantemente que, se queriam ter filhos, teria de ser Joaquim a ficar de esperanças. Não entregaria o seu pito em concreto a tal suplício.

Maria Odete chega a casa alegre e encontra Joaquim sentado no sofá, uma taça de gelado Ben & Jerry’s no colo, tem o robe sujo e a barba por fazer. Ainda não se penteou.

- Passaste o dia todo sentado aí, sem fazeres nada? Isso não te faz bem, estás a entregar-te à situação. – sentou-se ao lado de Joaquim e, ainda que lhe faltasse vontade e paciência para estar a lidar com aquele momento deprimente, logo naquele dia que lhe tinha corrido tão bem, afagou as costas de Joaquim e deixou que este chorasse e deitasse cá para fora todas as suas lamúrias. Afinal de contas, podiam achar o que quisessem, mas não era uma insensível.

 Joaquim falou das dores de costas, das insónias, dos receios do parto. Confessou que se achava feio, que parecia um balão. Disse, como quem pede para ouvir o contrário, que Maria Odete o devia achar um monstro assim, sem tomar banho, sujo de gelado, mal penteado.

Maria Odete não negou nem confirmou, limitou-se a emitir um humm que se queria reconfortante, fazia-o de forma maquinal enquanto pensava em Igor, o novo responsável de informática da empresa que a havia convidado para beber café. Belas tardes podiam estar ali.

Abanou a cabeça para afastar o pensamento, que ideia idiota, estar a pensar noutro homem quando o seu marido estava ali, com o seu filho no ventre, a pedir atenção.

Ofereceu-se para lhe preparar um banho com sais, cheiro a baunilha. Mesmo como Joaquim gostava.

Deixou Joaquim na banheira, com água morna, a relaxar. Abriu uma garrafa de vinho e encheu um copo de pé alto. Recostou-se na maquina de lavar loiça a pensar na vida e no que ainda estaria para vir depois de o bebé nascer se agora já era assim.