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Exercício de escrita

Onze

18.11.22

Íamos ao pão com as moedas contadas. Comprávamos tabaco para os nossos pais. Íamos para a praceta brincar sem ter adultos a supervisionar. Se havia um desaguisado resolvia-se entre crianças nem que andássemos ao sopapo. Não nos explicavam grande coisa. Víamos novelas brasileiras, filmes de guerra, de terror e até o nove semanas e meia com o Mickey Rourke a mamar morangos com chantilly da boca da Kim Basinger enquanto lhe apertava as costadas contra a porta do frigorífico em jeitos de ela apanhar uma pontada nos pulmões. Era fácil comprar álcool a apanhar uma piela antes dos doze. Aprendemos que um dia de gazeta não precisava de greve, bastava que alguém soubesse fazer uma boa ameaça de bomba. Era a vantagem dos telefones que não deixavam rasto, aqueles que se rodava o disco e a pessoa demorava tanto a marcar o número quanto a chegar a casa do outro. Dizíamos: estou sim, quem fala? Porque era uma incógnita tão boa que de vez em quando lá havia um engraçadinho a fazer chamadas de gozo. Não tínhamos a indignação à flor da pele e as notícias eram informação e não um produto manobrado para chamar a atenção. Havia tédio e com esse tédio chegava a imaginação que, na maioria das vezes, não levava a coisas de estupenda criatividade, apenas à estupidez de experimentar o que sabíamos estar errado.

Tínhamos os joelhos esfolados a tempo inteiro, partíamos braços, cabeças e queixos, saltávamos ao elástico, jogávamos à macaca e ao final do dia víamos as notícias com os nossos pais e se interrompêssemos levávamos um calduço porque não havia box e não dava para voltar atrás e ver outra vez.

Agora roemos as unhas com o tempo de ecrã, benzemo-nos se os miúdos não leem meia dúzia de livros nas férias, fazemos-lhes as sandes até entrarem na adolescência, controlamos os desenhos animados, o youtube e não se assiste a nada com tiros nem asneiras porque se virem o Rambo ainda arrancam para a Serra da Arrábida munidos da faca do peixe para fazer o escalpe a três pinheiros.

Às vezes penso que penso demasiado sobre o que dizem os estudos, os especialistas e os livros dos especialistas baseados nos estudos.

Nove

16.11.22

Pensei escrever sobre o míssil que atingiu a Polónia e ai Jesus que era dos russos, mas graças a deus que afinal é dos ucranianos.

Pensei escrever sobre o estofo que é preciso para ter filhos. Para ver estas maleitas entrar em casa e estar sempre com o coração nas mãos com medo das febres e das faltas de ar.

Pensei escrever sobre a humidade desta minha casa e da porcaria que os meus chinelos ganham na sola sempre que chegamos a esta época do ano.

Pensei escrever sobre este tempo que me deprime. Dias em tom cinzento bolor. Em que às 5 da tarde parece que está na hora de ir para a cama e ainda nem horas são de começar a jantar.

Pensei escrever sobre muita coisa mas estou com uma neura que nem eu me aguento.

Esta semana ia passear à tarde. Ia ao IKEA comprar umas coisas que me fazem falta. Ia organizar a casa, porque o Nuno está de férias e com dois pares de braços dá para chegar a mais sítios. Ia fazer exercício todas as manhãs, uns dias caminhada/corrida, outros uns treinos em casa. Ia trocar os cortinados do quarto. Ia acabar o livro que estou a ler e em calhando até adiantava outro. Em vez disso fui caçada por um dos 977657854 bichos que para aí andam a dar cabo da vida a uma pessoa. A noite foi terrível, com direito ao pacote completo: febre alta, suores frios, tosse e ranho. Sinto que fui atropelada por um camião desgovernado. Ando de máscara em casa para - porventura imbecilmente - tentar evitar que o bicho se vá à miúda, tão pequenina, até se me aperta o peito pensar nisso.
O inverno ainda não chegou e eu já estou farta dele.

Cinco

12.11.22

Puta que pariu a "fruta da época". As viroses, micoses, merdoses que espetam com os miúdos em casa a torto e a direito. Narizes ranhosos, tosse que não deixa dormir, xaropes, termómetros, paletes de lenços de papel, olhos a lacrimejar, a tristeza de não poderem estar em momentos por que esperaram tanto. O magusto com os amigos da escola. O passeio à quinta pedagógica. O aniversário de um amigo. A ida ao teatro. O seminário da atividade desportiva. Este ano já perdeu três destas coisas. E nós, os crescidos, vamos estando de olho nos narizes, nos medicamentos e na febre enquanto damos o colo e o ombro para amenizar a tristeza das coisas boas que ficaram por fazer.
São viroses, micoses, merdoses tacanhas, sacanas, parece que estão à espreita e aparecem sempre nos dias por que mais esperam, quase de propósito. Tivessem as viroses, micoses, merdoses focinho e era certo e sabido que comiam com dois rotativos nas ventas, estilo Bruce Mãe Lee.

As grávidas são uma chatice.

02.06.22

Pés.jpg

 

Vomitam. Enjoam. Metem na cabeça que não comem coisas. Só papam saladinha se tiver sido passada por amukina ou demolhada em água com vinagre. Dizem que é da toxoplasmose ou lá o que é que arranjam para se pôr com esquisitices. Estão sempre enfiadas em consultas e ecografias e análises e o diabo a quatro. Falam em semanas e decoram o catálogo de carrinhos da Chicco para saberem qual das viaturas tem um abs mais adequado para não derrapar na calçada. Queixam-se que a roupa não serve e os pés incham, coisas que se resolvem depressa comprando o número acima. Não gostam do frio, mas passam mal com o calor. Passam à frente nas filas. A pessoa vai comprar dois papo secos, vê a grávida a chegar e pensa logo que está a ser castigada pelo Universo, os olhos arregalam em temor como quem acabou de ver ébola passar. Ficam sempre à espera que alguém lhes ceda a cadeira e ainda têm lugar de estacionamento privilegiado no centro comercial, como se estando elas boas para cirandar de loja em loja, não possam ficar num lugar a duzentos metros da entrada. Demoram a subir escadas. Irritam com aquele respirar ofegante e aquela frase do “deixa-me só recuperar o fôlego”. Ficam com placentas descoladas e com contrações antes de tempo. Têm de ser tratadas como nenúfares e uma pessoa tem de estar sempre com cuidados não vá as meninas ficarem sensíveis e desatarem a chorar ou a sentir-se incompreendidas. Culpam tudo nas hormonas e no momento especial. Deixam trabalho pendurado quando vão dar à luz, ou ainda pior, quando vão mais cedo para casa, coisa que não havia lá no tempo da rica mãezinha que trabalhava ao campo, paria a meio da apanha da fruta e depois de espremer a criança cá para fora ainda enchia duas caixas de Bravo de Esmolfe enquanto tinha a cria agarrada à teta esquerda. Benditas as grávidas de antigamente. Não tinham cá frufrus. Morriam mais, elas e as crianças, mas também era assim que se fazia vingar os mais fortes, a seleção da espécie. As grávidas são uma chatice, mas tirando a parte de incomodarem tanto, até são giras lá longe, com o seu andar de patas, meio metidas a especiais como se fossem a única forma de manter a espécie humana na Terra.