- Tem-se sentido mais agitada ultimamente?
- Não. Penso que não. Às vezes ando numa correria, mas já é normal, não diria que me sinto mais agitada.
Ri-me embaraçada. Que raio de pergunta. Deixou-me a pensar, meio perdida. Mas não, abanei a cabeça para afugentar as ideias que iam surgindo. Não andava mais agitada. Sempre fui uma pessoa calma e organizada. Tinha as coisas sob controlo.
- Tem tido mais stress? Problemas que a andem a preocupar mais do que é costume?
- Não mais do que o habitual.
Nunca parei para pensar nisso. Se ando sob stress? Sei lá eu. As coisas vão aparecendo. É o normal nos dias de hoje. Os filhos, a trabalho, as coisas que tentamos fazer à parte disso para não ser só casa-trabalho.
- Os seus exames não mostram nada de preocupante. O coração está ótimo. As análises estão boas e o resultado da TAC também não mostra nenhum problema.
- Isso é bom, não é?
- É, sem dúvida. Mas…este episódio é a primeira vez que lhe acontece?
- Sim, por isso é que pensei o pior. O meu pai tem alguns problemas de coração e confesso que tive medo. Tenho dois miúdos pequenos que precisam da mãe.
- Compreendo. Devia ficar uns dias em casa. Parar. Deixar que os outros cuidem das tarefas por si. Descansar.
- Não posso fazer isso, doutora.
- Se continuar assim vai ser complicado. Vou passar-lhe aqui uma coisa para aliviar um pouco a ansiedade…
- … eu não sou uma pessoa ansiosa.
- … ainda assim. Vou passar-lhe uma coisa para a ansiedade e vou passar-lhe os papéis para que fique em casa nos próximos quinze dias. Acho que lhe fazia bem.
Estendeu-me duas folhas e disse-me estar disponível se eu precisasse dela outra vez.
O despertador tocou às seis da manhã. Pedi-lhe mais cinco minutos, só mais cinco. Mas não voltou a tocar e acordei meia hora depois. Saltei da cama. Tinha pensado em adiantar alguns e-mails antes de acordar os miúdos, mas já não ia dar. Amanhã começo e faço aquilo que dizia no livro que li. Fui casa de banho e mandei água fria para a cara. Abri os estores, corri os cortinados. Meninos está na hora de acordar, vamos levantar para tomar o pequeno almoço. Um queria mais tempo, o outro não se queria levantar. Ralhei. Ralhei. Voltei a ralhar. Gritei. DESPACHEM-SE! Levantaram-se insatisfeitos. Para que é isso mãe? Encostei-me ao balcão da cozinha, respirei fundo. Tinha dormido mal. A cabeça estava zonza, pensei que era falta de café. Liguei a máquina. Pus a mesa. Preparei a roupa para vestir. Os collants rasgaram-se. Não tinha outros da mesma cor. Escolhi um vestido diferente. Entrei na cozinha e já estavam a comer. Devagar, muito devagar. O pai está a fazer noite esta semana. Chegará pouco depois de termos saído. Bebi o café sem nada. Peguei-me com eles mais três vezes para que lavassem os dentes e se vestissem para sair. Olhei para o relógio. Não ia chegar a horas, logo hoje que precisava de fazer sair aquele e-mail à primeira hora da manhã. Está tudo bem. Tem de estar. Saímos. A vizinha de baixo parara o carro e estava a bloquear o meu. Buzinei. Estúpida de merda. Apareceu dizendo: esqueci-me dos óculos de sol, não consigo conduzir sem eles. Seguiu lenta e airosa. Arrancámos. Porta da escola. Beijinho à mãe, um bom dia, até logo. Fila. Mensagem: sempre consegues aquele relatório até ao final do dia? Sim, a resposta é sim, claro que sim. Telefone a tocar. .
Olá filha.
O que é que precisas a esta hora, mãe?
Tenho de falar contigo, o teu pai anda com a tensão muito alta e sabes que ele tem problemas de coração, não quer ir ao médico.
E o que queres que faça?
Que fales com ele, que lhe metas juízo na cabeça.
Tá bem, ligo-lhe mais logo, agora tenho de ir.
Ligar ao pai. Registei na agenda para não me esquecer. Estava quase a chegar. Tinha de mandar aquele mail. Tinha de acabar o relatório. Tinha de marcar as consultas de rotina dos miúdos. Tinha de marcar dentista. Tinha de aproveitar à hora de almoço para comprar alguma coisa para o jantar. Tinha de ligar ao meu pai. Tlim Tlim. Notificação do Facebook: a Angela faz anos hoje, dá-lhe os parabéns. Esqueci-me que a minha irmã. Corri para cima. Liguei o computador que pareceu mais demorado do que nunca. Abri o e-mail. Escrevi e reescrevi cinco vezes o conteúdo. Merda, parece que hoje nada me sai bem. Eu sei isto. Eu consigo compor esta mensagem. Vamos lá. As mãos pareciam meio trémulas. Lembrei-me que não comera de manhã. Este fim se semana os miúdos podiam ir passar o fim de semana aos avós, precisamos de descansar. De não fazer nada. De não limpar, pôr roupa a lavar ou arrumar brinquedos perdidos. Mas este fim de semana combinamos que os levávamos ao cinema, se calhar no próximo. Para a semana organizo-me melhor. Agora concertação. Mandei o e-mail. Sentei-me indecisa: o que fazer a seguir quando tudo tinha se ser feito ao mesmo tempo. Recebi uma mensagem da escola, sobressaltei-me. Abri e era só a despesa do ATL. Que estupidez. Penso sempre o pior. Braços partidos, cabeças escaqueiradas. Ultimamente parece que me sobressalto com tudo. Vê se te acalmas, Mariana!
Passaram a Joana e a Carla, falavam do ginásio, do fim de semana na Comporta, da conta de Instagram da Luísa com mais de dez mil seguidores, já lhe pagavam para comer iogurtes. Olhei para a minha blusa, tinha manchas de iogurte, não saíram com a última lavagem e eu nem tinha reparado. Comecei a suar. Abanei-me com um umas folhas de rascunho. Estava a ficar tudo turvo, mas só podia ser só uma quebra de tensão. Comi uma fruta passada que tinha na mala. Ando sempre com isto por causa dos miúdos. Não passou. O peito apertou. Um desconforto. Seria do soutien? Não me sentia bem. O coração estava acelerado e comecei a ficar em pânico. Isto não é normal. Não me digas que é assim. Entre tarefas logísticas e comezinhas que me fico. Nem disse aos miúdos que os amava. O peito apertou mais, a respiração parecia-me mais difícil. Meti a cabeça entre as pernas. A Clara espreitou por cima do monitor e perguntou-me se estava bem.
- Tenho dores no peito. Acho que se está a passar alguma coisa.
- Vou buscar um copo de água.
Água com açúcar, soube-me bem.
- Vamos apanhar ar.
Fomos. Saímos lá para fora. Inspirei com força. O ar parecia não entrar. Comecei a lutar contra as lágrimas.
- Não estou bem.
Pegou-me pelo braço e arrastou-me até ao carro. Ouvi-a dizer:
- A Mariana não se sente bem, vamos às urgências.
Sento-me na cozinha com a receita à frente.
Se calhar eu não consigo fazer tudo.