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Exercício de escrita

Madalena - parte 4

04.07.21

Os miúdos chegaram do pai no final da tarde de domingo. Seria de esperar que estivessem cansados e satisfeitos depois de um dia de praia, mas ao fim de meia hora já andavam em correrias pela casa. Umas vezes cúmplices, outras inimigos.

Lembrei-me de como era com a minha irmã. Ora unha e carne. Ora gato e rato. Ocorreu-me que a maturidade faria o seu trabalho e que, um dia, quando fossem mais velhos, haviam de ser amigos inseparáveis.

Todos os fins de semana que estavam com o pai, vivia a mesma disparidade de sentimentos. Primeiro desejosa de estar sozinha. Farta das tricas e dos ralhetes, queria a casa só para mim, aproveitar o silêncio. Depois a ausência de som e de pessoas pequenas para gerir tornava-se grande demais e eu começava a sentir falta deles. Uma saudade injustificada e incoerente dado o meu alívio por vê-los ir na sexta.

Quando entravam em casa atiravam os sapatos, deixavam os casacos mal pendurados no bengaleiro. Os gritos – umas vezes amigáveis, outros não - e as desavenças ocupavam o lugar da paz que me obrigara a aceitar como benefício daquele tempo só para mim. Nessa altura olhava para eles, pensava que raio me tinha passado pela cabeça para ter dois filhos. Logo dois, como se um não chegasse. E lá me lembrava que o primeiro chegou por minha insistência e o segundo por descuido. Ambos uma lufada de ar fresco num casamento que ambos sabíamos não ser até à velhice. Assim concluímos no dia em que percebemos que seriamos mais felizes sem sermos uma pedra no sapato um do outro.

O Miguel era um homem fantástico. Bom pai, boa pessoa, um marido dedicado. Um homem atraente que correspondia a tudo o que eu poderia desejar. Mas tinha as expectativas dele em relação a mim e eu não estava disponível para ir ao encontro delas.

Invejava-lhe o à vontade, a capacidade de ter assunto para tudo e para todos, mas acima de tudo a tenacidade e disciplina para ir atrás do que queria, de trabalhar afincadamente para ele e para a vida dele. Era por isso que vivia muito mais confortável e que eu tive de me adaptar financeiramente à nossa separação.

Eu nunca conseguia dar continuidade aos meus objetivos. Propunha metas. No início do ano, no meu aniversário, no princípio de cada mês. Tudo para que conseguisse ir negociando comigo um amanhã que eu sabia que não iria chegar. Iria começar um desporto. Iria ler mais. Iria começar a alimentar-me melhor. Iria fazer uma pós-graduação em algo que verdadeiramente gostasse para que pudesse investir numa mudança de carreira. Queria ir atrás daquele mantra de que quem trabalha por gosto não trabalha um único dia na vida. Mas a minha cabeça não conseguia acompanhar a disciplina que tudo isso requeria. Ainda me inscrevi numa pós-graduação. Só seis meses, quatro dias por semana depois do trabalho. O Miguel ofereceu-se para cuidar dos miúdos, andava mais empolgado do que eu, queria genuinamente ver-me satisfeita. Mas ao fim de pouco tempo eu já estava a dizer mal da minha vida, saturada, impaciente por achar que iria ter muitíssimo trabalho para nada, que afinal de contas o meu emprego se calhar não era assim tão mau e que tudo poderia melhorar se eu me esforçasse por me interessar mais pelo que lá fazia. Recordo-me de o ver encostado à bancada da cozinha, as mãos pousadas na pedra mármore, a segurar o pano sujo numa delas, tinha-se esquecido da torneira ligada e dizia, num suspiro: tu é que sabes.

Deixei a pós-graduação. Argumentei que para além de tudo me sentia má mãe, que o timing não era o certo, que não suportava a ideia de passar seis meses em que quase nunca punha os miúdos na cama.

Eu sabia que era mentira. Ele também. Eu tratava dos miúdos subjugada a uma obrigação que me tinha imposto. Não era uma coisa prazerosa. Queixava-me e desejava que os miúdos crescessem para que não tivesse de o fazer.

