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Exercício de escrita

Temos de viver tudo, carpe diem e o caraças.

06.06.21

Mas depois a vida passa ao lado e nem olhámos para o que estávamos a fazer.

Agora que me sento com a brisa do mar a ajudar que o sol me queime a pele, na casa que aluguei com o dinheiro que me sobrou da venda do apartamento minúsculo a que chamei casa durante cinco anos, penso nisso.

Quis ser tudo e não fui quase nada.

Fui a melhor da turma. Treinei no ginásio todos os dias para estar em forma. Comi o que devia em vez do que queria. Fiquei bem em vestidos desconfortáveis que agradaram aos outros. Arranjei o tal emprego com vista. Ainda que não seja a uma vista sobre Manhattan como os filmes apregoam. Comprei uma casa exígua num bairro caro. Fui às compras com as amigas. Vesti caro. Calcei ainda mais caro. Alimentei conversas que nem eu entendia, vazias como um saco levado pelo vento. Envolvi-me com homens ocos que outras mulheres gabavam. Tive relações de fantochada com homens que os meus pais apreciavam. Saltei de penhascos com uma corda nos pés, borrada de medo, à espera da promessa de sentir a vida. Só se vive uma vez, dizia-me a agente, e eu, sim senhora lá saltei. Detestei e fiz-me de contente. Agora sim, sentia a vida pulsar em cada milímetro de pele. Fiz viagens para onde não queria, fechada em resorts carregados de segurança, praias de água cristalina e histórias de flores à volta do pescoço, tudo para deliciar os que me rodeavam. Tinha de comer a vida, de fazer mais e mais. Não perder nada.

Aceitei projetos extra. Convenci-me que conseguia ser tudo. Pior. Que tinha de ser tudo. Só valia a pena assim. Sem perder tempo. Porque mais é sempre mais e parar é entregar os pontos. Porque a vontade supera tudo e todas as balelas por aí além. Li livros de superação. Engoli as páginas de todos os que me impingiam que conseguia conquistar o mundo desde que cumprisse mais este e aquele passo.

Depois a Mariana adoeceu. Nova. Sem filhos. Sem se ter deixado amar.

Não sei ao que sabe a vida, disse-me.

Fez tudo o que estava numa lista que alguém, algures, ninguém sabe quando nem como, fez. Esperou pelo príncipe que não apareceu. Não teve os filhos perfeitos que idealizou.

Na última vez que a visitei, enquanto eu cozinhava um prato de lasanha que ela adorava e que naquele dia não conseguiu comer, nauseada, lamentou ter vivido pelos olhos dos outros em vez dos seus. Numa procura incessante de encontrar aquilo que a faria brilhar para fora. Tinha pena de não ter tido um cão. Foi a falar do patusco que a vi chorar com mais mágoa. Desde miúda que queria um cão, de raça, rafeiro, pouco importava. Uma coisa pequena. Acessível desde que haja carinho para dar. Os pais não foram nisso, não havia vida, dava muito trabalho. Não havia tempo. Quando crescesse e tivesse a casa dela que arranjasse um. Depois meteram-se as coisas banais e típicas da idade, os namorados, os empregos, as coisas que as amigas achavam que eram boas. Os projetos, os objetivos e a lista invisível daquilo que temos de cumprir para deitarmos as mãos a um pedaço de espaço naquele olimpo mágico da felicidade. A felicidade não é medíocre, assim nos vendem. Ela acreditou. Eu também.

Não fez as pequenas coisas, as que foram atropeladas pelas ideias quadradas de fazer isto e aquilo. Que imbecilidade uma mulher adulta querer um cão como uma miúda de dez anos. Isso viria mais tarde ou mais cedo. Depois do emprego. Depois do marido fantástico. Depois de dois filhos perfeitos. Depois de uma casa com jardim e espaço para uma piscina. Iria a um criador de renome, uma cria com pedigree, como os dos anúncios. Um que teria aulas e saberia passear solto sem roubar bolachas a crianças no parque quando as apanhasse distraídas.

Quando percebeu que nunca teria um cão, perdeu a vontade do bicho de sonho. Dizia que se imaginava a caminhar na praia a chamar por ele e o canídeo, cruzado de múltiplas raças, quem sabe um olho de cada cor, a querer entrar na água. Que se via a ralhar, fazendo-se zangada, porque lhe tinha de dar banho outra vez. O croquete cão. Sal, areia e pelos. O formula imperfeita.

A Mariana não chegou a ter um cão. E eu, depois de me despedir dela, deixei de me conseguir levantar.

Uma semana. Passei uma semana em casa, com o mesmo pijama, as mesmas cuecas, o cabelo emaranhado. Não dormia. Sentava-me no sofá e olhava para o ecrã desligado. Deitava-me na cama e via um filme imaginário no teto.

Foi a minha mãe que apareceu lá em casa. Que me obrigou a entrar na banheira. Que me fez um jantar com os cheiros da minha infância. Que me disse “ainda posso tomar conta de ti como se fosses a minha bebé, mas tens de conseguir voltar a andar pelos teus pés”.

Passou duas semanas em minha casa. Cuidou-me como a menina desprotegida que tinha medo das refilonas na escola. Obrigou-me a pensar em mim, no que me atormentava. No que eu queria.

Vou vender a casa. Vou mudar-me. Vou despedir-me. Vou arranjar um cão. Disse-lhe uma manhã enquanto segurava com as duas mãos a chávena do café com leite que me fez.

Anuiu. Não me perguntou o que é que ia ser de mim. Percebeu que os sonhos que tinha para a sua menina a tinham devorado, como se um mostro a estivesse a comer de dentro para fora.

Conversámos.

Disse-lhe que os dias me passavam ao lado. Que tudo andava depressa demais. Que não sentia propósito na vida. Que fazia as escolhas com base no que era suposto. Queria tempo. Tempo para ler, para caminhar na praia e sentir a areia nos pés sem a pressa da caminhada assinalada pelo relógio moderno que me diria ao ouvido o ritmo e as calorias gastas. Andar pelo prazer de andar. Queria sair para comprar ingredientes frescos, fazer receitas novas sem a urgência do jantar para os amigos depois de mais um dia de reuniões. Queria sentar-me a ler o jornal, sem fazer de conta que o fazia, para picar uma tarefa. Queria conhecer um homem de camisa por engomar. Uma pessoa normal, daquelas que passam despercebidas, das que não me fizessem sentir que tinha de estar sempre no degrau mais alto. Alguém que me levasse a jantar a um restaurante barato, que trouxesse frango assado para comermos à mão.

O Osvaldo passou pelo portão carregado de água e areia. Arrancou-me da melancolia e atirou comigo para a realidade prática de que tinha um cão todo sujo a querer entrar em casa. Enrolara-se no chão a brincar com os outros cães. Fiz cara de má vontade. Perguntei-lhe se sabia a trabalheira que tinha em mãos. Retórica. Não só jamais responderia como bocejou, o que me pareceu um sinal claro do enfado que a conversa lhe causava. Sou eu que quero o sofá limpo, para ele está bom como der.

Sentou-se à espera que o chuveiro da rua estivesse pronto para o passar por água. Para ele a vida corre bem, nunca quis mais que aquilo, está contente.

E eu, olho para aquele ar pateta de quem tem tudo na vida com duas corridas à beira mar e rio-me. Os bichos sabem viver melhor que nós.

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