Uma mãe puxava uma criança birrenta pelo braço.
O menino queria fugir-lhe, voltar na direção do escorrega. A mãe dizia-lhe: temos de ir, tenho coisas para tratar em casa. Já tinha negociado, já tinha ralhado, agora levava-o quase de arrasto.
Outra mãe andava freneticamente atrás do filho que não teria mais de quatro anos. Seguia-o com o olhar de uma águia, acompanhava-o de uma ponta à outra, os pés enterrados na areia fofa do chão. Elogiava a mais pequena das conquistas e desconfiava de todas as outras crianças, como quem vê a sua cria rodeada de lobos.
Sentada num banco estava uma mulher de cabelo louro escuro, aparentemente natural, com os olhos cobertos por óculos escuros com lentes quadradas que lhe ocupavam boa parte do rosto, pensava que se os filhos fossem seus teria tempo, porque tudo o resto seria secundário, que lhes daria liberdade e falaria de forma meiga para as outras crianças, para que gostassem dos seus filhos e fossem todos amigos.
Bem fazes tu que não tens nenhum, disse uma mulher de cabelo castanho escuro atado num rabo de cavalo mal amanhado. A roupa era simples e provavelmente comprada em packs de duas e três camisolas iguais. Trazia ao ombro uma mochila de criança meio aberta, lá dentro, numa salganhada de objetos, poderíamos encontrar toalhitas, embalagens de fruta batida, pás de praia, carrinhos e no fundo de tudo um pacote de bolachas partidas que por ali estavam esquecidas há mais de seis meses. Tinha estado a dar um sermão aos filhos que, não satisfeitos com qualquer coisa sem importância, se haviam pegado um com o outro no meio do parque. A mulher de cabelo mal amanhado falava para a mulher dos óculos grandes, deixando o corpo cair sobre o banco de jardim, soltando um suspiro que era um misto de alívio e cansaço, lançando aquele desabafo pouco verdadeiro, daquelas coisas que as mães dizem quando os filhos lhes dão água pela barba e elas já não sabem o que fazer. Daquelas coisas que se dizem quando se tem vergonha dos comportamentos dos petizes que se trouxe ao mundo e se tenta pedir desculpa de um mal que não se fez. Mas já se sabe que o mal que os filhos fazem se propaga sempre para as mães. Porque elas o absorvem como seu. Porque os outros lhe conferem tal responsabilidade, já que se a criança fez pior, foi porque a mãe não ensinou melhor.
O que a mulher de cabelo mal amanhado não sabia era que a mulher de óculos grandes, a sua grande amiga, tentava engravidar há mais de três anos. Não sabia que aquele sorriso que lhe foi devolvido, num gesto de carinho e compreensão, num deixa lá que os miúdos são mesmo assim, camuflava a dor de mais um aborto espontâneo. Recente. Não sabia que os abraços e as palavras já não a consolavam. Não sabia que chorava à noite e sentia raiva de um corpo que para os outros era tão bonito e para si tão incapaz.
O período tinha falhado como falhara tantas vezes. Esperou. Esperou que não fosse falso alarme até comprar o teste. Esperou porque o coração já não aguenta tantas falsas partidas. Porque a cabeça se vai convencendo de que a vida pode ter outros sonhos e porque ser mãe não é parir. Andavam a falar na hipótese de adotar. As pazes iam sendo feitas com a vida devagar, era preciso avançar, duas pessoas que se amavam tanto, que tinham uma vida boa para dar. As reportagens na televisão, crianças perdidas, maltratadas, violentadas, deixadas ao acaso e ela ali, com tudo para dar e um ventre que não carregava o que ela mais queria. Foi então que chegou o resultado positivo. Mais uma hipótese. A alegria contida de quem tem medo do que pode acontecer a seguir. Do que já tinha acontecido seis vezes antes. A primeira consulta, o primeiro bater de coração. As lágrimas a correr pelo rosto. A esperança, os sonhos, o quarto, a mãe que ia ser. Mas a segunda consulta chegou e com ela a ecografia de rotina. Sem som. O barulho do vazio que ecoou mais alto que qualquer tambor.
