Confirmou a morada pelo menos dez vezes.
Olhava para o recorte de jornal meio amarfanhado que trazia dentro da mala no meio de todos os pertences de uma adolescente desorganizada.
Olhava para o prédio decrépito que parecia à beira da ruina a qualquer instante.
Olhava para o pedaço de papel e relia a morada para ter a certeza de que estava no sítio certo, caminhava até à tabuleta da rua e certificava-se de que sim, estava onde devia estar e o número da porta batia certo.
Olhava para o prédio e dizia para consigo que não podia ser, que a agência de castings não podia estar naquele lugar.
Para tirar a limpo decidiu tocar para o andar identificando no anúncio. Estava certa de que lhe iam dizer que tinha havido um erro, de que o jornal só podia ter feito trapalhada, que ligasse para lá a reclamar. Melhor, ninguém ia aparecer para lhe perguntar «Quem é?» no intercomunicador. Aquilo nem devia ter intercomunicador. E quem é que se arriscava a estar ali dentro, naquela torre à beira do colapso que só podia estar impregnada de cheiro a bafio.
- É para o casting? – responderam para sua surpresa poucos minutos depois de tocar.
- Sim.
- Vou abrir a porta. Tá um bocado perra, tem de dar uma trancada nisso p´abrir tá bem?
Ouviu-se um besourar, alguém carregou para destrancar a porta e desligou antes de Anabela confirmar que de facto tinha mesmo conseguido abrir a porta. Valeram-lhe os fins de semana com a mãe nas limpezas do armazém do Shôr Bilhas, a esfregar chão e paredes. Tinha uns bíceps de fazer inveja às artistas de cinema.
O cheiro foi totalmente ao encontro do que Anabela esperava: uma mistura de velhos em fase terminal, gatos a dar as últimas e ocasionais baratas que se alimentavam do que os velhos e os gatos já não queriam.
Numa porta entreaberta podia ver-se uma placa cor de rosa e branca com um logótipo igual ao que estava no anúncio do jornal «Frescas e Fofas – agência de modelos e artistas de variedades».
Anabela empurrou a porta que rangeu para assinalar a chegada de mais uma candidata.
- Preencha esta folha e quando estiver pronta entregue-me para que a ponha na lista.
Uma mulher de cabelo loiro mal pintado e raízes num misto de branco com castanho escuro andava atarefada pelo hall de entrada do apartamento transformado em escritório-barra-agência-barra-empresa. Trazia umas botas pretas de cano alto que não apertavam até ao fim e estavam presas no cimo com um alfinete de dama. As botas terminavam quando começavam as calças de bombazina com padrão de vaca leiteira, um padrão que deixava claro que uma experiência doméstica tinha corrido mal com aquele tecido. A maquilhagem era carregada, os dentes amarelos de muito tabaco e pouca pasta, e a voz deixava claro que aquele corpo inalava um mínimo de dois maços de SG Ventil por dia.
Anabela entregou a folha preenchida à mulher loira.
- Sente-se ali, o maneta já a atende.
Anabela sentou-se na cadeira de plástico e olhou à volta, mulheres de todos os tipos de feitios, menos daquelas que se veem no cinema, nas novelas, nos anúncios de televisão ou abraçadas a jogadores de futebol.
Tinha hipóteses.
- Anabela Cruz!
Foi a mulher loira que a chamou depois de limpar duas vezes a garganta numa procura infrutífera de a aclarar do som do tabaco. Seria atendida no gabinete ao fundo da sala, onde iria ser avaliada a sua ficha para um potencial estrelato.
Quando entrou na sala deparou-se com um homem pequeno, calvo no topo da cabeça, mas fortemente abastecido numa espécie de coroa que adornava o contorno da cabeça.
Anabela notou que o homem estava atarefado a negociar trabalho para os seus agenciados. Ficou tão embevecida que só quando este lhe apontou com o coto direito a cadeira para se sentar é que deu conta que o homem era mesmo maneta e maneta a duplicar porque não tinha nenhuma das mãos.
O careca que também era maneta e aparentemente não menos agente, suspirou face ao término do contacto, e depois de uma agastada luta para desenroscar a tampa da garrafa de água, da qual bebeu meia dúzia de goles, lá deu atenção a Anabela.
- Desculpe lá esta azáfama, menina, mas sabe como é, toda a gente confia aqui no maneta. O meu nome é Francisco Simão, mas todos me tratam por Chico maneta ou só maneta mesmo. Não há canal que não me ligue, sou o rei dos figurantes.
Anabela sorriu encantada. Ia ser agenciada pelo rei dos figurantes. Não tarda nada era protagonista de uma novela.
- Calculo que o que a trouxe por cá foi o anúncio de jornal.
- Isso mesmo. Tenho um grande sonho de ser atriz de telenovelas e temos de começar com pequenos passos, não é?
- Claro que sim. Não sei se percebe bem o que é que a gente faz aqui. Repare, eu não agencio modelos, nem atrizes, nem coisa parecida. Eu aqui tenho uma carteira de bate-palmas. Sabe o que são bate-palmas menina Anabela?
- Não, confesso que nunca ouvi a expressão.
- Um bate-palmas é um figurante. É uma pessoa que vai assistir a um programa da manhã e está lá de corpo presente a papar com aquela seca e bate palmas quando alguém manda.
- Ok, mas é um passo, não é?
- Não, menina Anabela, na verdade não é. Mas não é por isso que não a ponho na minha lista e se houver um trabalho para si eu ligo-lhe. Preciso da sua morada, da sua idade, de uma fotografia de corpo inteiro e que pague cinco euros para a inscrição.
- Não sabia que tinha de pagar uma inscrição, pensei que os castings eram gratuitos.
- E são menina Anabela, mas no seu caso tenho de processar a fotografia e tenho de a pôr aqui nesta pilha ao meu lado e esse tratamento tem um custo.
Anabela pagou os cinco euros, entregou a fotografia, deu a morada e nunca foi contactada, até porque, tal não era o entusiasmo, nem se deu conta, mas de todas as informações que lhe pediram, um número de contacto não foi uma delas.
Antes de sair do apartamento-barra-escritório-barra-agência ouviu o maneta a chamar pela mulher loira cujo nome parecia tirado de um teatro de revista, estava a dizer-lhe para levar aqueles cinco euros que estavam em cima da secretária e ir lá abaixo comprar um maço de tabaco e dois cafés.
Suspeitou que provavelmente tinha sido enganada, ocorreu-lhe de poderia voltar atrás para confrontar o velhaco, mas na cabeça apenas lhe martelava a dúvida: como é que o sacana do maneta, sem uma única mão, vai segurar na merda do cigarro?