Ambos sabíamos que era a minha persistente mediocridade. A dúvida constante do que queria para mim. As minhas inseguranças. Era mais fácil entregar-me à vida comezinha do dia a dia e queixar-me de que as coisas não ganhavam rumo. Sabíamos disso tão bem quanto sabíamos que lhe invejava a forma de estar. Que desgostava dele, cada vez um pouco mais, por ser sempre melhor do que eu.

Foi a promoção dele que trouxe o peso final. Não me sentia capaz de o apoiar. Embirrava com as horas que fazia a mais. Desconfiava que tinha outra.

Separámo-nos amistosamente sete meses depois de o Miguel ter passado a diretor da empresa onde ainda hoje trabalha.

Entre as discussões, as trapaças dos miúdos e as tarefas para organizar a semana para todos, o tempo passou a voar e nem dei conta do final do dia a chegar. Foi quando apaguei as luzes do quarto dos miúdos e fui tomar um banho que voltei a lembrar-me dessa tarde.

A mulher era linda, exatamente o tipo que eu esperava que ele encontrasse. Parecia-me equilibrada, daquelas pessoas independentes que não pesam a quem as acompanha, com uma noção muito clara do que são, sempre sorridentes e bem resolvidas. Das que não têm medo do parto porque é uma coisa natural, das que recuperam em poucos meses porque não podem deixar cair a auto estima, das que não deixam o romance esvair porque a vida íntima do casal é muito importante e é fundamental que ele não se sinta ostracizado naquela relação mãe-filhos. Das que acham normal que ele vá jogar à bola com os amigos e que passam tardes às compras com as amigas que lhe dizem que tudo lhes cai bem e é a cara delas.

Aposto que nunca andou por casa despenteada com uma t-shirt cheia de marcas de leite. Aposto que têm empregada e que não receia contratar uma babysitter para ter uma noite romântica. Aposto que tem uma carreira e não um emprego que cumpre todos os dias para pagar as contas.

Perdi-me na comparação entre mim e aquela mulher que vi por menos de cinco minutos. Pensei: era evidente que nunca ficaríamos juntos, era uma mulher destas que sempre quiseste.

Saí da banheira e parei em frente ao espelho. Estava nua e via o meu corpo marcado pela falta de cuidados, a idade, as gravidezes. Um corpo que só poderia ser bonito se vestido com roupas bem escolhidas que lhe escondessem todas as falhas.

Fiquei certa de que era melhor assim, jamais me conseguiria despir à frente dele.

Procurei a camisa de noite velha e custei a encontrá-la. Fui dar com a cesta de roupa cheia. As minhas duas camisas de noite estavam por lavar e já cheiravam mal por estarem em contacto com as peúgas dos miúdos. Fui buscar uma t-shirt e uns calções velhos que o Miguel deixara lá por casa.

Peguei no livro que a minha irmã me tinha emprestado. Ainda não tinha lido uma página, ia começar. Antes de pousar o telemóvel na mesa de cabeceira aproveitei para ligar o despertador e foi aí que vi a notificação. Tinha um pedido de amizade do Francisco.

Esqueci-me completamente do livro. Peguei no maço de tabaco escondido e acendi um cigarro. Tinha de ponderar. Devia ou não aceitar.

O pedido era dele, não meu. Tinha sido ele a procurar-me e de qualquer forma não havia mal em ficar amiga de uma pessoa de quem eu gostara tanto, ainda para mais porque as amizades digitais já se sabem como são, às vezes as pessoas mal se cumprimentam quando se encontram.

Aceitei.

Vi o perfil de ponta a ponta. As fotografias no golf, as maratonas, as viagens com a família.

Já estava descontraída demais e acabei por pôr um gosto numa fotografia com mais de quatro anos, denotando que estava a bisbilhotar.

Depois disso recebi uma mensagem: ainda acordada a esta hora? Se calhar devias descansar.

Respondi: insónias ocasionais.

Nova mensagem: então estás suficientemente acordada para aceitar um convite para bebermos café? Podemos pôr 25% da conversa em dia (smile).

Não respondi logo. Imaginei se seria capaz de ser amiga de alguém que tinha amado de forma tão visceral. Depois pensei, imbecilmente, se seria capaz de me envolver com um homem casado.

Respondi: parece-me uma ótima ideia. Quando queres combinar?