Lamento, disse a médica.
Não lhe saíram palavras da boca.
Foram feitos os procedimentos necessários.
Não verteu uma lágrima.
Queres que te traga um chá, disse-lhe o marido ao início da noite quando se sentou na beira da cama e lhe acariciou a perna.
Não.
Ele saiu. Ele sabia que só o tempo a faria voltar a si.
Soube ele. Soube ela. Soube a médica.
Para os outros seria apenas falatório. Olhares de lamento. Frases forçadas porque as pessoas não sabem que o silêncio por vezes dá mais apoio que as palavras de quem não conhece a dor, de quem, por dentro pensa: ainda bem que não foi comigo.
A mulher dos óculos grandes também queria pensar isso: ainda bem que não foi comigo. Que o mal de ventre fosse de outra e não seu.
Aquilo a semana passada é que foi, disse a mulher de cabelo mal amanhado, a Júlia esticou-se um bocado, não achaste?, continuou.
Pois, não devíamos falar do que não sabemos, respondeu a mulher de óculos grandes, mostrando falta de interesse no assunto da vida alheia.
É tu, Verónica?, perguntou a mulher de cabelo mal amanhado.
Verónica olhou para a amiga e perguntou: eu o quê?
Andas cabisbaixa, a semana passada mal falaste. Limitaste-te a ouvir o que dizíamos e sorrias aqui e ali. Tá tudo bem contigo e com o Zé?, perguntou.
Está tudo bem connosco. Não falei muito porque ando um bocado cansada daqueles jantares, respondeu. Cansada dos jantares e dos e-mails nas costas umas das outras, sempre a fazer julgamentos sobre as escolhas desta e as escolhas daquela. Sabes que também se trocaram e-mails sobre ti. Quando ficaste grávida do Martim, a louca que foi ao terceiro como se já não estivesse assoberbada com dois.
Eu sei, respondeu a mulher de cabelo mal amanhado, enquanto levava a mão ao carrinho e acariciava um bebé que dormia tão serenamente que, não fosse o espaço ocupado do carrinho, mal se dava conta que estava ali.
Eu sei que tudo é tema. A Marta acha que também é muito esperta, mas também falamos dela.
Claro que falamos. Falamos de todas nas costas umas das outras e depois como sabemos o que fazemos, todas nos vamos escondendo. No fim, nenhuma de nós conhece a pessoa com quem diz ser amiga, confessou Verónica.
Tens razão. É por isso que tu estás sempre bem mesmo quando é notório que não estás, disse a mulher de cabelo mal amanhado, perscrutando o parque para garantir que os filhos mais velhos estavam no seu ângulo de visão.
E é por isso que continuarei a estar bem. E é também por isso que tu, apesar de desgastada, de notoriamente capaz de quebrar num pranto por não saberes para onde te virares, vais sempre dizer que a tua vida está excelente e os miúdos são o melhor da vida.
O bebé acordou.
A mulher de cabelo mal amanhado pegou-lhe ao colo e ajeitou a roupa para lhe dar de mamar. Verónica assistiu, num misto de encanto e inveja. Reprimindo a pergunta: porque é que ela tem três e eu não consigo ter nenhum?
O filho mais velho empurrou o irmão e este desatou a chorar.
Deixa que eu vou lá, disse Verónica, sempre solícita.
Agachou-se para ficar ao nível dos miúdos. Tirou os óculos grandes para os poder olhar nos olhos. Disse-lhes coisas que a mãe deles não ouviu.
Os miúdos voltaram a brincar sem reclamar.
Enquanto Verónica caminhava de regresso ao banco de jardim, a mulher de cabelo mal amanhado pensava: tem tanto jeito com crianças, é uma pena que não queira ser mãe.